Das mudanças na Lei Maria da Penha: agressor obrigado a ressarcir o SUS, amparo à vítima ou ao Estado?

30/03/2020 às 22:07
Leia nesta página:

Este breve artigo aborda e questiona as medidas tomadas por parte do Estado em relação ao combate à violência doméstica.

A violência doméstica e familiar é, de modo infeliz, a realidade de muitas mulheres Brasil afora. Em pesquisa realizada no ano de 2018, constatou-se que cerca de 28% das mulheres brasileiras acima dos 16 anos já sofreram algum tipo de violência, sendo 42% em ambiente doméstico 1.

Não sendo tal violência um tema recente, ao longo dos anos tem-se estudado inúmeras formas de tornar a Lei 11.340/06, conhecida por Lei Maria da Penha, mais efetiva no combate a violência doméstica. Certo é que tal lei trouxe uma inovação legislativa, bem como inovação para as políticas públicas ao impor ao Estado a obrigação de assegurar os mecanismos de coibição de violência no ambiente doméstico e familiar. Entretanto, como toda e qualquer norma, necessita se adaptar conforme o tempo e os desdobramentos sociais.

Recentemente, virou lei o Projeto de Lei da Câmara nº 131 de 2018, que responsabiliza o agressor pelo ressarcimento dos custos de serviços de saúde prestados pelo SUS às vítimas de violência doméstica e familiar. Deste modo, a Lei 13.871/2019, derivada do supramencionado projeto, altera a Lei Maria da Penha, acrescentando três parágrafos ao art. 9, quais sejam, os §§4, 5 e 6, nos seguintes termos:

Art. 9º

[...]

§ 4º Aquele que, por ação ou omissão, causar lesão, violência física, sexual ou psicológica e dano moral ou patrimonial a mulher fica obrigado a ressarcir todos os danos causados, inclusive ressarcir ao Sistema Único de Saúde (SUS), de acordo com a tabela SUS, os custos relativos aos serviços de saúde prestados para o total tratamento das vítimas em situação de violência doméstica e familiar, recolhidos os recursos assim arrecadados ao Fundo de Saúde do ente federado responsável pelas unidades de saúde que prestarem os serviços

§ 5º Os dispositivos de segurança destinados ao uso em caso de perigo iminente e disponibilizados para o monitoramento das vítimas de violência doméstica ou familiar amparadas por medidas protetivas terão seus custos ressarcidos pelo agressor.

§ 6º O ressarcimento de que tratam os §§ 4º e 5º deste artigo não poderá importar ônus de qualquer natureza ao patrimônio da mulher e dos seus dependentes, nem configurar atenuante ou ensejar possibilidade de substituição da pena aplicada.” (NR)

Consoante aos supracitados artigos, entende-se que o agressor deverá ressarcir todos os danos causados, incluindo os custos de atendimento à vítima pelo SUS e, ainda, deverá ressarcir os custos com dispositivos de segurança usados para monitorar as vítimas em estado de perigo iminente.

Não obstante, sem adentrar no mérito da efetividade de tal medida, cabe o seguinte questionamento: quando o agressor é obrigado a ressarcir os custos do SUS, a medida visa amparar a vítima ou apenas reembolsar o Estado?

Políticos e burocratas convictos raramente pensam no indivíduo sem antes garantirem medidas que sustentem continuamente o Estado. Neste sentido, questiona-se se o dispositivo em comento tem por finalidade a proteção à mulher ou apenas antepor o Estado, atenuando os prejuízos causados por sua má gestão de recursos, inclusive – e principalmente - na saúde.

Em que pese seja um assunto sensível, urge salientar que tanto o agressor quanto a vítima já pagam por aquele atendimento, afinal, são todos contribuintes. Cobrar o agressor pelo atendimento prestado à vítima que, frisa-se, é garantido constitucionalmente, independentemente da situação, evidencia um propósito meramente paliativo, onde a preocupação com os custos gerados ao Estado se sobrepõe a preocupação em proteger a vítima de violência doméstica.

Em síntese, os dispositivos ora examinados são, penosamente, mais uma forma de inflar a Lei Penal, tornando-a extensa e pouco efetiva, com dispositivos dispensáveis. A título de exemplo desta dispensabilidade, o Código Civil associado ao Código Penal já impõem indenização a quem quer que tenha sido vitima de um crime. Ainda, possibilita que o SUS possa também pedir indenização.

Levando-se em conta o contexto social e a situação econômica de vítima e agressor, talvez o ressarcimento sequer aconteça. Desta forma, a medida terá o mesmo efeito das medidas propostas pelo Código Civil, havendo punição apenas na esfera cível e não penal.

Isto posto, a partir da análise dos dispositivos acrescentados à lei objeto do presente artigo, conclui-se que o legislador buscou, ainda que de forma sutil, priorizar o Estado e garantir que este não tenha maiores gastos decorrentes da violência, especialmente a violência doméstica. A proteção à mulher, que deveria ser o objetivo substancial da lei, vem apenas como um acessório, algo complementar. Não houve, nesta lei, o devido reconhecimento do princípio da dignidade humana, o que fica evidente quando tutelar a vítima torna-se uma finalidade subsidiária.

Sem desmerecer, em hipótese alguma, as tentativas de aprimorar a lei penal e assegurar a tutela do bem jurídico em questão, deve-se considerar que a proteção social, em um Estado Democrático de Direito, é fundamentada nos valores da dignidade da pessoa humana. O Estado tem o múnus de efetivar a proteção aos bens jurídicos mais relevantes para a sociedade.

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Sendo a finalidade do Direito Penal tutelar os bens jurídicos tidos como valiosos e essenciais à sobrevivência do indivíduo, e a pena ser o instrumento coercitivo pelo qual o Estado protege tais bens, não é nem um pouco meritório a criação de um dispositivo que, ainda que sutilmente, revela uma preocupação meramente pecuniária do legislador.

Destarte, cabe a seguinte reflexão: a lei está tutelando a vítima ou apenas os interesses do Estado?


Nota

1 Dados levantados pelo DataFolha para a ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Disponível em <https://www.forumseguranca.org.br/>

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Sobre a autora
Mayara Baldo de Oliveira

Advogada. Pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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