O Estado Democrático de Direito está submetido ao conjunto de leis que o compõe a fim de estabelecer a organização de seu povo e território, observando e garantindo proteção jurídica aos cidadãos, além de promover a segurança individual e coletiva de todos os indivíduos.
Para prover a Paz Social almejada e garantir os valores preconizados pela norma constitucional, o Estado estabeleceu meios jurídicos de legalidade extraordinária específicos as situações de crise. E uma delas é o patamar de pandemia mundial provocada pelo novo COVID-19, o Coronavírus, que levou o Poder Público a reconhecer, por meio do Decreto Legislativo nº 6/2020, a ocorrência do Estado de Calamidade Pública.
O Estado de Calamidade Pública é conceituado como situação atípica provocada por um desastre – aqui relacionado a evento de causa natural – que compromete e afeta a normalidade do funcionamento social, provocando danos e prejuízos à sociedade, afetando a economia, a segurança e o desenvolvimento humano.
A decretação de Estado de Calamidade Pública objetiva a prevenção, constituindo-se de medidas que permitam ao Estado contornar a crise momentânea provocada pelo desastre, uma vez que, reconhecida a situação emergencial, a legislação permite a tomada de uma série de medidas para restaurar a normalidade.
Nesse ínterim, com o intuito de enfrentar o Estado de Calamidade Pública já reconhecido, bem como a situação de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus, foi publicada no dia 22.03.2020 a Medida Provisória de nº 927 (alterada pela MP nº 928, que revogou o art. 18), que traz medidas trabalhistas que deverão ser aplicadas durante o período da pandemia.
As principais medidas adotadas pela MP nº 927/2020 são: a possibilidade de celebração de acordo individual entre empregado e empregador de forma abrangente e com prevalência a legislação; adoção de qualquer modalidade de trabalho a distância, sem a necessidade de anuência do empregado; antecipação de férias individuais e coletivas, com o pagamento do terço constitucional após a concessão; acordos e convenções coletivas poderão ser prorrogados a critério do empregador, dentre outras.
Como é sabido, o Direito do Trabalho foi elevado ao patamar de direitos fundamentais na CF/88, o que significa dizer que, assim como o direito à saúde, à dignidade, à alimentação, a promoção da defesa do trabalhador deve ser vista como sendo um direito fundamental, passando a ser dever do Estado promovê-lo e respaldado no princípio da pessoa dignidade humana.
É o que se depreende da do art. 7º CF/88, que confere aos trabalhadores urbanos e rurais, direitos que visem a melhoria de sua condição social, tais como, o valor social do trabalho, a livre iniciativa, a construção de uma sociedade livre, justa e igualitária e a prevalência dos direitos humanos.
Contudo, o que se viu com a publicação da Medida Provisória nº 927/2020 foi a mitigação de inúmeros direitos garantidos constitucionalmente, sob a alegação de que as medidas por ela autorizadas se justificam em virtude da decretação do Estado de Calamidade Pública.
Ponto crucial na MP nº 927/2020 é que ela não é expressa quanto à possibilidade de redução salarial, contudo o texto do art. 2º dá margem pra que essa flexibilização ocorra a cargo do empregado e empregador, mesmo sem a interferência de entidade sindical, tornando-a dispensável, em completa dissonância com a Constituição Federal.
Deveras, a CF/88 atribui a autonomia negocial coletiva e, portanto, aos sindicatos de classe, papel indispensável de diálogo social como garantia de defesa coletiva dos direitos trabalhistas onde, através da negociação coletiva, confere e possibilita maior proteção ao empregado, com a consequente garantia dos postos de trabalho e a sustentabilidade das atividades econômicas das empresas, sobretudo diante de estados emergência e de calamidade pública, como os vivido em tempos de Coronavírus.
Ora, ao publicar uma Medida Provisória cujo texto confere status de lei às decisões acordadas individualmente, liberando todo e qualquer tipo de acordo entre empregado e empregador é estabelecido, nas entrelinhas, a tomada de medidas contrárias às garantias fundamentais e aos direitos dos trabalhadores.
Não se pode esquecer que a irredutibilidade dos salários é garantia constitucional, não podendo, portanto, ocorrer de qualquer maneira, impondo ao trabalhador a aceitação dessa diminuição salarial através de uma “política de medo”, onde, se assim não for, os trabalhadores do país ficarão desempregados.
O direito ao trabalho como direito fundamental é importante ao desenvolvimento do indivíduo, posto que assegura a dignidade cabível a cada ser humano, seja individualmente, seja na convivência em sociedade, sendo dever do Estado ofertar mecanismos que assegurem e concretizem o cumprimento desses direitos e, por conseguinte, das imposições constitucionais.
No cenário atual é dever do Estado fornecer aos cidadãos instrumentos para o exercício pleno dos seus direitos, perseguindo medidas para que o país volte a ser capaz de gerar renda e o crescimento seja retomado, mesmo após toda a quebra da cadeia produtiva ocasionada pelo COVID-19.
Ocorre que, ao publicar uma Medida Provisória cuja intenção é a de transferir ao trabalhador o prejuízo econômico decorrente da paralisação das atividades no país causados pela pandemia de ordem global, o Poder Público não observou os preceitos constitucionais que regem o Estado Democrático de Direto, tomando, inclusive, uma série de medidas que divergem daquelas adotas por outros países que também vêm sofrendo os efeitos provocados pelo Coronavírus.
Decerto, os direitos fundamentais não possuem caráter absoluto como muito se imagina, sendo possível a sua suspensão e/ou restrição em momentos críticos atravessados pelo Estado, com o intuito de preservar e se alcançar o Bem Comum. Contudo, existem direitos fundamentais invioláveis mesmo em períodos de extrema crise, onde em hipótese nenhuma poderão sofrer qualquer suspensão e/ou restrição e, em havendo, ensejaria violações que vão de encontro ao mínimo indispensável ao homem, sendo um deles os direitos humanos (dignidade da pessoa humana, saúde, alimentação, etc.).
Assim, permitir redução salarial em situações de crise sem qualquer parâmetro e sem intervenção de uma entidade protetiva, é o mesmo que interferir no poder de compra do empregado, já comprometido diante da crise econômica enfrentada pela paralisação das atividades laborais, afetando necessidades básicas e a impossibilidade de custear serviços essenciais, tais como, alimentação, remédios, energia elétrica, água, dentre outras.
Ora, a essência da Constituição Federal é a valorização do indivíduo em todas as suas dimensões, estando presentes o trabalho e o emprego e a garantia ao não retrocesso social, consubstanciando o direito do cidadão frente a ações contrárias às garantias sociais já estipuladas.
Os direitos previstos na Carta Magna são resultados de uma demanda social e democrática, expressos através de movimentos sociais em busca de uma sociedade justa, livre e solidária e de proteção aos direitos fundamentais nela elencados, que não permite, mesmo nos casos de decretação de Estado de Calamidade Pública, que qualquer legislação infraconstitucional mitigue direitos fundamentais.
Por tudo o exposto, não é possível, em nome da crise econômica atravessada pelo COVID-19, que se flexibilize direitos fundamentais a serviço do capital como propôs a MP nº 927/2020, cujos dispositivos violaram uma série de diretrizes constitucionais ao buscar flexibilizar, negociar e reduzir aquilo que é inegociável, a saúde, a segurança, o bem estar e estabilidade financeira do trabalhador, pilares do trabalho sustentável no Brasil conquistados democraticamente para o exercício do pleno emprego.