O USUFRUTO E A LEGÍTIMA SUCESSÓRIA

24/03/2020 às 19:35
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O ARTIGO DISCUTE TEMA ATINENTE AO DIREITO CIVIL DAS COISAS E DAS SUCESSÕES DIANTE DO SISTEMA JURÍDICO PÁTRIO, DA DOUTRINA E DA JURISPRUDÊNCIA.

O USUFRUTO E A LEGÍTIMA SUCESSÓRIA

Rogério Tadeu Romano

I - USUFRUTO

Constituído o direito real de usufruto há o desmembramento da propriedade sobre a coisa, permanecendo esta na titularidade de uma pessoa (nu proprietário), enquanto a outra tem o uso e a fruição da coisa, como se fosse o seu proprietário.

O usufruto, via de regra, se constitui por contrato; por testamento, quando reveste a forma deste ato de última vontade, atribuindo a uma pessoa a fruição e utilização da coisa destacada da nua propriedade atribuída ou legada a outra. Ainda admite-se o usufruto por lei (artigo 1.689, do Código Civil, por exemplo).

Disse Álvaro Vilaça (Direito das coisas, 2014):

"Pode acontecer, ainda, que o usufruto seja instituído por testamento, que,como negócio mortis causa,produz efeitos depois da morte."

Ainda poderá vir por usucapião quando adquirido pelo decurso de lapso prescricional em favor, por exemplo, de pessoa que o tenha adquirido de quem não seja proprietário dela.

São características essenciais do direito real do usufruto e que representam a sua maior vantagem: a sua inalienabilidade, tendo como consequência a sua impenhorabilidade, e a temporariedade. Permitir aliená-lo, em ordem sucessiva, é descaracterizá-lo, pois o caráter temporário é de sua própria essência. O limite máximo é o da vida do usufrutuário, se pessoa natural, ou de 30 anos, se pessoa jurídica (redação do NCC), ou ainda pelo implemento da condição ou termo de duração estabelecidos para a sua vigência.

Lembro a lição de Ana Luiza Maia Nevares(O Princípio da Intangibilidade da Legítima. In Princípios do Direito Civil)) quando disse que as cláusulas restritivas têm a possibilidade de desempenhar importante papel na proteção do mínimo existencial assegurado pela Constituição Federal (art. 1º, III) como, por exemplo, na proteção da moradia (art. 6º), mas que na proteção da intangibilidade da legítima, a justa causa deve ser real, se apresentar de forma precisa e continuar presente, em caso de testamento, até o momento da abertura da sucessão(A Função Promocional do Testamento. Tendências do Direito Sucessório. Renovar, 2009, p. 242/250) , ou seja, “a validade da cláusula restritiva estará sempre submetida à análise da permanência dos motivos que a justificaram.”. Referindo-se estritamente ao testamento, resume Marcelo Truzzi Otero(Justa Causa Testamentária. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 74) essa questão: “é indispensável que a motivação se apresente acompanhada de fatos concretos e lícitos, persistentes ao tempo da abertura da sucessão, atestando que o interesse do herdeiro reclama a inalienabilidade, a impenhorabilidade ou a incomunicabilidade da legítima.”

Procede o usufrutuário em pessoa realizando as colheitas, recebendo juros, dividendos e aluguéis.

Caio Mário da Silva Pereiera (Instituições de direito civil, volume IV, 1974, pág. 244) disse que "nada impede, todavia, que o faça por outrem, a quem cede a percepção dos frutos, no todo ou em parte. Daí dizer-se que é licito ceder o exercício do usufruto e que o Direito Romano já autorizava, como se infere da passagem de Ulpiano, ao aludir à fruição pelo usufrutuário mesmo e a faculdade de alugar e vender".

Mas, não pode, entretanto, ceder o direito de usufruto, que é constituído em razão da pessoa. O usufruto é um direito personalíssimo.

Admitida assim a cessão do exercício de usufruto e não a sua transmissão, resulta que o terceiro favorecido não será titular de um direito real, senão de mero direito pessoal ou de crédito, como disse Eduardo Espínola (Direitos reais, pág. 205). Sendo direito real o usufruto extingue-se a sua morte, não podendo, igualmente, ser penhorado. Em consequência é nula a arrematação de bem sujeito a usufruto.

Cessa o usufruto com a morte do titular, pelo implemento de condição resolutiva; pela cessação da causa (quando ele é constituído em favor de uma causa determinada); pela destruição da coisa; pela consolidação, quando na mesma pessoa se reúnem as pessoas do usufrutuário e do nu-proprietário.

II - O PROBLEMA DO USUFRUTO E O DIREITO DAS SUCESSÕES

Observo o artigo 1848 do Código Civil:

Art. 1848 do CC: Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima.

§ 1º Não é permitido ao testador estabelecer a conversão dos bens da legítima em outros de espécie diversa.

§ 2º Mediante autorização judicial e havendo justa causa, podem ser alienados os bens gravados, convertendo-se o produto em outros bens, que ficarão sub-rogados nos ônus dos primeiros.

Observo o que é dito no artigo 1393 do Código Civil:

"Não se pode transferir o usufruto por alienação, mas o seu exercício pode ceder-se por título gratuito ou oneroso"

A alienação do usufruto ao proprietário do bem não está vedada, por ser esta a forma, juntamente com a renúncia, mais comum, em ato declaratório, da extinção do usufruto pela consolidação da plena propriedade na pessoa do nu-proprietário (art. 1.410, VI).

O usufruto pertence, pois, à classe dos direitos não transmissíveis, mas não em termos absolutos, o que seria totalmente inútil desde que ao usufrutuário não fosse possível fruir pessoalmente a coisa.

A legítima teve proteção ampliada pelo CC de 2002. Isso porque, no passado, o direito de o testador clausular a legítima era potestativo e não necessitava de justificação. Com a vigência do atual CC, para se clausular a legítima é necessária a motivação, justificação. Se o testador não o fizer, a cláusula é ineficaz e não produz efeitos (art. 1.848 do CC). As cláusulas em questão compõem verdadeiro triunvirato: inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade. São cláusulas que retiram do herdeiro ou legatário alguns poderes da propriedade. Pela inalienabilidade (que gera automática impenhorabilidade e incomunicabilidade), o bem não pode ter a propriedade transferida. Alienar é tornar alheio. Assim, o bem não pode ser vendido, doado ou permutado pelo herdeiro. Impenhorabilidade significa que o bem não pode ser dado em garantia pelo herdeiro (penhor, hipoteca etc) nem penhorado por dívidas dos herdeiros. Fica fora do alcance dos credores. Incomunicabilidade (a mais restrita delas) significa que o bem não integra a comunhão universal, ou seja, sobre ele não haverá meação. É bem particular. É possível clausular a legítima com usufruto, garantindo ao herdeiro a nua-propriedade apenas?

A nua-propriedade é uma propriedade decepada, reduzida.

Por essa razão, é ineficaz a cláusula de usufruto que recai sobre a legítima. A cláusula retira o poder de usar e fruir, que é decorrência natural da propriedade. A legítima, decepada, mutilada, não é legítima. Por essa razão, não cabe o usufruto sobre a legítima.

Herdeiros necessários são os descendentes, o cônjuge e os ascendentes (CC., art. 1845).

Os herdeiros necessários fazem jus à metade dos bens deixados pelos seus antecessores. Tal parte da herança é intocável e por ser assim deve sempre ser destinada aos herdeiros necessários, sob pena de nulidade. A outra parte da herança é denominada disponível e pode ser deixada para quem o proprietário deseje, até para um estranho ou mesmo para um dos filhos em detrimento dos demais.

Disse Sílvio Rodrigues (Direito das Coisas – v. 5, 27ª ed., Saraiva, p. 310) que a cláusula traz uma restrição à legítima do herdeiro. Este tem o direito de recebê-la, por morte do hereditando, sem qualquer restrição, afora os ônus do art. 1.723 do Código de 1916 ou do art. 1.848, caput e par.1º do Código de 2002. Acrescimento do usufruto em favor do consorte sobrevivente é ineficaz, enquanto prejudique a reserva dos herdeiros necessários. No mesmo sentir esta a decisao do Tribunal de Justiça de São Paulo (RT 188/691).

Ensinou Agostinho Alvim em seu artigo intitulado “Do direito de acrescer nos atos entre vivos”, constante da RT 194/581.

“Aí também ficou proclamado que o ajuste de acrescimento, permitido pelo art. 740 do Código Civil (de 1916), não pode prejudicar a legítima dos herdeiros necessários, fazendo mister harmonizar o direito deles com o dos usufrutuários. Tal harmonia se consegue da seguinte maneira: “Assim sendo, se a doação não é de todos os bens, ou melhor, se não atinge a legítima, valerá o direito de acrescer a favor dos pais usufrutuários; e se a legítima for atingida, cairá aquele direito, tanto quanto baste para livrar a legítima integralmente.”

Sendo dois ou mais os usufrutuários, extingue-se em relação aos que falecerem, substituindo pro parte em relação aos sobreviventes (artigo 740 do Código Civil de 1916). Mas se o título estabelece a sua indivisibilidade, ou expressamente estipula o direito de acrescer entre os usufrutuários, subsiste íntegro e irredutível até que todos venham a falecer.

Lembra Silvio Rodrigues"que esse art. 1.411 admite a hipótese de a morte não extinguir o usufruto,"se este for instituído em favor de vários, e tiver havído ajuste em que se convencionou o direito de acrescer entre os sobreviventes.A questáo complexa que o dispositivo suscita diz respeito ao conflito desta regra com o preceito que assegura aos herdeiros necessários direito a legítima.

O caso é frequente e assim se propõe: o casal faz doação dos bens aos filhos, reservando-se o usufruto e estipulando, no instrumento, que por morte de um dos usufrutuários seu direito acrescerá ao do outro. Ora, a cláusula traz uma restrícão a legítima do herdeiro. Este tem o direito de recebe-la, por morte de hereditando, sem qualquer restrícão, afora os ónus do arto 1.723 do Código de 1916 (art. 1.848, caput e § 1º do CC de 2002). Portanto, a cláusula que determina o acréscimo do usufruto em favor do consorte sobrevivente é ineficaz, até quando prejudique a reserva dos herdeiros", como decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo. Assim tal cláusula só terá eficácia no que diz respeito à metade disponível.

Assim observa-se da RT 188/691:Deve, assim, ser cancelado o usufruto na parte relativa a doadora falecida.

Por sua vez Carlos Maximiliano (Direito das Sucessões – v. III, 3ª ed., 1952, Freitas Bastos) argumentou que no caso do que vulgarmente denominam doação-partilha, não existe dádiva, porém inventário antecipado, em vida (p. 21) não pode ser diminuída a legítima, na essência, ou no valor, por nenhuma cláusula testamentária (p. 23). Pouco importando a forma pela qual se dê a diminuição da reserva - legado, instituição de herdeiro, fideicomisso, usufruto e outros ônus - nada disto pode afetar a legítima. Esta não será jamais subordinada a condições, nem sequer potestativas; nem onerada com encargos. Transgredidas estas regras proibitórias, consideram-se inexistentes os legados, encargos, condições, ônus e tudo o mais que deva recair sobre a parte obrigatória da herança. A distribuição dos próprios haveres realizada por meio de um ato entre vivos deve efetuar-se de modo que não prejudique a legítima dos herdeiros necessários (p. 343). Postergado este preceito, não advém nulidade; reduzem os quinhões excessivos, de modo que os sucessores forçados obtenham, pelo menos, a reserva integral.

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Washington de Barros Monteiro (Direito das Coisas - 16ª ed. - 1976 - Saraiva) ensinou: “Questão interessante e de ordem prática é a de se saber se lícito se torna aos pais, fazendo doação aos filhos, com reserva de usufruto, estipular o direito de acrescer para o doador sobrevivente (p. 322). A jurisprudência tem repelido semelhante estipulação, extinguindo-se assim o usufruto com relação do doador falecido. Tem-se entendido, em tal hipótese, que o direito de acrescer vulnera a legítima do herdeiro. Nesse sentido, aliás, a lição de VENEZIAN : “No usufruto “deducto” os cônjuges não têm direito ao recíproco acrescimento”. O autor no seu Direito das Sucessões, 35ª edição, 2003, Saraiva, p. 113, em nota de rodapé transcreve o seguinte julgado: “Legítima – Usufruto vitalício em favor do cônjuge supérstite. Incidência sobre a legítima dos herdeiros. Inadmissibilidade. Violação do princípio da integridade da legítima. Viúva, ademais, agraciada com a parte disponível dos bens do testador. Art. 1.723 do CC” (RJTJESP, 200/165).

Em sendo assim o usufrutuário não pode a seu prazer vender ou alugar bem que recebeu no direito real de usufruto.

III - O USUFRUTO VIDUAL

Há o usufruto vidual.

A esse respeito decidiu o STJ:

Trata o caso da incidência do art. 1.611, § 1º, do CC/1916 (usufruto legal) quando a companheira é contemplada em testamento com bens de valor superior ou igual àqueles sobre os quais recairia o usufruto. A finalidade do usufruto vidual do consorte sobrevivente é garantir um mínimo necessário para o cônjuge ou companheiro que não possui obrigatoriamente quinhão na herança do falecido, como no caso de comunhão parcial ou separação absoluta, em sucessões abertas na vigência do CC/1916, que não considerava o cônjuge como herdeiro necessário. Assim, na espécie, a companheira não faz jus ao usufruto legal, pois já contemplada, em testamento, com bem de valor superior ou igual àqueles sobre os quais recairia o usufruto. A deixa de propriedades por meio de testamento transmitiu, por consequência, os direitos de usar e de fruir a coisa na proporção exigida pelo referido artigo. Se assim não fosse, permitir o usufruto de outros bens, além dos já legados, poderia esvaziar a legítima. Precedentes citados: REsp 28.152-SP, DJ 27/6/1994, e REsp 34.714-SP, DJ 6/6/1994. REsp 594.699-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 1º/12/2009.

A questão está em saber se a concessão do usufruto ao cônjuge sobrevivente casado sob o regime da separação legal de bens é possível na sucessão testamentária. Isso posto, a Turma conheceu do recurso e deu-lhe provimento para reconhecer à viúva o direito ao usufruto legal, enquanto durar a viuvez, sobre a metade dos bens do cônjuge falecido, por considerar que o usufruto vidual é instituto do direito sucessório, independente da situação financeira do cônjuge sobrevivo. O art. 1.611, § 1º, do CC/1916 não restringe a respectiva aplicação à sucessão legítima. A previsão legal do usufruto vidual é previsão sem restrições, bastando que ocorram os pressupostos para sua configuração, isto é, ausência de comunhão total, constância da sociedade conjugal e não contemplação do cônjuge supérstite, pelo testador, com a propriedade da herança. Os únicos requisitos são o regime do casamento diferente da comunhão universal e o estado de viuvez. REsp 648.072-RJ, Rel. Min. Ari Pargendler, julgado em 20/3/2007.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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