De acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça o fato de o delito ser praticado pela internet não atrai, automaticamente, a competência da Justiça Federal, sendo necessário demonstrar a internacionalidade da conduta ou de seus resultados.
PENAL E PROCESSUAL PENAL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. COMPARTILHAMENTO DE SINAL DE TV POR ASSINATURA, VIA SATÉLITE OU CABO. CARD SHARING. ARTIGO 109, INCISO V, DA CF/88. NORMATIVO INTERNACIONAL VIGENTE. TRANSNACIONALIDADE DA CONDUTA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.
1. De acordo com o art. 109, V, da Constituição Federal, a competência da jurisdição federal se dá pela presença concomitante da transnacionalidade do delito e da assunção de compromisso internacional de repressão, constante de tratados ou convenções internacionais. 2. No caso em análise, o Ministério Público do Estado de São Paulo, a partir de notitia criminis formulada pela Associação Brasileira de Televisão por Assinatura, requereu a busca e apreensão de elementos de prova acerca da prática de crimes de violação de direitos autorais e contra a Lei de Software, relacionados à atividade de fornecimento ilícito de sinal de TV por assinatura.
3. O requisito inicial de previsão normativa internacional é constatado pela Convenção de Berna, integrada ao ordenamento jurídico nacional através do Decreto nº 75.699, de 6 de maio de 1975, e reiterada na Organização Mundial do Comércio - OMC por acordos como o TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights) - Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (AADPIC), incorporado pelo Decreto nº 1355, de 30 de Dezembro de 1994, com a previsão dos princípios de proteção ao direitos dos criadores, além de diversos outros tratados e convenções multilaterais assinados pelo Brasil, fixando garantias aos patrimônios autorais e culturais.
4. O segundo requisito constitucional, de tratar-se de crime à distância, com parcela do crime no Brasil e outra parcela do iter criminis fora do país, é constatado pela inicial prova da atuação transnacional dos agentes, por meio da internet.
5. Conflito conhecido para declarar competente o JUÍZO FEDERAL DA 9ª VARA CRIMINAL DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DE SÃO PAULO, ora suscitante.
(CC 150.629/SP, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 22/02/2018, DJe 28/02/2018)
A competência em razão da matéria é fixada de acordo com a natureza da infração penal. São os casos, por exemplo, de competência da Justiça Eleitoral, do Júri e da Justiça Militar[1].
Para esses fins, os órgãos serão de jurisdição especial (Justiça Militar, Justiça Eleitoral e Justiça do Trabalho) e de jurisdição comum (Justiça Federal e Justiça Estadual).
Essas competências podem ser definidas na própria Constituição ou nas leis de organização judiciária. Nesse caso, as leis de organização judiciária poderão determinar previamente algumas competências de juízos especializados para o julgamento de delitos de naturezas específicas. Apenas as competências privativas do Tribunal do Júri não poderão sofrer alterações pelas regras de organização judiciária.
Os limites da competência da Justiça Federal estão indicados, basicamente,[2] nos artigos 108 e 109 da Constituição Federal. Nesse sentido, os juízes federais são competentes para processar e julgar[3]: i) as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho; ii) as causas entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e Município ou pessoa domiciliada ou residente no País; iii) as causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional; iv) os crimes políticos[4] e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral[5]; v) os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente[6]; vi) a as causas relativas a direitos humanos[7] a que se refere o § 5º do art. 109 da Constituição Federal[8]; vii) os crimes contra a organização do trabalho[9] e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira[10]; viii) os habeas corpus , em matéria criminal de sua competência ou quando o constrangimento provier de autoridade cujos atos não estejam diretamente sujeitos a outra jurisdição; ix) os mandados de segurança e os habeas data contra ato de autoridade federal, excetuados os casos de competência dos tribunais federais; x) os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves[11], ressalvada a competência da Justiça Militar; xi) os crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro[12], a execução de carta rogatória, após o "exequatur", e de sentença estrangeira, após a homologação, as causas referentes à nacionalidade, inclusive a respectiva opção, e à naturalização; e xii) a disputa sobre direitos indígenas[13].
Com relação aos crimes praticados pela internet, a competência só será da Justiça Federal se o crime produzir efeitos fora do território nacional e o Brasil for signatário de tratado ou convenção internacional que preveja a atuação do Estado Brasileiro no combate do crime correspondente. Fora dessas hipóteses, a competência para processamento e julgamento dos crimes virtuais será da justiça comum estadual.[14]
Referências
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Boletim do IBCCrim n. 223, São Paulo, jun. de 2011.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Glosas ao “Verdade, Dúvida e Certeza”, de Francesco Carnelutti. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Mentalidade Inquisitória e Processo Penal no Brasil. Vol. 3. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria da garantismo penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
KHALED JUNIOR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único I, 5ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017.
LOPES JUNIOR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
LOPES JUNIOR, Aury. Prisões Cautelares. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
PACELLI, Eugenio. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência, 9ª ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2017. PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal, 21ª ed. São Paulo: Atlas, 2017.
TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017.
VERRI, Pietro. Observações sobre a tortura. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado, 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
[1] “Da leitura do art. 124 da Constituição Federal depreende-se que a competência da Justiça Militar da União está circunscrita ao processo e julgamento dos crimes militares. Competência idêntica possuía a Justiça Militar Estadual, porém circunscrita aos militares dos Estados, tal qual dispunha o art. 125, § 4°, da CF, em sua redação original: "Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os policiais militares e bombeiros militares nos crimes militares, definidos em lei, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças". Ocorre que, com a entrada em vigor da Emenda Constitucional 45/04, a Justiça Militar Estadual teve sua competência ampliada, passando a julgar, além dos crimes militares cometidos pelos militares dos Estados, ações judiciais contra atos disciplinares militares (CF, art. 125, § 4).”LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único I, 5ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 352.
[2] “A Justiça comum federal tem sua competência expressamente contemplada na Constituição Federal, sendo que o art. 108, da Carta Magna, trata da competência dos Tribunais Regionais Federais, e o art. 109 elenca a competência dos juízes federais. Trataremos neste tópico da competência da justiça federal de primeiro grau, reservando· nos a tratar dos aspectos mais relevantes da competência dos TRFs dentro do tema competência ratione personae.” TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 391.
[3] Art. 109 da Constituição Federal.
[4] “A ideia majoritariamente aceita pela doutrina e jurisprudência é a de reconhecer a existência de crime político, cuja espécie, nas palavras de Roberto Luchi Demo, "somente se caracteriza quando presentes os pressupostos cristalizados no art. 2º, da Lei no 7.170/1983: motivação política e lesão real ou potencial aos bens juridicamente tutelados"”. TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 391.
[5] “Quanto aos serviços, passamos a focalizar a própria atividade do ente federal, a sua finalidade, ao passo que o interesse, talvez a expressão de significação mais ampla, abarca aquilo que está ligado ao ente federal, aquilo que lhe diz respeito. Não é suficiente o simples interesse genérico ou indeterminado para atrair a competência da Justiça Federal, imprescindível, para tanto, existir interesse direto e imediato da União, afastando-se ofensas indiretas, reflexas, que não se coadunem com o parâmetro restritivo para a definição da competência da Justiça Federal.” TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 391.
[6] “Contudo, além da existência do tratado ou convenção, é essencial que a infração praticada transcenda as fronteiras de mais de um país, ou seja, a internacionalidade da conduta é requisito objetivo para a fixação da competência federal. Logo, em que pese a existência de tratado ou convenção internacional, se a infração se limitar às fronteiras brasileiras, a competência será, de regra, da Justiça Estadual. A título de exemplo, o tráfico interno de drogas é de competência estadual, ao passo que o tráfico internacional será julgado pela Justiça Federa. Neste sentido a Súmula no 522, do STF: "salvo ocorrência de tráfico para o exterior, quando então a competência será da Justiça Federal, compete à Justiça dos Estados o processo e julgamento dos crimes relativos a entorpecentes". TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 400.
[7] “Temos a previsão de um incidente processual para que se preserve a competência da Justiça FederaL Resta-nos saber em que circunstâncias ele teria cabimento. A nosso sentir, sendo a competência federal de ordem material, e por consequência absoluta, os juízes e delegados de polícia estadual deveriam, de ofício, declinar de sua competência e atribuição respectivamente, remetendo os autos para a esfera federal, sempre que estiverem diante de infração que afete direitos humanos contemplada em tratado internacional que o Brasil seja signatário. Caso não o façam, abre-se então, ao PGR, como forma de preservar a competência da Justiça Federal, o incidente protetivo perante o STJ. Portanto, esta ferramenta seria apenas mais um instituto para se assegurar a manutenção do juiz natural, já que o próprio magistrado deveria declarar-se ex officio incompetente, assim como as partes poderiam apresentar exceção de incompetência a qualquer tempo, afinal, é critério de competência absoluta.” TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 401.
[8] § 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.
[9] “Tais crimes estão previstos nos arts. 197 a 207, do CP, sendo que, só serão julgados na Justiça Federal se houver ofensa à coletividade de trabalhadores. Ofensas que afetem interesses individuais resolvem-se na Justiça Estadual. Nesse sentido, a Súmula n° 115, do TFR, averbando competir à Justiça Federal processar e julgar os crimes contra a organização do trabalho, quando tenham por objeto a organização geral do trabalho ou direitos dos trabalhadores corisiderados coletivamente.” TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 402.
[10] “No que tange à ordem econômico-financeira, da mesma forma, necessita-se de previsão expressa na legislação ordinária para que haja a apreciação perante a Justiça Federal. As Leis n° 8.137/1990 e 8.176/1991 tratam da matéria, contudo, por ausência de previsão nos respectivos textos, os crimes nelas previstos serão apreciados, em regra, na Justiça Estadual. Subsiste o julgamento na seara federal quando estas infrações afetarem bens, serviços ou interesses de ente federal, por aplicação do inciso IV, do art. 109, da CF/1988” TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 403.
[11] “O conceito de navio pode ser encontrado a partir do art. 11, da Lei no 2.180/1954. A conjugação da aptidão à realização de viagens internacionais e o grande porte é que nos podem dar segurança na identificação das embarcações consideradas propriamente navio. Estão de Íora as canoas, lanchas, botes, etc. As infrações ocorridas em embarcações de pequeno calado serão apreciadas na esfera estadual. Já o conceito de aeronave nos é dado pelo art. 106, da Lei no 7.565/1986 (Código Brasileiro de: Aeronáutica), ditando que se considera aeronave todo aparelho manobrável em voo, que possa sustentar-se e circular no espaço aéreo, mediante reações aerodinâmicas, apto a transportar pessoas ou coisas. Como a CF/1988 usou a expressão genérica aeronave, sem fazer distinção; o porte e a autonomia são irrelevantes para a definição da competência federal.” TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 404.
[12] “Asseverando o art. 22 da CF/1988, em seus incisos XIII e XV, respectivamente, que cabe à União legislar sobre nacionalidade, cidadania e naturalização, e também sobre a emigração e imigração, entrada, extradição e expulsão de estrangeiro, natural que as infrações afetas ao alienígena para legitimar o seu ingresso ou permanência irregular no país, sejam apreciadas pela Justiça Federa. É oportuno lembrar que a conduta de ingressar ou permanecer ilegalmente no país, em si mesma, não é tipificada como crime, tendo natureza de infração de cunho administrativo, a merecer reprimenda desta natureza. O que será apreciado na Justiça Criminal Federal são as infrações penais perpetradas para a consecução da permanência ou do ingresso irregular no Brasil.” TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 404.
[13] “Se o crime contra o índio envolver disputa de direitos indígenas e, nesse contexto, qualificar-se como delito contra a vida, a competência será do Tribunal do Júri Federal. Quando há tal interesse coletivo, surge para a FUNAI (Fundação Nacional do índio) o interesse em prestar assistência aos índios envolvidos, eis que é órgão tutor dos silvícolas não integrados (Lei no 6.001/1973, art. 2°). Caso o crime cometido seja de genocídio contra índios (tipificação disposta na Lei no 2.889/1956), é relevante distinguir: se o crime de genocídio contra grupo indígena se deu em concurso formal próprio ou impróprio [...] “ TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal, 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 405.
[14] “Conforme a situação concreta, o delito pode consumar-se no momento em que a informação é veiculada na rede mundial e pode ser acessada a qualquer momento por qualquer usuário, como também pode ter a sua consumação postergada. Exemplo deste último caso, seria a prática de estelionato, em que o autor prepara a fraude, invade algum site, implanta um software, que somente produzirá efeito posterior, subtraindo ou desviando bens ou valores de alguém. Não se tratando de delito previsto em tratado internacional, ou de caráter transnacional, a competência é da Justiça Estadual. Porém, quando a conduta do agente implicar, automaticamente, em acesso imediato por outros usuários, pode-se considerar que a consumação é dúplice, vale dizer, dá-se em território nacional e, concomitantemente, em outros países. Assim ocorrendo, se a infração penal tiver previsão em tratado ou convenção subscrita pelo Brasil, a competência é federal.” NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado, 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 178.