Uma ode à ineficiência

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Em recente julgamento, o STF entendeu que o prazo do artigo 54 da Lei 9.784/99, quanto aos processos analisados pelo TCU, só passa a correr quando da chegada do processo à Corte de Contas, estimulando a ineficiência administrativa.

Uma ode à ineficiência

 

                        Recentemente, o Supremo Tribunal Federal, no bojo do RE 636553, da relatoria do Excelentíssimo Ministro Gilmar Mendes, definiu tese de repercussão geral que, infelizmente, é uma ode à ineficiência administrativa. Destaco o texto da tese aprovada e depois passo a explicar o porquê da minha conclusão.

 

“Em atenção aos princípios da segurança jurídica e da confiança legítima, os Tribunais de Contas estão sujeitos ao prazo de 5 anos para o julgamento da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma ou pensão, a contar da chegada do processo à respectiva Corte de Contas"

 

                        Definiu-se, portanto, que o prazo de 5 anos, constante do artigo 54 da Lei 9.784/99 passa a valer não da prática do ato de aposentadoria, reforma ou pensão, mas sim da chegada do processo à Corte de Contas.

                        Antes mesmo de dizer o porquê da minha irresignação, explico que, por um momento, achei que o Tribunal avançaria em seu entendimento. Antigamente, consoante consolidada jurisprudência, representada pela inconstitucional Súmula Vinculante nº 3[1], em que sequer havia prazo para manifestação das Cortes de Contas nos processos de aposentadoria, reforma ou pensão e muito menos a ampla defesa e o contraditório, consoante determina o artigo 5º, LIV e LV, de nossa Carta Magna.

                        Alguns julgados, proferidos após a edição da malfadada súmula, avançaram na questão, determinando-se o exercício do direito de ampla defesa nos casos em que a Corte de Contas demora mais de 5 (cinco) anos para apreciar o processo administrativo.[2]

                        Assim, à primeira vista, a decisão proferida pela Corte no último dia 19.2.2020 pode até parecer um avanço. E o é, se a confrontarmos com entendimentos anteriores. Contudo, ainda assim, a decisão concede um salvo conduto ou uma prorrogação de prazo para os Tribunais de contas cumprirem as suas obrigações.

                        Observo que um dos grandes aspectos discutidos no julgamento foi o fato da aposentadoria, e por consequência, pensão e reforma, ser, ou não um ato complexo, que só teria efeito com a manifestação da Corte de Contas sobre a sua legalidade. Esse fator, ao fim e ao cabo, sequer foi considerado. E nem deveria ser, uma vez que este ato passa a gerar efeitos imediatamente.

                        Tanto o é que a Corte de Contas apenas se manifesta sobre a legalidade do ato, não sendo possível a ela reformar o ato caso o considere ilegal. O máximo que pode fazer é devolver o processo à origem, para que o órgão administrativo adeque o ato outrora publicado.

                        O que causa espanto na referida decisão é que o Supremo Tribunal Federal fecha os olhos a expresso comando legal contido no artigo 54 da Lei 9.784/99, dispositivo esse que busca privilegiar a segurança jurídica e a proteção da confiança. Eis o seu teor:

 

Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.

 

                        A norma é irrefutável, acachapante, definitiva. O prazo para anulação dos atos decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados e não da data em que o processo chegou a Corte de Contas.

                        Com efeito, se assim não for, cria-se um prazo diverso na legislação brasileira, aplicável apenas aos Tribunais de Contas. Esse prazo compreende o somatório do tempo em que o órgão emite o ato e encaminha para o órgão de controle e os 5 (cinco) anos a partir de sua chegada.

                        Indago: as Cortes de Contas, que tanto reclamam da alcunha de órgão auxiliar do Poder Legislativo, estão à margem do sistema legal?[3] Por que a elas o prazo de decadência e diversos e para outros órgãos não? Qual o diploma legal que assenta a referida discriminação?

                        A resposta, à primeira pergunta, é um sonoro NÃO. E nem deveria ser, já que um dos princípios informativos da Administração Pública é a eficiência, consoante dispõe o artigo 37, caput, da Constituição Federal.

                        No caso concreto, julgado pelo STF, o ato de aposentadoria do servidor vigia há 7 (sete) anos. Somente por força desse entendimento, absolutamente equivocado e agora reforçado na tese aprovada, o prazo decadencial só passou a contar a partir da chegada do processo na Corte de Contas, ao passo que, para o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, aplicável foi o artigo 54 da Lei 9.784/99.

                        Há inúmeros outros casos. Destaco aqui o julgamento do ato de aposentadoria de servidora pública da Universidade de Brasília, ocorrida em 30.12.1994, consoante publicação no Diário Oficial da União. Sucede que, por demora administrativa, o processo de aposentadoria da Docente somente foi recebido no Tribunal de Contas da União em 22.9.2008, ou seja, quase 14 (quatorze) anos após a publicação da Portaria, quando a sua situação jurídica já estava mais do que consolidada no tempo.

                        Ainda assim, o TCU, no dia 26.2.2013, concluiu pela ilegalidade do ato de aposentadoria, na forma do acórdão 769/2013[4], de sua Primeira Câmara, resultando em redução nos proventos da servidora, sem que ao menos a mesma pudesse retornar ao trabalho, já que, à época do julgamento, já possuía idade superior àquela permitida para a atividade e já tendo sido ultrapassado o incrível prazo de aproximadamente 19 (dezenove) anos da edição do ato que gerou efeitos favoráveis à servidora.

                        Com efeito a decisão da Corte, agora reforçada pelo Supremo Tribunal Federal, vai de encontro ao primado constitucional da segurança jurídica, a proteger os administrados das eventuais mudanças abruptas perpetradas unilateralmente pela Administração Pública nas relações jurídicas entabuladas entre esta última e aqueles. Há, pois, grave violação ao princípio da proteção da confiança, enquanto faceta da segurança jurídica. Nesse particular, destaque para o que discorre o professor Valter Shuenquener, que referido princípio serve para:

 

“materializando o princípio da segurança jurídica, fortalecer o Estado de Direito, que pode ter a sua existência ameaçada pela excessiva intervenção do Estado na autonomia individual. Com esse raciocínio, é possível concluir que o princípio do Estado de Direito também é dotado de um caráter subjetivo. Ele também serve para proteger direitos subjetivos. E isso acontecerá, por exemplo, quando ele for empregado para impossibilitar o desfazimento, pelo Estado e com efeitos retroativos, de decisões administrativas favoráveis aos cidadãos.”[5]

 

                        Voltemos ao princípio da eficiência. Como julgar eficiente a Administração sendo que um de seus órgãos demora 13 anos para encaminhar um processo ao TCU? Recorde-se que o princípio constitucional da eficiência exige do administrador não somente o cumprimento da lei, mas que o faça de modo eficaz, como economicidade.

                        Esse problema seria facilmente resolvido se os órgãos administrativos respeitassem a novíssima Instrução Normativa nº 78/2018[6], do Tribunal de Contas da União, especialmente seus artigos 7º e seguintes, que tratam dos prazos de disponibilização dos atos para controle externo.

                        O artigo 11, da Instrução Normativa, impõe aos órgãos de controle interno que emitam parecer, no prazo máximo de 120 (cento e vinte) dias após o cadastramento no Sistema de Apreciação e Registro dos Atos de Admissão e Concessões (SISAC), sendo que neste prazo devem estar à disposição do Tribunal. Da mesma forma como disposto no artigo 7º, os responsáveis, caso descumpram o prazo, também estão sujeitos às penalidades previstas na Lei 8.443/92.

                        Tais prazos, portanto, são menores do que 1 (um) ano. Ainda assim, sobrariam aproximadamente 4 (quatro) anos para apreciação dos atos, respeitando-se, pois, o prazo da Lei 9.784/99. E assim já era, quando da vigência da Instrução Normativa anterior (55/2007).

                        Veja-se que a decisão do STF premia a ineficiência e define, aqui sim, uma situação de insegurança jurídica. A ineficiência porque, independentemente do tempo que o órgão demorar para enviar o processo, o prazo decadencial só passará a correr a partir de sua chegada na Corte de Contas. E insegurança jurídica porque, conforme o caso base para a definição da tese de repercussão geral e de outro aqui demonstrado, porquanto as relações não se estabilizam nunca, já que os Tribunais de Contas sempre poderão modificar os atos, ao alvedrio do tempo em que praticados e, sobretudo, em favor de um suposto interesse público que não se verifica na espécie.

                        O voto do Ministro Edson Fachin nos trazia pequena esperança, porquanto sua Excelência parece ter compreendido que a edição do ato que gera efeitos favoráveis ao Administrado é o termo inicial para a decadência administrativa, independentemente da necessidade de manifestação, sobre a legalidade, de outro órgão. Contudo, a maioria decidiu de outra forma.

                        Espero que o Supremo Tribunal Federal marque novo encontro com o tema. A Ministra Rosa Weber expressou, em seu voto, que a Corte ainda deve se manifestar se a aposentadoria é, ou não, ato complexo. Isso pode retomar o debate. E espero que caminhe por outro rumo, para que lei seja cumprida e o princípio da eficiência seja privilegiado, como determina o comando constitucional.

                        Isso tudo nos leva a refletir sobre o papel de nossos administradores. Sobre o papel do Poder Judiciário e da Suprema Corte enquanto guardiã da Constituição Federal. E para tanto, urge repensar a Administração Pública, a sua conduta e seus atos. É tempo de revogar a Súmula Vinculante nº 3, já que não se revela possível o afastamento da ampla defesa e do contraditório, em qualquer hipótese, em qualquer órgão, sobretudo em casos que irão refletir no patrimônio do administrado, como é o caso de apreciação de legalidade de aposentadoria, pensão e reforma.

                        Por fim, é tempo de se incutir, na mentalidade dos administradores, que a supremacia do interesse público não significa, de modo algum, o afastamento do direito do particular. Ao contrário, é a garantia dos direitos fundamentais a forma de realização do interesse público. Suplantar qualquer um deles, inclusive a lícita expectativa da manutenção de um direito, significa suplantar o Estado de Direito.

       


[1] Nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão.

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[2] Direito Administrativo. Mandado de segurança. Tribunal de Contas da União. Negativa de registro à pensão por morte. Alegada decadência e violação ao contraditório e à ampla defesa. Revogação de liminar. Efeitos prospectivos. 1. Afastamento da alegada decadência do direito de o TCU rever o ato concessivo da pensão e da alegada violação ao contraditório e à ampla defesa, nos termos da jurisprudência consolidada deste Tribunal. 2. Não se aplica ao Tribunal de Contas da União, no exercício do controle da legalidade de aposentadoria, reforma e pensão, a decadência prevista na Lei 9.784/1999, devendo, no entanto, ser assegurado o contraditório e a ampla defesa somente se decorridos mais de cinco anos desde a entrada do processo no Tribunal de Contas. [MS 30.843, rel. min. Roberto Barroso, dec. monocrática, j. 11-10-2017, DJE 65 de 6-4-2018.]

[3] Eu também concordo que não há um caráter subalterno. No entanto, também não há um caráter de superioridade. Quanto a isso, o Ministro Ayres Britto assim declina: “Diga-se mais: além de não ser órgão do Poder Legislativo, o Tribunal de Contas da União não é órgão auxiliar do Parlamento Nacional, naquele sentido de inferioridade hierárquica ou subalternidade funcional. Como salta à evidência, é preciso medir com a trena da Constituição a estatura de certos órgãos públicos para se saber até que ponto eles se põem como instituições autônomas e o fato é que o TCU desfruta desse altaneiro status normativo da autonomia. Donde o acréscimo de ideia que estou a fazer: quando a Constituição diz que o Congresso Nacional exercerá o controle externo “com o auxílio do Tribunal de Contas da União” (art. 71), tenho como certo que está a falar de “auxílio” do mesmo modo como a Constituição fala do Ministério Público perante o Poder Judiciário. Quero dizer: não se pode exercer a jurisdição senão com a participação do Ministério Público. Senão com a obrigatória participação ou o compulsório auxílio do Ministério Público. Uma só função (a jurisdicional), com dois diferenciados órgãos a servi-la. Sem que se possa falar de superioridade de um perante o outro.” In: BRITTO, Carlos Ayres. O Regime Constitucional dos Tribunais de Contas. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, v. I, nº. 9, dezembro, 2001. Disponível em http://www.direitopublico.com.br. Acesso em 5.3.2020, às 17h14.

[4] ATOS DE CONCESSÃO DE APOSENTADORIA. INCLUSÃO, NOS PROVENTOS, DE PARCELA ALUSIVA À URP DE FEVEREIRO DE 1989, CALCULADA SOBRE A ESTRUTURA ATUAL DE VENCIMENTOS DOS INTERESSADOS. CÔMPUTO DE TEMPO DE ALUNO BOLSISTA. CÔMPUTO DE TEMPO RURAL SEM COMPROVAÇÃO DO RECOLHIMENTO DA RESPECTIVA CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. ILEGALIDADE. NEGATIVA DE REGISTRO. DETERMINAÇÕES À ENTIDADE DE ORIGEM. DESTAQUE DE ATO RECEBIDO HÁ MAIS DE CINCO ANOS NO TRIBUNAL, PARA REALIZAÇÃO DE OITIVA PRÉVIA. LEGALIDADE E REGISTRO DOS DEMAIS ATOS. TCU, Sala das Sessões Ministro Luciano Brandão Alves de Souza, em 26 de fevereiro de 2013. BENJAMIN ZYMLER Relator. Disponível em https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/documento/acordao-completo/769%252F2013/%2520/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/2/%2520?uuid=0cfaa0e0-5f22-11ea-b527-b18870754c29. Acesso em 5.3.2020, às 18h15.

[5] ARAÚJO, Valter Shuenquener de. O princípio da proteção da confiança: uma nova forma de tutela do cidadão diante do Estado. Niterói/RJ: Impetus, 2009, p. 48/49

[6] Disponível em https://portal.tcu.gov.br/fiscalizacao-de-pessoal/home/. Acesso em 5.3.2020, às 17h57.

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