DA CIÊNCIA E DA POESIA

No caos da desesperança de um Estado de Exceção

23/03/2020 às 18:36
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Pandemia anunciada do COVID-19.

Nessa crise de isolamento social já afirmada e de caos humanitário, que se aproxima, podemos fazer muitas coisas: fazer amor, namorar – com os reclusos conosco –, ler, comer, dormir, ouvir música, fazer textos ou poesias. Isso os que podem, aqueles que não tiveram a vida terceirizada, tipo esquálidos que agora não tem mais acesso ao trabalho informal, ao subemprego, nem às migalhas destinadas pelas elites e pela classe média egóica ao lumpesinato.
 Qual é nossa percepção, decisão, diante da mídia oficial – modelo Diário Oficial – que entabula dados, mascara muitos outros, produz tergiversações como se fora interpretação textual? A maioria de nós, infelizmente, está refém desse Diário da Mídia Oficial e das mensagens de Fake News que, literalmente, viralizam nas redes sociais. Poucos, de fato, tiveram acesso a uma educação de qualidade, crítica, emancipatória, bem como poucos têm livre curso em outras fontes de informação, fidedignas, para então pensar, deduzir e decidir por si mesmos.
 Nessas sessões semanais de exposição do ridículo e da irracionalidade, em discurso e linguajar tosco e bizarro, na verdade quase diárias, de negação da pandemia pelo governo anti-Iluminismo e pela cultura religiosa pré-Renascimento, vemos um decréscimo de confiabilidade em todas as instituições e mais ainda na racionalidade mediana. O povo massificado, por exemplo, consegue transitar nos interiores dos Estados como se não houvesse pandemia de COVID-19 (coronavírus): diz-se desbragadamente que isso é uma doença da capital. Também a representação política e institucional desmiolada e irresponsável faz coletivas para decretar que não passa de um “viruzinho”.
 Por outro lado, mesmo adeptos e eleitores desse indivíduo adotam medidas de prevenção, restrição e de isolamento social, alertadas há mais de um mês pela Organização Mundial da Saúde (MS). O lado dramático para esses que não se sentem fiéis e sob o comando ideológico (mínions), de quem propõe regularmente Crimes contra a Humanidade, é que: por um lado, na condição depositária do analfabetismo disfuncional e político, desacreditam da Ciência e da racionalidade: a “gaiola de ferro”, que ensinou Max Weber. Por outro, como adoradores dos bezerros de ouro, mas ainda tementes por sua saúde e de sua família, andam à espera de algum milagre dos cientistas.
É um fenômeno estranho, típico de interdição ou de inimputabilidade técnica, certamente, mas que nos obriga à análise de um conjunto de indivíduos massificados que descreem da Ciência e do conhecimento acumulado pela Humanidade, por não saberem sequer para que servem, e ao mesmo tempo rezarem e pedirem ao Deus (do mercado) que “ilumine os cientistas a descobrirem um remédio de cura”. Em outras palavras, o povo massificado não tem fé na razão (crítica, propositiva), por isso faz da fé sua razão de viver: redentorismo, pacificação da angústia de quem vive.
Como ensinaria o poetinha Vinícius de Moraes (no Soneto de Fidelidade):
De tudo, ao meu amor serei atento antes
...
Quero vivê-lo em cada vão momento
...
E assim quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

 Talvez, ainda, se possa dizer que o cientista (para além do mercado) está acostumado ao desapego, à parcialidade e pouca eficácia de tudo, como ente conhecedor e propagador da transitoriedade e da finitude, como refém de um eterno amor de quem sabe que tudo lhe é passageiro na vida, desde que seja infinito enquanto dure.
Então, é assim que entendemos que o capitalismo, desde os anos 50, não só provocou a obsolescência crescente dos meios de produção e de consumo, como esse efeito parece ter mordido e inoculado seu veneno na própria razão científica e instrumental: à medida em que tudo se troca em dias ou minutos, como bens de uso e de consumo, a razão, o conhecimento, a Prudência e a Sabedoria (Bom Senso), não apresentam maior durabilidade do que o reles celular que se descartará no final do ano.
Se tudo é descartável, se as pessoas são descartáveis, trocadas e limadas, como se troca de Uber, por que motivo ciência e racionalidade sairiam imunes? Não saem, e isso percebemos quando observamos que a “ciência” que “ainda” tem algum respeito e significado para o povo consumidor e para o mercado é a ciência aplicada, geradora de bens, rendas, ganhos e valor agregado ao próprio bem a ser fagocitado no consumo imediato. Sem dúvida é uma ciência instrumental, serve de instrumento ao grande ciclo do capitalismo parasitário, especulativo e disruptivo. É a ciência do consumo desvairado, irresponsável, devorador do planeta como ervas daninhas.
A Ciência especulativa, inventiva, criativa, é crítica por natureza – pois sem crítica aos pressupostos cristalizados não há conhecimento, só um tipo de crença ou sharia, seita ou mistificação. Neste sentido, Ciência e Filosofia são roldanas do mesmo cursor, assim como a Poesia, uma vez que, sem o desafio da criatividade não há espaço para a “loucura”. Qual loucura?
A loucura de se desvincular, desvestir das masmorras reclusas em respostas fáceis e da mera aceitação, replicação do status quo, porque o cientista (para além do mercado das almas) luta e cobra, exige-se conscientemente sair das bolhas de consumo programado e da zona de conforto. Movido por essa inquietação, muitas vezes em rima pobre (o conhecimento é rico de outras satisfações), não há sonífero que acalme a alma (a Aura: a essência da criação) de quem está à procura de “saber-mais” e assim fazer Ciência.
Ou, como vemos no ensinamento 76 do Livro do Tao te King, de Lao Tsé, na origem do taoísmo, a força está no que é frágil; a beleza está no que se esconde; a grandeza está no pequeno; o futuro está no virtual; a ação está na não-ação:
Recém-nascido, o homem é débil e frágil.
Morto, é rígido e duro.
Ao nascer, plantas e árvores são tenras e flexíveis.
Mortas, são rígidas e duras.
Rigidez e solidez são companheiras da morte.
Debilidade e flexibilidade são companheiras da vida.
Por isso, um exército que se faz forte não vencerá,
Uma árvore que se torna grande será abatida.
O que é forte e grande está em posição inferior.
O que é débil e frágil, em posição superior

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Portanto, para o cientista (para além do mercado), “saber-mais” não é um “saber para mais”, como se o acúmulo do que se sabe pudesse ser estocado, de acordo com o modelo do capitalismo industrial dos séculos XIX e XX. É “saber-mais” para inquirir mais, intuir melhor, e, desse modo, duvidar e rejeitar aquilo que há pouco se sabia com alguma satisfação. Ou seja, a Ciência e os cientistas (para além do mercado) são insatisfeitos e ansiosos por definição.
Qualquer calmaria, típica de quem aprecia o celular novo, é imprópria ao cientista – ainda que possa ter todo o conforto e as vaidades que deseje –, mas sim objeto do consumismo e da ideologia. Neste sentido, a Ciência (oposta à ideologia) é o “saber-mais” do desconforto. E é assim que vive o cientista, com ou sem pandemia e caos, está sempre imerso na desconfiança, insatisfação, inquietude ou mergulhado na pandemia e no caos que levam ao seu “saber-mais”. O cientista (para além do mercado) está sempre no limiar do conhecimento, independentemente de suas crenças particulares, porque, é isso ou se dota de adoração e de seita.
Como vemos, a Ciência é a exata diferença entre o passado e o clássico: o clássico é o passado que vai ao futuro, porque não é comestível pela crítica roedora das traças do tempo (diria Marx). O passado, que se afasta da Ciência, é o das tradições e do tradicionalismo – se bem que, pela tradição, também há equivalência em se “acreditar” na Constituição, na Verdade Pública e na própria Ciência. É essa a vocação, a ficção, a utopia do cientista para além do mercado.
Em todo caso, não se faz Ciência no Gulag ou no Reichstag: na certeza absoluta do que dali advirá. Só há Ciência no castelo de areia, especialmente nos dias atuais em que a desinformação e as mentiras grotescas nos levam direto para o poço de areia movediça. E talvez seja por isso que o povo massificado desconecte a Ciência dos cientistas, aqueles que esperam a cura milagrosa para seus males, porque – aliás, como a maioria dos cientistas – o povo massificado não sabe distinguir entre castelo de areia e areia movediça.
Como estamos em tempo de irracionalidade e “desrazão” – expressão que os iluministas detestam –, dominados pelo pavor político, abduzidos pelo Desencantamento do Mundo, na forma-Estado da Idiocracia, o povo massificado não consegue acreditar na razão que habita a Ciência e, assim, volta-se em oração e consagração para que uma ação divina se espraie na cabeça de algum cientista: como se uma pessoa fosse a roda de transmissão entre o bem e o mal.
Agora, e por fim, seria de bom tom que fizéssemos um poema sobre o Xamanismo, o que não será possível. Todavia, que nos lê poderia ficar nessa missão de Esclarecimento por meio de um Poema que nos traga de volta algum Encantamento com a verdade da vida.

É assim o cientista, para além do mercado, e para a Ciência do Direito: luta pelo Direito à Consciência (ainda que transitória), na forma de um direito fundamental.

Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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