Assistência inadequada a intercambistas – hipóteses de responsabilização judicial

01/04/2020 às 15:34
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O desamparo e a negligência a intercambistas ensejam a indenização por danos morais, materiais e até a restituição de parcela dos valores pagos.

O sonho de imergir em uma cultura estrangeira, por meio do estudo de línguas ou a trabalho, é compartilhado por muitos jovens brasileiros. Em 2018, esse sonho tornou-se realidade para 365 mil pessoas, conforme levantamento da Associação das Agências de Intercâmbio no Brasil[2]. Todavia, a falta de assistência adequada ao intercambista no exterior pode trazer abalos financeiros e emocionais que arruínam a experiência tão aguardada.

Segundo o Código de Defesa do Consumidor (CDC), a clara informação quanto aos serviços contratados constitui direito básico, incumbindo ao prestador a “especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem” (art. 6º, III, do CDC).

Na contramão da obrigação legal atribuída às empresas prestadoras do serviço de intercâmbio, começam a ganhar corpo os casos judiciais nos quais o intercambista se depara com condições totalmente diferentes das informadas no momento da contratação, a exemplo das precárias condições das hospedagens oferecidas, cenário que caracteriza dano moral passível de indenização:

JUIZADO ESPECIAL CÍVEL. DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. VÍCIO DO SERVIÇO. PRETENSÃO CONDENATÓRIA. SUJEIÇÃO A PRAZO PRESCRICIONAL. DECADÊNCIA AFASTADA. CONTRATO DE INTERCÂMBIO CULTURAL. HOSPEDAGEM DE QUALIDADE INFERIOR À CONTRATADA. DESCUMPRIMENTO PARCIAL DO CONTRATO. DANO MORAL CONFIGURADO. (...)

II. A recorrida celebrou com a ré contrato de intercâmbio cultural, no qual se presume que as experiências devem ser relativas à aprendizagem do idioma e ao contato com o meio sócio-cultural do país e com pessoas de diversas nacionalidades. Presume-se também que tenha que vivenciar situações em que desenvolva a responsabilidade, daí porque é razoável que se torne responsável por seus pertences e pela preservação da limpeza do ambiente. No entanto, não é de se esperar que já encontre um local sem cuidado com higiene e que seja a estudante a responsável por tornar aquele lugar aprazível, o que seria tarefa da contratada. III. Em que pese o descumprimento contratual seja apenas parcial, considerando as circunstâncias do caso concreto está configurado o dano moral. (...)

(TJ-DF 07020797620188070011 DF 0702079-76.2018.8.07.0011, Relator: ALMIR ANDRADE DE FREITAS, Data de Julgamento: 06/02/2019, 2ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do DF, Data de Publicação: Publicado no DJE : 13/02/2019 . Pág.: Sem Página Cadastrada.)

A disponibilização de hospedagem com estrutura física inferior a razoavelmente esperada (ex. quarto/cama compartilhados, falta de internet/energia, vizinhança perigosa, etc.) destoa, portanto, da obrigação legal à prévia prestação de informação clara e adequada.

No âmbito da hospedaria, as hipóteses de violação ao código consumerista não se restringem à infraestrutura disponibilizada. Sendo o convívio residencial um dos traços distintivos da experiência de intercâmbio, incumbe à agência apresentar o perfil de características básicas dos moradores da residência.

A título de exemplo, tem-se que a alocação de uma jovem, sozinha, em casa habitada, de forma exclusiva ou majoritária, por homens constitui fato relevante a ser previamente realçado à intercambista e/ou responsáveis[3] – dever cuja inobservância se amolda ao conceito legal de publicidade enganosa por omissão: “a publicidade é enganosa por omissão quando deixar de informar sobre dado essencial do produto ou serviço.” (art. 37, §3º, do CDC). Acaso tal informação não tenha sido previamente veiculada de forma inequívoca, incumbe à agência providenciar a pronta realocação da intercambista.

Nos contratos de intercâmbio voltados a programas de trabalho, voluntário ou remunerado, igualmente verifica-se a caracterização de dano moral na alocação do intercambista em projetos de gênero ou qualidade diversas do pactuado, bem como na ausência de assistência na busca por emprego no destino estrangeiro:

JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS. CONSUMIDOR. RECURSO DO AUTOR. NÃO RECOLHIMENTO DO PREPARO. PEDIDO DE GRATUIDADE DE JUSTIÇA NÃO FORMULADO EM SEDE RECURSAL. DESERÇÃO. RECURSO NÃO CONHECIDO. RECURSO DA RÉ. CONTRATO DE INTERCÂMBIO CULTURAL. FRUSTRAÇÃO DA EXPECTATIVA DE EMPREGO. VIOLAÇÃO AO DIREITO DE INFORMAÇÃO. DANO MORAL CONFIGURADO. RECURSO DA RÉ CONHECIDO. IMPROVIDO. SENTENÇA MANTIDA (...)

7. Se, por um lado, a desistência de freqüentar o curso e a decisão de retornar ao Brasil foram motivadas pelo descontentamento do demandante com as condições de trabalho encontradas naquele país, por outro a conduta da demandada configura grave falha na prestação dos serviços contratados, pois a falta de informações explícitas quanto à assessoria na busca de emprego gerou abalo emocional e frustrou a sua legítima expectativa, configurando, assim, violação manifesta aos deveres de informação e transparência. Conforme muito bem pontuado na sentença recorrida, “a ré não comprovou qualquer serviço prestado com a finalidade de auxiliar o autor na procura de trabalho ”, não obstante naquele país e/ou na efetiva contratação do mesmo para atividade laboral condizente tenha feito a promessa de atendê-lo neste serviço.

8. Assim, considerando as circunstâncias da lide, a condição socioeconômica das partes, a natureza da ofensa e as peculiaridades do caso sob exame, razoável e proporcional a condenação. Mantenho a condenação em R$ 3.000,00 (três mil reais) (...)

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(TJ-DF 07235471820178070016 DF 0723547-18.2017.8.07.0016, Relator: EDUARDO HENRIQUE ROSAS, Data de Julgamento: 13/03/2019, 3ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do DF. Pág.: Sem Página Cadastrada.)

O direito à informação, figura central no microssistema consumerista, estende-se à fase de prestação do serviço contratado, associando-se ao direito básico de “efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais” (art. 6º, VI, do CDC).

Assim, a falta de efetiva assistência ao intercambista após o desembarque no estrangeiro – ou a prestação deficiente desse suporte – é igualmente capaz de caracterizar dano moral passível de indenização. A natural hipossuficiência da relação de consumo, potencializada pela inserção do consumidor em outro país, dá azo a um amplo espectro de omissão lesivas, tais como a falta de orientação a procedimentos básicos de logística (transporte, instalação, alimentação), injustificada realocação de residências e/ou projetos, sujeição a longas esperas para atendimento, dentre outras.

Para além de abalos emocionais lesivos à ordem subjetiva, o desamparo ao intercambista também pode resultar em efetivos prejuízos patrimoniais decorrentes, por exemplo, da não prestação de refeições prometidas, passeios, assistência com o visto[4], hospedagem – ou o oferecimento de tais serviços em quantidade/qualidade abaixo do razoavelmente esperado. Nessas hipóteses, resta caracterizado o vício do serviço, o qual enseja não apenas o ressarcimento integral das despesas efetuadas, bem como a restituição de parcela dos valores pagos na contratação do pacote de intercâmbio (art. 20 do CDC[5]).

Salienta-se, por fim, que a atribuição de culpa a parceiros locais pelos transtornos exemplificativamente listados neste artigo não exime a responsabilidade da agência contratada pelo consumidor, ainda que tal isenção conste em cláusula do contrato firmado. Nesta hipótese, verifica-se a nulidade da cláusula, em razão da ilícita transferência de responsabilidade a terceiros (art. 51, III, do CDC[6]).

Portanto, embora a prestação de informações claras e abrangentes constituam ônus do prestador de serviço, recomenda-se que o consumidor demande a especificação das peculiaridades que envolvem o pacote de intercâmbio contratado – a serem delineadas, preferencialmente, em instrumento escrito[7]. Caso as obrigações legais e contratuais assumidas pela empresa sejam inobservadas, faz-se recomendável a busca por assistência jurídica, a fim de se obter a reparação pelos danos indevidamente suportados pelo intercambista.


[2] https://www.mercadoeeventos.com.br/noticias/servicos/intercambio-fecha-2019-com-12-no-aumento-do-faturamento/

[3] Segundo Fábio Ulhoa Coelho: “De acordo com o princípio da transparência, não basta ao empresário abster-se de falsear a verdade, deve ele transmitir ao consumidor em potencial todas as informações indispensáveis à decisão de consumir ou não o fornecimento” (COELHO, Fábio Ulhoa. O crédito ao consumidor e a estabilização da economia, Revista da Escola Paulista de Magistratura, 1/96, set./dez. 1996.)

[4] Nesse sentido: (TJ-RJ - APL: 04111719020148190001 RIO DE JANEIRO CAPITAL 41 VARA CIVEL, Relator: ANTONIO CARLOS DOS SANTOS BITENCOURT, Data de Julgamento: 20/03/2018, VIGÉSIMA SÉTIMA CÂMARA CÍVEL CONSUMIDOR, Data de Publicação: 23/03/2018)

[5] Art. 20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:

I - a reexecução dos serviços, sem custo adicional e quando cabível;

II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos;

III - o abatimento proporcional do preço.

[6]  Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

(...)

III - transfiram responsabilidades a terceiros;

[7] Sem prejuízo, as informações prestadas por outros meios (verbal, telefone, anúncios em meios de comunicação e/ou redes sociais) igualmente vinculam o fornecedor de serviços, conforme assinala o art. 30 do CDC:

Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado.

Sobre o autor
Gabriel Rodrigues Soares

Advogado. Graduado pela Universidade de Brasília (UnB) Atuação: Direito do Consumidor; Cível; Trabalhista

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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