FRONTEIRAS DO PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA

27/03/2020 às 15:25
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O artigo tem como objeto de estudo os limites do princípio da capacidade contributiva, mínimo existencial e confisco. Aborda os seus conceitos e os desafios de delimitação, efetivação e controle jurisdicional.

INTRODUÇÃO

O princípio da capacidade contributiva, inspirado no ideal de justiça distributiva, é decorrente do princípio da igualdade, possui assentamento constitucional e está limitado pelo mínimo existencial e confisco.

Nessa perspectiva, o estudo do mínimo existencial e confisco, como limitações da capacidade contributiva, parte da necessidade não apenas de se estabelecerem limites mais explícitos e estáveis de demarcação do poder de tributar, mas, sobretudo, de se assegurar a efetivação dos direitos e valores plasmados no texto constitucional.

O tema é atual, dado o crescente aumento da carga tributária em nosso país para fazer frente às necessidades públicas cada vez mais complexas e diversificadas. A pandemia do novo coronavírus (COVID-19) aprofunda ainda mais a desigualdade social sendo o princípio da capacidade contributiva e seus limitadores um mecanismo eficaz para a sua mitigação. Nesse sentido, a opção metodológica adotada para a elaboração do presente artigo parte de revisão bibliográfica da doutrina constitucional e tributária acerca dos princípios da igualdade, capacidade contributiva, mínimo existencial e do não-confisco, conjugada com a análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Para tanto, o trabalho está dividido em três tópicos: primeiro, uma abordagem da evolução histórica do princípio da capacidade contributiva; em um segundo momento, a conjugação deste com o princípio da igualdade; e, por fim, um estudo de suas limitações, mínimo existencial e confisco, versando sobre os seus conceitos e os desafios de delimitação, efetivação e controle jurisdicional.

EVOLUÇÃO HISTÓRICA

O princípio da capacidade contributiva está pautado no ideal de justiça distributiva, com a equitativa distribuição de encargos entre os contribuintes para a manutenção do Estado, viabilizando a realização das funções que lhe são afetas.

Gregório (2011), fazendo uma digressão histórica do instituto e tomando por base os estudos de Valentin Jones, informa que a Civilização Egípcia passou a praticar a tributação segundo a riqueza disponível com a ascensão ao trono de Thutmosis III em 1483 a.C.

Respaldado nos estudos de Emilio Giardina, Becker (2013) afirma que o princípio da capacidade contributiva tem a sua gênese no ideal de justiça distributiva construído pelos filósofos gregos, reaparecendo na filosofia escolástica, com a recomposição do sistema aristotélico.

Todavia, foi com a passagem do patrimonialismo para o capitalismo que, segundo Gregório (2011), o princípio da capacidade contributiva se alicerçou como verdadeiro postulado para a tributação.

Neste sentido, Baleeiro (2010) afirma que o princípio da capacidade contributiva adveio da doutrina de Von Iusti, sendo depois difundida na obra A Riqueza das Nações, de 1776, por Adam Smith. A relevante contribuição prestada pela referida obra é assinalada por Costa (2012, p.18), em que cita Adam Smith, o qual sustenta que a justiça na imposição fiscal só pode existir se a obrigação de contribuir para o custeio da despesa pública guardar relação com os haveres dos contribuintes, nisso residindo a “igualdade ou desigualdade da tributação”.

No entanto, o princípio da capacidade contributiva veio a ser positivado apenas na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, em seu artigo 13, com a seguinte redação: “Para a manutenção da força pública e para as despesas de administração é indispensável uma contribuição comum que deve ser dividida entre os cidadãos de acordo com suas possibilidades”.

Sob a influência da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, vários países introduziram em suas Constituições o princípio da capacidade contributiva, passando este a constar na Constituição de Weimar, com a seguinte redação em seu artigo 134: “todos os cidadãos, sem distinção, contribuirão na proporção de seus próprios meios a todos os ônus públicos, em conformidade à lei”.

No Brasil, o princípio da capacidade contributiva constou expressamente na nossa primeira Constituição imperial de 24 de março de 1824, que consignava em seu artigo 179, inciso XV, que “ninguém será exempto de contribuir para as despesas do Estado na proporção de seus haveres”.

As Constituições seguintes de 1891, 1934 e 1937 não trouxeram igual disposição, silenciando-se acerca do presente princípio, o qual voltou a vir expresso no texto constitucional de 1946, por influência de Baleeiro, no artigo 202, com a seguinte redação: “Os tributos terão caráter pessoal, sempre que isso for possível, e serão graduados conforme a capacidade econômica do contribuinte”.

Os textos constitucionais posteriores a 1946 não trataram expressamente do princípio da capacidade contributiva, que voltou ao texto constitucional na Constituição Federal de 1988, no art. 145, § 1°.

CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E O PRINCÍPIO DA IGUALDADE

Os princípios são vetores de direção das demais normas que compõem o nosso sistema jurídico e devem coexistir sem que se possa falar em sobreposição de um em relação a outro. Contudo, o postulado da igualdade, independentemente das menções expressas no texto constitucional a indicar a sua relevância, é um dos maiores princípios a compor e orientar o nosso sistema jurídico, pois está a assegurar política democrática.

O princípio da igualdade, segundo Sarlet (2015), encontra fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana, tendo a Declaração Universal da ONU consignado expressamente que todos os seres humanos são iguais em dignidade e direitos.

Campos (1956 apud Mello, 2015) defende que o primeiro destinatário do aludido princípio é o legislador e, consequentemente, a legislação, sendo que os critérios de política legislativa, ainda que discricionários, têm como limitação fundamental o princípio da igualdade.

Consagrado direito fundamental de primeira geração, o princípio da igualdade recebeu expressa menção no artigo 5°, “caput” da Carta Magna ao dispor que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.

Somam-se a essa previsão várias outras passagens no texto constitucional a reforçar a adoção e importância do princípio da igualdade, dentre as quais destacamos o preâmbulo, que elenca a igualdade como valor supremo de nossa sociedade e, na área tributária, a positivação do princípio no art. 150, II, ao vedar tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente.

Ainda no texto constitucional, encontramos como desdobramento do princípio da igualdade o princípio da capacidade contributiva, o qual, segundo Carrazza (2015), auxilia na realização dos ideais republicanos.

O princípio da capacidade contributiva reforça o ideal do justo distributivo na seara tributária. A necessidade de se distribuir o ônus tributário, ou melhor, as despesas do Estado, entre os seus cidadãos, de forma isonômica, é um ideal, postulado da tributação, mesmo antes de qualquer menção expressa em diploma normativo.

Carvalho (2015) afirma que, mesmo se a Constituição Federal de 1988 não tivesse consignado expressamente o princípio da capacidade contributiva, a exemplo da Constituição Federal de 1967, este seria extraído das dobras do princípio da igualdade. O mesmo autor entende que toda a atividade legislativa deve estar condicionada ao princípio da igualdade, e o seu emprego na seara tributária só se viabiliza quando se considera a capacidade contributiva daquele que vai arcar com o gravame fiscal (Carvalho, 2015).

Nesse sentido, Borges (2003, p. 59) consigna que os indivíduos são “naturalmente desiguais, tanto física como intelectual e economicamente. Essas desigualdades devem ser respeitadas, pois é exatamente em razão delas que se impõe o princípio da igualdade perante a lei.”

O respeito à desigualdade econômica se dá com a adoção do princípio da capacidade contributiva, o qual está baseado na lição aristotélica do justo distributivo, endossada pela célebre frase de Rui Barbosa (1997, p. 26) em sua Oração aos Moços: “A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade”.

No entanto, Mello (2015) aduz que essa notória lição aristotélica é insuficiente, pois dela surgem as seguintes perguntas: Quem são os iguais e os desiguais? Qual o critério de distinção legitimamente manipulável? Neste mesmo sentido, Paula Junior (2012) observa que é no momento da implementação do princípio da igualdade que se encontram as dificuldades e divergências.

Mello (2015) afirma que a compatibilidade das discriminações é aceitável, compatível com o princípio da igualdade, quando da existência de uma “correlação lógica entre o fator erigido em critério de discrímen e a discriminação legal decidida em função dele”, devendo tal correlação ser compatível com os interesses tutelados na lei maior.

No campo tributário, Ávila (2015, p. 200) afirma que a igualdade é garantida quando a lei tem um conteúdo isonômico, diferenciando contribuintes “por meio de fundadas e conjugadas medidas de comparação, atreladas a finalidades constitucionalmente postas.”

A necessária complementação do princípio da igualdade na seara tributária, conforme ensinamento de Carrazza (2015), realiza-se pelo princípio da capacidade contributiva. O aludido princípio refere-se, na lição de Silva (2015, p.223), “à repartição do ônus fiscal de forma mais justa possível”, com a adoção, pela Constituição Federal, da teoria objetiva, com a distribuição da carga tributária com base na capacidade econômica do contribuinte.

Carvalho (2015) informa que o emprego do princípio da igualdade somente se viabiliza na medida em que é considerada a capacidade de contribuir daquele que irá arcar com a exação fiscal. Portanto, o legislador deve ater-se à procura de fatos que demonstrem signos presuntivos de riqueza, uma vez que apenas desta maneira a carga tributária poderá ser distribuída de maneira uniforme.

Assim, a aferição da existência de justificativa racional para a outorga de tratamento jurídico diferenciado se extrai, na seara tributária, dos fatos presuntivos de renda ou riqueza, para fins de se distribuir a carga tributária de maneira equitativa.

O assunto assume maior importância em um cenário de pandemia do novo coronavírus (COVID-19) que aprofunda as desigualdades econõmicas e sociais, empurrando diversos cidadãos para uma condição de vulnerabilidade que deve ser considerada pelo Direito Tributário.  

LIMITES AO PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA

O princípio da capacidade contributiva tem dicção expressa no texto constitucional no art. 145, § 1º, com a seguinte redação: “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte [...]”.

Costa (2012, p. 112) o define como “a aptidão da pessoa colocada na posição de destinatário legal tributário para suportar a carga tributária, numa obrigação cujo objeto é o pagamento do imposto, sem o perecimento da riqueza lastreadora da tributação”.

O referido princípio, na lição de Dutra (2012, p. 288), “tem como fundamentos axiológicos o sobreprincípio da justiça e o princípio da isonomia”. Carrazza (2015) aduz que a capacidade contributiva deve ser entendida como a colaboração de cada indivíduo para as despesas do Estado, de acordo com a sua possibilidade, não sendo qualquer manifestação de riqueza apta a este propósito. Segundo o entendimento de Valadão (2000, p. 246), o referido dispositivo “direciona a instituição e regulamentação das modalidades tributárias”.

A competência para a instituição e regulamentação das modalidades tributárias está jungida a um rol de comportamentos que devem denotar a capacidade contributiva do sujeito passivo da relação tributária, para que a esta possa ser atribuída legitimidade de exigir compulsoriamente a colaboração pecuniária para a manutenção do Estado.

A capacidade contributiva pode ser dividida em dois conceitos: capacidade contributiva objetiva e capacidade contributiva subjetiva.

A capacidade contributiva objetiva ou absoluta volta-se para fatos que constituam, por si, manifestação de riqueza, ou seja, de eventos a serem selecionados pelo legislador, por se tratar de eleição de cunho político concernente ao potencial de contribuir para o custeio das despesas públicas.

A capacidade contributiva subjetiva ou relativa, por sua vez, é aquela que, ao invés de analisar a capacidade sob o ângulo de determinado evento, volta-se para o sujeito passivo, a fim de verificar o seu grau de aptidão para contribuir com o custeio das despesas públicas.

Assim, enquanto a capacidade contributiva objetiva constitui fundamento jurídico da exação e diretriz da definição de sua hipótese de incidência, a capacidade contributiva subjetiva apresenta-se como critério de graduação dessa exação e, ao mesmo tempo, como instrumento de limitação.

O legislador deve escolher situações que apresentem conteúdo econômico, sendo que os impostos, quando ajustados ao referido princípio, permitem aos cidadãos cumprirem seu dever de solidariedade política, econômica e social (Carrazza, 2015).

O ajuste ao princípio da capacidade contributiva passa por limitadores externos, de observância cogente, os quais são o mínimo existencial, em uma das extremidades, e o confisco, na extremidade diametralmente oposta. Nesse sentido, Torres (1995, p. 138) afirma que “a capacidade contributiva começa além do mínimo necessário à existência humana digna e termina além do limite destruidor da propriedade.”

O mínimo existencial empresta imunidade à incidência da norma tributária em virtude da ausência de signo presuntivo de renda ou riqueza; por sua vez, o não confisco é um marco limitador da capacidade contributiva com o escopo de evitar o esgotamento da renda ou riqueza, proporcionando o respeito à propriedade privada e a continuidade da tributação para a manutenção e o desenvolvimento do Estado.

MÍNIMO EXISTENCIAL

O mínimo existencial revela-se direito subjetivo, com proteção negativa contra a intervenção estatal e, ao mesmo tempo, com faceta positiva, concernente às prestações estatais. Tratando das facetas positiva e negativa, Sarlet (2015, p. 101) aduz que “se o mínimo existencial é aquilo que o Estado, em todo o caso, deve assegurar positivamente, também é aquilo que o Estado deve respeitar por força de um dever de não intervenção”.

Buffon (2009) afirma que a observância do princípio da dignidade da pessoa humana está intimamente ligada à garantia do mínimo existencial. Sendo que, para sua concretização, deve-se atribuir máxima eficácia aos direitos sociais de cunho prestacional, que tenham aptidão de assegurar condições mínimas para uma existência digna. De outro lado, é proibido ao Estado cobrar exações que possam atingir o mínimo vital a uma existência digna.

Essa segunda dimensão é chamada de status negativus, a qual, na lição de Torres (PONTES DE MIRANDA, 1987; DÜRIG, 1987 apud Torres, 1990, p. 69), “se afirma principalmente no campo tributário, através de imunidades fiscais: o poder de imposição do Estado não pode invadir a esfera da liberdade mínima do cidadão representada pelo mínimo existencial”.

O mínimo existencial decorre diretamente do princípio da dignidade da pessoa humana e, por impedir a tributação, outorgando direito subjetivo a um conjunto de pessoas, deve ser entendido por imunidade.

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Ressalvamos que essa visão se distancia do posicionamento puramente positivista das imunidades adotado por parte da doutrina. (Cf., entre outros, Carrazza, 2015, e Carvalho, 2015). Para essa corrente doutrinária, as imunidades têm de ter assento constitucional, vale dizer, devem vir de forma expressa no texto constitucional, sendo esta a diferenciação em relação às isenções que, por sua vez, possuem assento em norma infraconstitucional.

Por outro lado, Costa (2012) aduz que as imunidades, além de serem extraíveis em norma expressa do texto constitucional, também podem ser retiradas de princípios albergados constitucionalmente que outorgam direitos públicos a determinadas pessoas de não se submeterem à tributação.

Essa visão mais ampliativa das imunidades nos parece ser a interpretação mais adequada para a devida observância do princípio da dignidade da pessoa humana, tornando imune da incidência da norma tributária o mínimo existencial.

A imunidade do mínimo existencial, como limitação ao poder de tributar, é a que nos interessa tratar para efeito de limite externo do princípio da capacidade contributiva. Costa (2012), com esteio na lição de Sainz de Bujanda (1963), aponta para a impossibilidade de separar o mínimo existencial do princípio da capacidade contributiva, uma vez que a existência deste só é possível quando há riqueza acima do mínimo vital.

Buffon (2009, p. 181) preleciona que:

[…] em qualquer modelo estatal – e no Estado Social principalmente – é inadmissível que o cidadão desprovido de capacidade para prover o seu próprio sustento seja compelido a contribuir para o Estado, especialmente quando este lhe sonega aquilo de mais básico que prometeu prover (saúde, educação, segurança, habitação, salário digno, etc.).

A intributabilidade do mínimo existencial está baseada na dimensão fraternal de se construir uma sociedade solidária, na qual contribuam para a consecução de seus objetivos apenas aqueles que demonstrem ter capacidade contributiva, não se exigindo, dos que não a possuem, o sacrifício do mínimo existencial. À vista disso sustenta Falcão (2013, p. 113) que:

[…] A perspectiva de uma relativa primazia dos ideais de solidariedade foi confirmada, embora de forma paradoxal em razão de suas convicções, por Adam Smith: “nenhuma sociedade, na qual uma parte de seus membros é pobre e miserável, não pode prosperar e ser feliz”. Como tratado anteriormente, essa foi a lógica adotada por Bismarck na consagração dos valores do socialismo de cátedra alemão. O chanceler da unificação pregou que nenhuma sociedade poderia se desenvolver com parte de seus integrantes vivendo na precariedade.

O que se busca do mínimo existencial, em última análise, é uma solidariedade na qual indivíduos de uma mesma sociedade que tenham capacidade tributária amparem aqueles que não a têm, arcando com as despesas para a manutenção e desenvolvimento do Estado.

A fixação do mínimo existencial, conforme lição de Costa (2012, p. 74), há de variar conforme a conceituação de “necessidades básicas”, mudando, pois, seu entendimento segundo os aspectos temporal e espacial.

A extensão normativa do mínimo existencial deve estar amparada nas condicionantes sociais, políticas e econômicas existentes no momento de sua análise. A interpretação adequada, segundo Hesse (1991, p. 22-23) “é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação”.

A Constituição Federal de 1946 delineava a intributabilidade do mínimo existencial, ao constar a seguinte redação no seu artigo 15, § 1º: “são isentos do imposto de consumo os artigos que a lei classificar como o mínimo indispensável a habitação, vestuário, alimentação e tratamento médico das pessoas de restrita capacidade econômica”.

Por sua vez, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 dispõe em seu art. 25, 1, o que segue:

Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle.

Na Constituição Federal de 1988, no que pese não existir dicção expressa acerca da intributabilidade do mínimo existencial, a vedação se extrai do modelo social adotado e do conjunto de normas e princípios integrantes do nosso ordenamento jurídico vigente.

Nesse sentido, Torres (1995, p. 127) ensina que na ausência de previsão expressa no texto constitucional, o mínimo existencial deve ser procurado “na idéia de liberdade, nos princípios constitucionais da igualdade, do devido processo legal e da livre iniciativa, nos direitos humanos e nas imunidades e privilégios do cidadão”.

Torres (1995, p. 132) complementa o seu entendimento com a constatação de que o mínimo existencial também está implícito “na proclamação do respeito à dignidade humana, na cláusula do Estado Social de Direito e em inúmeras outras classificações constitucionais ligadas aos direitos fundamentais”.

A referida procura pelo mínimo existencial no texto constitucional já apresenta resultado no seu preâmbulo, o qual consagra diversos valores supremos, dentre os quais a liberdade, a segurança, o bem-estar e a justiça, não cabendo ao Estado tributar o patrimônio indispensável à consecução destes objetivos (Carrazza, 2015).

Prosseguindo a leitura do texto constitucional, no primeiro artigo está plasmada como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana, sobre a qual se ancora o mínimo existencial. A dignidade da pessoa humana, segundo Pezzi (2011), dá contornos ao núcleo essencial do direito, emprestando imunidade contra o agir estatal e sendo de extrema valia para a seara do direito tributário.

Por sua vez, o art. 3º da Constituição Federal, ao determinar que o Estado deve intervir com o escopo de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, também empresta fundamento à intributabilidade do mínimo existencial como meio de alcançar esse objetivo e implementar a igualdade em seu aspecto substancial.

O parâmetro para estabelecer o mínimo existencial também é encontrado no texto constitucional, o qual, no seu art. 7º, IV, ao tratar do salário mínimo, dispõe que este deve ser capaz de atender às necessidades vitais básicas do cidadão e de sua família “com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”, sendo este mais extensivo do que o da Constituição de 1946, em seu art. 15 § 1º.

O supracitado parâmetro também é encontrado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, conforme se extrai da leitura dos julgados da ADInMC 2.010 – DF, DJ 12.04.2002 e ADIn-MC-QO 2.551-1 – DF, DJe 15/04/2011, ambos sob a relatoria do Ministro Celso de Mello, e do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial 1.185.474-SC, sob a relatoria do Ministro Humberto Martins.

Em relação ao último julgado, o Superior Tribunal de Justiça deixa claro que o mínimo existencial não pode ser entendido apenas como o mínimo para a sobrevivência, tendo conteúdo muito mais abrangente, para incluir condições socioculturais, com o escopo de assegurar inserção social mínima.

Para a quantificação do mínimo existencial, Zilveti (2004) propõe a realização de censo demográfico e social com o escopo de subsidiar o legislador a apurar os custos com as necessidades básicas, as elencadas no art. 7º, IV, para o indivíduo e sua família, em diferentes regiões do país.

A proposta do autor é inspirada na quantificação de mínimo existencial utilizada pela Suíça, país com extensão territorial de 41.285 km², correspondente ao Estado do Rio de Janeiro (43.696 km²), onde, em determinados locais, o mínimo existencial chega a ser quase o dobro do que o de outras localidades do mesmo país.

Perfilhamos do mesmo entendimento, sobretudo em um país de dimensões continentais e com tantas diferenças regionais. Ademais, a realização de pesquisa para se apurar o mínimo existencial regionalizado não parece ser tarefa que ensejaria maiores dificuldades e auxiliaria na construção de uma faixa de isenção, sobretudo do imposto de renda, mais próxima da realidade local.

No âmbito do Poder Judiciário, questão das mais interessantes é a aplicabilidade do princípio da intributabilidade do mínimo existencial. Becker (2013, p. 523) afirma que “o juiz pode declarar a inconstitucionalidade da lei tributária exclusivamente sob o ângulo do legislador ordinário e nunca sob o ângulo de um determinado indivíduo que realizou a hipótese de incidência no caso singular”.

Becker (2013, p. 524) fundamenta o seu posicionamento pela inadmissão de o juiz deixar de aplicar a lei tributária em cada caso concreto singular, pois, assim agindo, resultaria em “perda da certeza e praticabilidade do direito; desconhecimento que a regra jurídica deforma a realidade e lhe imprime determinismo artificial; substituição do direito pela moral; confundir validade e justiça da regra jurídica e inversão de toda a fenomologia jurídica”.

Defende posicionamento diametralmente oposto Costa (2012, p. 114), ao consignar a viabilidade de, no caso concreto, se apurar a inconstitucionalidade de determinada imposição tributária, devendo o magistrado, “diante de uma situação em que constatar a ausência de capacidade contributiva relativa ou subjetiva ou o excesso de carga fiscal sobre determinado sujeito, negar efeitos à lei impugnada in casu.”

Corroboramos com o posicionamento quanto à viabilidade de o magistrado, no caso concreto, reconhecer a ofensa ao mínimo existencial, afastando a incidência da norma tributária em face do princípio da inafastabilidade da jurisdição.

O princípio da inafastabilidade da jurisdição não se resume à representatividade de direitos junto ao Poder Judiciário, mas à efetivação substancial desses direitos, vale dizer, a exequibilidade do direito vindicado.

A própria noção de neoconstitucionalismo desenvolvida a partir do presente século se afasta da visão de um texto constitucional atrelado à concepção de mero limitador do Poder Público, para dirigir-se à eficácia da Constituição, tomado este como instrumento efetivo de concretização dos direitos fundamentais.

Excluir a possibilidade de proteção ao mínimo existencial pela via judicial de um indivíduo que realizou a hipótese de incidência no caso singular constitui ofensa grave e frontal ao direito fundamental do acesso à justiça e uma negativa à efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, nos termos do art. 1º, III da vigente Constituição Federal.

Os Poderes Públicos, de todas as esferas, estão vinculados às normas constitucionais. A impossibilidade de o magistrado analisar ofensa ao mínimo existencial no caso concreto olvida a legitimidade do Poder Judiciário em controlar os atos e omissões dos Poderes Públicos e fere o próprio princípio da supremacia da Constituição, ao negar proteção a um direito inspirado diretamente na dignidade da pessoa humana, negando sua fundamentalidade.

Cumpre registrar, por necessário, que, quando o magistrado afasta, no caso concreto, a incidência de norma tributária com efeito confiscatório, ele o faz sem que igual vedação seja discutida na doutrina. São dois lados da mesma moeda, dois limites externos de um mesmo princípio, que merecem igual apreciação por parte do Poder Judiciário.

Entendemos que mecanismos processuais plurais são previstos pelo novo Código de Processo Civil para contornar eventuais instabilidades ocasionadas por decisões que venham a afastar a incidência de normas tributárias no caso concreto.

Os precedentes vinculantes e mesmo os não vinculantes (persuasivos ou argumentativos) podem e devem ser utilizados para mitigar a liberdade de atuação jurisdicional no afastamento de normas tributárias em casos concretos, na hipótese de sua incidência sobre o mínimo existencial. A referida técnica, base do sistema jurídico anglo-saxônico e adotada com bastante ênfase pelo CPC de 2015, empresta maior uniformidade e previsibilidade às decisões judiciais e, por consequência, segurança jurídica.

O controle jurisdicional do princípio da intributabilidade do mínimo existencial em casos concretos se coaduna com o direito fundamental à inafastabilidade da jurisdição, onde se extrai de forma expressa do texto constitucional que nenhuma lesão ou ameaça a direito pode ficar excluída da apreciação do Poder Judiciário, sobretudo quando a lesão ou ameaça se volta contra o princípio basilar da dignidade da pessoa humana.

Necessário pontuar, igualmente, que a referida decisão judicial será passível de recurso e deverá respeitar as exigências de contraditório prévio e de fundamentação analítica, nos moldes do art. 927, § 1º do CPC/2015.

Por outro lado, entendemos não caber ao Poder Judiciário, na ausência de critérios estabelecidos pelo legislador, definir o que seja o mínimo existencial de forma abstrata, agindo como legislador positivo.

Nesse sentido, Amaral (2013) faz referência à decisão do 1º Senado da Corte Constitucional Alemã de 09 de fevereiro de 2010 que, ao julgar a inconstitucionalidade da unificação de benefícios sociais sob o fundamento de incompatibilidade com a garantia do mínimo existencial, o benefício básico concedido para adultos e crianças, não estabeleceu novos parâmetros, por entender que é de competência do legislador assim definir o nível mínimo do benefício. A Corte manteve a validade dos dispositivos tidos por inconstitucionais até 31 de dezembro de 2010 para que o Poder Legislativo aprovasse lei substitutiva, ficando esta obrigada, por força da decisão, a informar os métodos, estimativa e cálculos utilizados.

À guisa desse entendimento, sustentamos que a estipulação de critérios, de forma abstrata, do mínimo existencial, configura invasão do Poder Judiciário na esfera de competência do Poder Legislativo. No entanto, a despeito de não poder o Poder Judiciário estabelecer critérios abstratos do que seja o mínimo existencial, compete a este verificar se a escolha do legislador da hipótese de incidência tributária recai sobre signo presuntivo de renda ou capital.

Neste sentido, Becker (2013, p. 524) sustenta que o magistrado tem a obrigação jurídica de declarar “a inconstitucionalidade da lei tributária se o legislador tiver escolhido para composição de sua hipótese de incidência fatos que não são signos presuntivos de renda ou capital acima do indispensável”. Zilveti (2004, p. 223), por sua vez, entende que:

O direito constitucional do contribuinte deve conter o poder de tributar do Estado, ativamente, por meio de ação, pelo controle difuso de constitucionalidade (mandado de segurança, por exemplo), e pelo controle concentrado (ação direta de inconstitucionalidade – ADIN -, por exemplo). O papel do controle jurisdicional é de reprimir o abuso do legislador tributário que desrespeite o mínimo existencial e, portanto, a capacidade contributiva do cidadão.

Outrossim, além das circunstâncias sociais e econômicas, o parâmetro do mínimo existencial deve ser estabelecido em relação a cada espécie tributária, levando em consideração, no curso do processo legislativo de elaboração da lei, a finalidade e estrutura da exação.

Conclui-se que o mínimo existencial tem fundamento na Constituição e não na lei, estando amparado pelo princípio da dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade, solidariedade e no objetivo de redução das desigualdades regionais e sociais, resultando na necessidade de efetivação imediata.

NÃO-CONFISCO

O princípio do não confisco atua como instrumento limitador na outra ponta da capacidade contributiva e, ao contrário do mínimo existencial, tem dicção expressa no plano constitucional no artigo 150, IV.

A proibição de tributo com efeito confiscatório passou a constar expressamente apenas com a Constituição Federal de 1988. Em todas as Constituições brasileiras anteriores, desde a imperial de 1924, passando pelas de 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1969, não havia menção expressa de proibição do confisco tributário.

Machado (2009) esclarece que a presente norma tem natureza meramente explicitante, pois a vedação de confisco se extrai do próprio direito de propriedade, direito fundamental garantido no art. 5º, XXII da Constituição Federal.

Além da necessidade de proteção ao direito fundamental à propriedade, o efeito confiscatório do tributo provoca efeito autofágico, que deve ser combatido, em razão da necessidade de a atividade geradora de recursos se retroalimentar para a contínua e permanente manutenção e desenvolvimento do Estado.

A referida proibição dirige-se ao efeito confiscatório do tributo, não podendo este servir de instrumento para o confisco. Contudo, no próprio texto constitucional encontramos dispositivos autorizando a subtração total ou substancial da propriedade, mas sob o viés de pena.

Nesse sentido, a perda de bens tem previsão na Constituição Federal em seu artigo 5° XLVI, “b”, mas como sanção penal. Igualmente, o artigo 243 caput prevê a sanção de subtração total da propriedade quando nesta forem encontradas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou nela ocorra a exploração de trabalho escravo.

O mesmo artigo 243, em seu parágrafo único, também por força da Emenda Constitucional nº 81/2014, passou a estabelecer o confisco de todo bem que tenha valor econômico decorrente do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração do trabalho escravo.

Reforçamos que as três possibilidades tratadas distinguem-se da proibição do artigo 150, IV, pois são decorrentes de ato ilícito, enquanto o tributo, conforme se depreende da sua própria conceituação no artigo 3º do Código Tributário Nacional, não constitui sanção por ato ilícito.

Costa (2012, p. 83) define confisco como “a absorção total ou substancial da propriedade privada, pelo Poder Público, sem a correspondente indenização”.

Contudo, no que pese a conceituação do presente instituto não apresentar grandes celeumas ou diferenciações por parte da doutrina, a sua delimitação é tormentosa. Delimitar com precisão este instituto é uma tarefa que gera grandes dificuldades na seara tributária, não existindo critério predeterminado a apontar o que seja confiscatório. Dutra (2010, p. 113) consigna que “situações absurdas são facilmente perceptíveis, e quanto a estas não existe discussão. Todavia, o grande problema reside nas situações intermediárias.”

A delimitação do que venha a ser ou não confiscatório é, na lição de Baleeiro (2010, p.903), um problema econômico facilmente percebido com diversos exemplos em que a tributação progressiva pode chegar próxima dos 100% da renda sem que, com isso, possamos afirmar ser ela confiscatória.

Exemplo clássico para ilustrar a situação é a elevadíssima alíquota do IPI sobre o cigarro, sem que com isso possamos falar em efeito confiscatório. No presente caso registra-se o caráter extrafiscal da exação, com o escopo de desestimular o consumo e mitigar as despesas, na área da saúde, geradas com o seu consumo.

Não por outro motivo, a explicitação do que venha a ser confisco não é encontrada em nenhuma lei infraconstitucional, nem sequer no Código Tributário Nacional encontramos uma única menção à expressão confisco. Neste sentido, preleciona Becho (2009, p. 470):

[...] o legislador não deve laborar buscando uma definição ou estipulando os limites para o que seja uma tributação que tenha efeitos confiscatórios. O reconhecimento para a tributação confiscatória exige uma análise fática e conjuntural, que é alterada por circunstâncias econômicas, nos moldes que o princípio da capacidade contributiva, bem como por circunstâncias sociais, dependendo do retorno que o Estado dá ao contribuinte e aos demais membros da sociedade, pelos tributos que arrecada.

A tributação extrafiscal é outro elemento a ser considerado para a aferição da razoabilidade e proporcionalidade da tributação em casos concretos. No que pese a extrafiscalidade mitigar a necessidade de observância ao princípio da capacidade contributiva, esta ainda está sujeita aos limites do mínimo existencial e não confisco, mas com contornos próprios à sua natureza. Assim, caberá ao Poder Judiciário, em última análise, verificar se determinada exação é ou não confiscatória, com fundamento nas circunstâncias singulares do caso submetido à apreciação.

Valadão (2012), com amparo na lição de Hugo de Brito Machado, informa que os princípios positivados no texto constitucional previnem eventuais tentativas de agressão aos direitos fundamentais, ficando a cargo do Poder Judiciário a análise do caso concreto.

O Supremo Tribunal Federal, em sede de controle abstrato de constitucionalidade, tem admitido a discussão do efeito confiscatório do tributo, conforme julgamento da ADIMC 1.075-1/DF, sob a relatoria do Ministro Celso de Melo.

Outrossim, a Suprema Corte firmou entendimento na ADInMC 2.010 – DF no sentido de que para análise do efeito confiscatório deve ser considerada toda a carga tributária a incidir sobre determinado patrimônio do contribuinte. Contudo, com o escopo de assegurar a manutenção do pacto federativo, a carga tributária a ser considerada é a de um único ente isoladamente. Desta forma, não se leva em consideração a carga tributária da União, do Estado e do Município em conjunto, mas sim a totalidade da carga tributária de cada um destes entes.

A despeito de o art. 150, IV da Constituição Federal referir-se a tributo, o Supremo Tribunal Federal tem estendido esta vedação de efeito confiscatório para a multa.

Nesse sentido, na referida ADIMC 1.075-1/DF, sob a relatoria do ministro Celso de Mello, em sede de medida cautelar, foi reconhecida a ofensa ao princípio do não confisco do art. 3º e seu parágrafo único da Lei nº 8.846/94, que instituiu multa de 300% (trezentos por cento) sobre o valor do bem objeto da operação ou do serviço prestado, pelo descumprimento de obrigação acessória, consubstanciada na não emissão de nota fiscal.

Em outra oportunidade, em sede do RE 582.461/SP, DJe de 18/08/2011, sob a relatoria do Ministro Gilmar Mendes, o Supremo Tribunal Federal volta a analisar multa moratória no percentual de 20% (vinte) por cento, sob a luz do princípio do não confisco, mas para dessa vez entender pela ausência de caráter confiscatório, sob o fundamento de que tal percentual está dentro dos limites aceitos pela jurisprudência daquela corte.

Outrossim, o Supremo Tribunal Federal, no Agravo Regimental em Recurso Extraordinário 748.257/SE, sob a relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, utilizando como precedentes as ADIMC 1.075-1/DF, relatoria do Ministro Celso de Melo; ADI 551/RJ, relatoria do Ministro Ilmar Galvão; RE 657.372 – AgR/RS, relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski; RE 91.707/MG, relatoria do Ministro Moreira Alves; RE 81.550, relatoria do Ministro Xavier de Albuquerque, entendeu serem abusivas as multas fixadas que superam o percentual de 100% (cem por cento).

Interessante pontuar, acerca do tema, que a Constituição Federal de 1934, em seu artigo 184, parágrafo único, estabelecia percentual máximo de 10% (dez por cento) sobre a importância do débito para as multas de mora por falta de pagamento de impostos ou taxas, disposição que não se repetiu nas Constituições posteriores.

Acreditamos que a estipulação de patamares máximos, de modo abstrato, construídos pela Constituição de 1934, bem como pelos julgados do Supremo Tribunal Federal, não parecem ser a melhor técnica a ser adotada para as multas de natureza penal tributária.

A aplicação da multa deve estar norteada pelos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, mas em relação, sempre, a casos concretos, ou melhor, às condutas reputadas ilícitas. A valoração da conduta é que irá nortear o patamar da multa a ser aplicada, podendo o percentual ser de mais de 100% (cem por cento) quando percentual inferior não se mostrar suficiente para o cumprimento da finalidade pedagógica e, sobretudo, inibitória da conduta que se reputa indesejada pelo ordenamento jurídico tributário.

O elemento pedagógico-desestimulador inibe o infrator da reiteração do ilícito que ensejou a aplicação da multa, devendo guardar harmonia, não com a vantagem tributária, mas com a intensidade da conduta proibida pelo ordenamento jurídico.

Por essa razão, a não emissão de nota fiscal concernente à venda de determinada mercadoria pelo valor de R$ 5,00 (cinco reais) não fornece parâmetro para a fixação da multa, a qual deve levar em consideração a gravidade da conduta em si, sob viés punitivo e suficientemente inibitório da prática de novas condutas.

O Ministro Sepúlveda Pertence, por oportunidade da ADIMC 1.075-1/DF, chegou a se manifestar nesse sentido ao diferenciar a multa moratória da típica multa penal, devendo, para esta última, a vantagem tributária decorrente da infração ser menor do que o risco desta, a fim de que o risco não valha a pena ser corrido.

Em síntese, esta vedação constitucional dirigida ao legislador em um primeiro momento e ao intérprete e aplicador da norma, ao Poder Judiciário, em um segundo momento, deve ser analisada à luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, com a perspectiva de que a tributação atinja o seu fim sem comprometer o exercício de direitos individuais e sociais contidos no texto constitucional, garantindo às pessoas existência digna.

CONCLUSÃO

O princípio da capacidade contributiva, instrumento segregador de indivíduos conforme o poder econômico, inspirado no ideal de justiça fiscal, encontra previsão expressa na Constituição Federal de 1988. Para a arrecadação de tributos, fonte primordial das receitas públicas, há a necessidade de se delinear a capacidade contributiva, não podendo esta incidir aquém do mínimo, para não incorrer em ofensa ao princípio da intributabilidade do mínimo existencial e, além do máximo, para não resultar confiscatória.

A necessidade de estabelecer limites mais explícitos e estáveis de demarcação do poder de tributar é crucial para que se possa garantir a todos os cidadãos que serão tratados igualitariamente.

Se o Estado existe em razão do homem, e por isso lhe cabe o dever da prática de ações positivas de gestão dos recursos públicos de forma equitativa e economicamente eficiente, também lhe cabe, por dever da prática de ação negativa, a não tributação do mínimo existencial, para que aquelas ações que buscam a efetivação de direitos sociais não sejam anuladas por esta.

A vedação de tributação do patrimônio necessário para a manutenção de uma vida digna constitui importante limitador do princípio da capacidade contributiva e assume relevância e imperiosidade para a construção de um Estado justo e de bem-estar social, capaz de diminuir desigualdades sociais e garantir o seu pleno desenvolvimento econômico.

Por outro lado, a tributação confiscatória afronta o direito fundamental de propriedade e atenta para a sobrevivência do próprio Estado Fiscal, esgotando fonte de recursos necessários para o custeio de direitos fundamentais e sociais consignados no texto constitucional.

Assim, o incremento do sistema de arrecadação encontra seu limite no ordenamento jurídico pátrio, cabendo ao Poder Judiciário, na análise de casos concretos, prezar pela higidez do sistema e contenção do avanço da carga tributária para fora das fronteiras delineadas pelo mínimo existencial e não confisco.

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Sobre o autor
Alexandre Machado de Oliveira

Mestre em Direito Tributário, Financeiro e Econômico, pela Universidade Católica de Brasília. Juiz de Direito do Estado de Alagoas. Professor Universitário. Autor do livro "A Proteção do Minimo Existencial no Direito Tributário" 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019"

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OLIVEIRA, Alexandre Machado de. A Proteção do Mínimo Existencial no Direito Tributário. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

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