Os antecedentes criminais do indivíduo, segundo melhor conceito, nas palavras de Delmanto (2002, p. 110), são “os fatos anteriores de sua vida, incluindo-se tanto os antecedentes bons como os maus. Serve este componente especialmente para verificar se o delito foi um episódio esporádico na vida do sujeito ou se ele, com frequência ou mesmo habitualmente, infringe a lei.” .
Em síntese, são os antecedentes todo o histórico da vida pregressa do indivíduo e, no âmbito processual penal, serão utilizados para fins de fixação da pena-base, seguindo a regra do art. 59 do Código Penal.
Sem adentrar no mérito de quais situações ocorridas na vida do agente serão consideradas como maus antecedentes, pois demandaria outro estudo acerca dos princípios constitucionais supostamente violados, o objetivo do presente artigo é convidar o leitor à seguinte reflexão: deveria os maus antecedentes acompanhar o indivíduo ad infinitum?
Em uma breve analogia à reincidência, conforme dispõe o Código Penal (art. 64, inciso I), passados cinco anos entre a data do cumprimento/extinção da pena e a infração posterior, eis que o indivíduo não pode mais ser considerado como reincidente.
Ora, se tal efeito ocorre em matéria de reincidência, tornando, assim, a condenação anterior improdutiva para qualquer outro fim processual penal, certamente deveria ocorrer o mesmo com os maus antecedentes que ultrapassaram os cinco anos estipulados para fins de reincidência.
Tendo o legislador inserido esta regra, evidentemente objetivou demonstrar que o indivíduo, ainda que tenha cometido um ilícito penal, por qualquer razão que seja, poderá recomeçar sua vida em sociedade, sem carregar para eternidade o estigma oriundo desta transgressão.
Considerar erros do passado que, inclusive, já foram repreendidos, nada mais é que uma espécie de etiquetamento, uma forma de processo penal seletivo no qual o indivíduo que delinquiu no passado é privado do seu direito de se ver amparado pelo principio da presunção de inocência. Desta forma, está o Estado, na figura do julgador, consolidando o status de criminoso daquele que está sendo julgado, dificultando até mesmo que este se reposicione na sociedade após o cumprimento de sua pena. Com um efeito dominó, o individuo, já vivendo o calvário da segregação e não vendo mais outra forma de “limpar-se” das manchas do crime, opta pela continuidade na vida criminosa, único “setor social” que irá aceita-lo dentro e fora do cárcere.
Portanto, não é razoável admitir que uma condenação, com período depurador para fins de reincidência já transpassado, possa majorar a pena-base, por qualquer que seja dos motivos elencados no art. 59 do Código Penal. Agindo desta forma, endossado pelo Estado, está o juiz a tornar eternos os efeitos das sanções anteriores.
Sendo nosso Direito Penal pautado nas garantias constitucionais, não devemos admitir que tal situação ocorra. Salienta-se o que dispõe o artigo 5º, inciso XLVII, alínea “b” da nossa Lei Maior, que veda, expressamente, as penas de caráter perpétuo, isto é, penas eternas. Não podendo a pena ter caráter vitalício, por qual razão é permitido que seu cumprimento gere consequências, de certo modo, infinitas?
De igual importância, ainda temos outros princípios sustentáculos do nosso Estado Democrático de Direito e orientadores do devido processo legal, quais sejam, o da proporcionalidade, o da vedação da dupla punição e o da presunção de inocência, igualmente fundamentais para o justo andamento do processo penal.
Foi neste sentido que o ínclito Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, julgou recurso favorável a condenada por tráfico que teve, na aplicação de sua pena, considerados como maus antecedentes suas condenações anteriores, ainda que após o período extintivo de cinco anos.
Em sua decisão, discorreu o Ministro:
Não se revela legítimo, em face da Constituição da República, considerar como maus antecedentes condenações criminais cujas penas, cotejadas com infrações posteriores, extinguiram-se há mais de cinco anos, pois, com o decurso desse quinquênio, não há como reconhecer nem como admitir que continuem a subsistir, residualmente, contra o réu, os efeitos negativos resultantes de sentenças condenatórias anteriores. Inadmissível, em consequência, qualquer valoração desfavorável ao acusado, que repercuta, de modo gravoso, na operação de dosimetria penal. (HC 164028). [grifo nosso].
O mesmo entendimento se extrai da ementa de julgado da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, cuja relatora foi a Ministra Cármen Lúcia:
HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PENAL.CONDENAÇÃO TRANSITADA EM JULGADO HÁ MAIS DE CINCO ANOS. IMPOSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO PARA CARACTERIZAÇÃO DE MAUS ANTECEDENTES. ORDEM CONCEDIDA. 1. Condenação transitada em julgado há mais de cinco anos utilizada nas instâncias antecedentes para consideração da circunstância judicial dos antecedentes como desfavorável e majoração da pena-base. Impossibilidade. Precedentes. 2. Ordem concedida. (HC 133.077, Rel. Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, j. 29.3.2016) [grifos nossos].
De modo semelhante, há julgados na Primeira Turma em que decidiram os Ministros, de forma unânime:
Recurso ordinário em habeas corpus. Processual Penal. Interposição contra julgado em que colegiado do Superior Tribunal de Justiça não conheceu da impetração, ao fundamento de ser substitutivo de recurso ordinário cabível. Constrangimento ilegal não evidenciado. Entendimento que encampa a jurisprudência da Primeira Turma da Corte. Precedente. Dosimetria. Fixação da pena-base acima do mínimo legal em decorrência de maus antecedentes. Condenações transitadas em julgado há mais de cinco anos. (…) 2. Quando o paciente não pode ser considerado reincidente, diante do transcurso de lapso temporal superior a cinco anos, conforme previsto no art. 64, I, do Código Penal, a existência de condenações anteriores não caracteriza maus antecedentes. Precedentes. 3. No caso as condenações anteriores consideradas pelas instâncias ordinárias para fins de valoração negativa dos antecedentes criminais do ora paciente ainda não se encontram extintas. 4. Recurso não provido. (RHC 118.977, Rel. Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, j. 18.3.2014). [grifos nossos].
RECURSO ESPECIAL – REDISCUSSÃO FÁTICA – INADMISSIBILIDADE. Descabe ao Superior Tribunal de Justiça, na via afunilada do especial, revolver matéria fática. ANTECEDENTES – CONFIGURAÇÃO. Decorridos mais de cinco anos desde o cumprimento da pena, o afastamento da reincidência inviabiliza o reconhecimento dos maus antecedentes. (HC 115.304, Rel. Min. Marco Aurélio, Primeira Turma, j. 26.4.2016). [grifos nossos].
Sobre este tema, a data para julgamento no Supremo Tribunal Federal foi incluída no calendário da Corte para o dia 23/04/2020.
Nossa vasta Doutrina também não deixa de ocupar-se com a matéria. Neste tema, pertinente é a crítica de Salo de Carvalho [1], que diz:
“Sendo imperativo delimitar temporalmente os efeitos dos antecedentes em decorrência do comando constitucional e havendo na legislação penal nacional previsão expressa em relação a instituto de mesma natureza, entende-se possível estender aos antecedentes o prazo previsto no artigo 64, inciso I, do Código Penal.” .
Neste contexto, é salutar que nós, enquanto indivíduos dotados de dignidade, amparados pelas garantias constitucionais e em pleno gozo de nossos direitos fundamentais, possamos nos valer da ponderação, razoabilidade e prudência dos julgadores.
A lei, desde os primeiros relatos que se tem na história, é e sempre foi arbitrária. É somente com o decorrer do tempo e com a evolução humana e social que aperfeiçoamos o ordenamento jurídico. Cabe ao Juiz, aplicador da lei, no exercício de seu poder, romper com o arbítrio estatal e buscar, com base em sua consciência e em seu dever de julgar, aplicar a reprimenda da forma menos gravosa possível e dentro do necessário, para que não imponha sofrimento excessivo àquele que é condenado não só para ser punido, mas para também ser reeducado.
Desta forma, é preciso que o equilíbrio esteja presente e que a aplicação da lei seja feita de modo que se aproxime melhor daquilo que tanto buscamos e chamamos de Justiça.
O condenado, enquanto reeducando que é, deve compreender os motivos e finalidade de sua pena, de forma que, em hipótese alguma, tal punição seja para ele apenas uma violenta vingança promovida pelo Estado, na figura de seu julgador.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Vade Mecum – 29ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2019.
BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Vade Mecum – 29ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2019.
DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 2002
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
[1] CARVALHO, Salo. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. 2ª ed.Saraiva, 2015. p. 361.