Releitura do atual Código Penal: erros, omissões e incongruências

Inconsistências técnicas?

03/04/2020 às 18:25
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O presente texto tem por escopo precípuo analisar as incongruências técnicas cometidas pelo legislador brasileiro, durante a construção dos tipos penais, no processo legislativo, demonstração inequívoca de falta de zelo ou até mesmo de conhecimento..

 

"Quando uma criatura humana desperta para um grande sonho e sobre ele lança toda a força de sua alma, todo o universo conspira a seu favor" ( Johann Goethe )

 

RESUMO. O presente texto tem por escopo precípuo analisar as incongruências técnicas cometidas pelo legislador brasileiro, durante a construção dos tipos penais, no processo legislativo, demonstração inequívoca de falta de zelo ou até mesmo de conhecimento técnico no momento de formatar os tipos penais e garantir segurança jurídica para a sociedade brasileira.

Palavras-chave. Processo. Legislativo. Inconsistência. Atecnia. Insegurança jurídica.

 

1. INTRODUÇÃO

 

Sabe-se que o segredo do sucesso em qualquer atividade professional é a competência para fazer a diferença na construção de uma sociedade melhor. E sem dúvidas, quem exerce funções no processo legislativo tem a missão imprescindível de produzir normas de conduta na edificação de uma sociedade melhor para se viver.

Neste ensaio jurídico, o de número 300, procurar-se-á analisar os erros, omissões e aberrações técnicas na produção de normas penais, notadamente, no Código Penal atual, publicado no início dos anos 40, com grande reforma na sua parte geral por meio da Lei nº 7.209/84, mas em vigor até os dias atuais com profundas modificações ao longo do tempo, máxime na parte especial, com acertos e retrocessos considerando as constantes mudanças no corpo de integrantes do Congresso Nacional que sempre foi marcado por quadro de servidores essencialmente heterogêneos, mesclando representantes de todas as áreas, como artistas, jogadores de futebol, cantores, palhaços de circo, líderes religiosos, advogados, professores, policiais, médicos, empresários, e uma infinidade de outros profissionais liberais.

Constituído de sua maioria por profissionais sem conhecimento do processo legislativo, muito embora hoje exista uma Lei Complementar que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos, ainda assim, a nossa lei penal apresenta sérias incongruências técnicas que seguramente acaba por provocar sintomas de violação a princípios informações do Direito Penal moderno, como proporcionalidade, taxatividade e exclusiva proteção do bem jurídico.

Algumas perguntas se tornam pertinentes. Você sabia que a Lei nº 12.850/2013, mudou o nome do crime de quadrilha ou banco para associação criminosa, mas existem duas passagens até hoje com o nome de quadrilha ou bando?

Você sabia que existe um ÚNICO crime no Código Penal brasileiro em que existe o § 1º, mas não existe o § 2º? Neste caso, este § 1º deveria ser PARÁGRAFO ÚNICO.

Estas e outras aberrações, é que se pretende enfrentar neste texto jurídico, chamando a atenção do legislador pátrio para a incessante busca do esmero no momento da construção dos tipos penais.

 

2. O FALECIDO CRIME DE QUADRILHA OU BANDO NO DIREITO PENAL

 

Durante muito tempo o crime de quadrilha ou bando sobreviveu no direito penal brasileiro, no artigo 288 do CP, no Título dos crimes contra a paz pública, como sendo é uma associação estável e permanente de mais de 3 pessoas com o fim de praticar uma série indeterminada de crimes.

Entre nós, o festejado professor Ribeiro Pontes foi um dos poucos a apresentar uma diferença semântica entre quadrilha e bando. Em sua obra Código Penal Brasileiro, assinalava:

“A Lei, criando, criando a distinção entre quadrilha e bando, parece ter em vista distinguir, não a qualidade dos crimes, mas o local de ação das duas modalidades de associação de malfeitores. Assim, quadrilha é a associação de mais de três pessoas, para o fim de cometer nas cidades. Bando é a associação de malfeitores, volante, que opera em geral, nos aglomerados humanos, disseminados pelo interior do país. Considera-se quadrilha a horta de salteadores que, obedientes a um chefe, praticam roubos e homicídios.  Considera-se bando a associação de malfeitores, sem organização interna e com um chefe eventual” (II/204).

Entretanto, esse entendimento nunca foi acolhido pelos escritores e doutrinadores do Brasil, que realçavam as palavras empregadas como sinônimas. (Cf. Heleno Cláudio Fragoso, ob. Cit., p. 296).

Pois bem. Essa confusão doutrinária foi sepultada com a entrada em vigor da Lei nº 12.850/2013, que dentre outras funções, métodos e inovações, mudou a estrutura típica do artigo 288, e modificou o nome jurídico de quadrilha ou bando para associação criminosa.

Portanto, a partir da lei em apreço, ficou sepultado o nome de quadrilha ou bando do direito penal brasileiro, ficando tão somente a terminologia quadrilha para as festas juninas de São Antônio, São João e São Pedro.

Será que isso aconteceu mesmo? Nada disso. O termo quadrilha ou bando, não obstante ter sido revogado em 2013, agora consta de algumas passagens do sistema penal brasileiro. O legislador foi tão displicente que o termo quadrilha ou bando ainda permanece expressamente previsto em dois dispositivos legais no direito penal brasileiro.

O primeiro caso, ainda aparecem suas cinzas na qualificadora do crime de extorsão mediante sequestro, artigo 159, § 1º, do CP, a saber:

Art. 159 - Sequestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate:

Pena - reclusão, de oito a quinze anos.

§ 1o Se o sequestro dura mais de 24 (vinte e quatro) horas, se o sequestrado é menor de 18 (dezoito) ou maior de 60 (sessenta) anos, ou se o crime é cometido por bando ou quadrilha.    

O segundo caso encontra-se previsto no artigo 1º, III, l), da Lei nº 7.960/89, que dispõe sobre a prisão temporária, in verbis:

Art. 1° Caberá prisão temporária:

III - quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes:

l) quadrilha ou bando (art. 288), todos do Código Penal;

 

3. OS LIMITES DA PENA NO BRASIL

 

Recentemente, entrou em vigor no Brasil a Lei nº 13.964, de 2019, que introduziu o chamado Pacote Anticrime, cujo propósito central é o combate ao crime organizado, enfrentamento dos crimes violentos e o combate à corrupção.

Dentre as inúmeras modificações, a predita lei modificou a redação do artigo 75 e seu § 1º, do Código Penal que estabelece os limites da pena no país. Acontece que durante quase 80 anos o tempo de cumprimento de pena no Brasil sempre foi de 30 anos. Agora com o Pacote Anticrime esse limite passou para 40 anos, conforme se percebe abaixo:

Art. 75. O tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 40 (quarenta) anos.

§ 1º Quando o agente for condenado a penas privativas de liberdade cuja soma seja superior a 40 (quarenta) anos, devem elas ser unificadas para atender ao limite máximo deste artigo.     

Aqui tudo bem, sem nenhum problema. Acontece, que o sistema penal é formado por um conjunto de leis e normas em vigor, que sobrevive entre si, harmonicamente, inclusive, pelo Código Penal Militar, Decreto-Lei nº 1.001/69, que prevê o limite de cumprimento de pena, em seus artigos 58 e 81 do Código Penal Militar.

 Art. 58. O mínimo da pena de reclusão é de um ano, e o máximo de trinta anos; o mínimo da pena de detenção é de trinta dias, e o máximo de dez anos.

Art. 81. A pena unificada não pode ultrapassar de trinta anos, se é de reclusão, ou de quinze anos, se é de detenção.

 

Que dizer que a partir de agora o sistema penal brasileiro conta com um prazo de cumprimento pena para crimes comuns de 40 anos e um prazo de cumprimento de pena para crimes militares em 30 anos? É isso mesmo?

Será que o legislador quis assim, ou houve mais um vacilo no momento de construir a reforma do Código Penal. Acredito que o prazo de 40 anos para cumprimento da pena privativa de liberdade prevista no artigo 75 do Código Penal comum deve ser interpretado e estendido para a Justiça Militar, e aqui, não se fala em analogia in malam partem, mesmo porque o crime militar é considerado muito mais censurável que o crime comum, considerando os preceitos basilares da hierarquia e disciplina que marcam a história da vida militar.

 

4. A ESDRÚXULA REDAÇÃO DO ARTIGO 168 DO CÓDIGO PENAL

 

O artigo 168 do Código Penal define o crime de apropriação indébita, consistente em apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção, com pena de reclusão, de um a quatro anos, e multa. Acontece que na redação do referido dispositivo legal, o legislador brasileiro errou feito quando criou a figura do § 1º, mas não consta o § 2º, cometendo enorme vacilo e erro gravíssimo, o que viola gravemente as disposições da Lei Complementar nº 95, de 98, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona.

Assim, tem-se a única redação de um artigo que tem o parágrafo primeiro, mas não tem o segundo, e depois de tudo isso, foram editadas várias leis no Brasil, criando tipos, revogado outros, reformas e minirreformas e ninguém se atentou em corrigir a inconsistência do artigo 168, § 1º, que na verdade deveria ser PARÁGRAFO ÚNICO.

 

5. O CRIME DE CONTRABANDO DE MIGRANTES DO CÓDIGO PENAL

 

Por questões principalmente econômicas e a crise do desemprego, muitos brasileiros estavam buscando alternativas noutros países, em especial nos Estados Unidos. Acontece que muitas das entradas nos Estados Unidos são agenciados, ilegalmente, por criminosos conhecidos por coiotes, que às vezes agem como integrantes de numa verdadeira organização criminosa.

Pensado em combater esses agenciadores ilegais, o legislador pátrio criou no Brasil o delito de contrabando de migrantes no Código Penal.

Assim sendo, o legislador brasileiro criou a figura do crime de promoção de migração ilegal no artigo 232-A, cuja conduta típica consiste em promover, por qualquer meio, com o fim de obter vantagem econômica, a entrada ilegal de estrangeiro em território nacional ou de brasileiro em país estrangeiro, com pena de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.   

Na mesma pena incorre quem promover, por qualquer meio, com o fim de obter vantagem econômica, a saída de estrangeiro do território nacional para ingressar ilegalmente em país estrangeiro. 

A pena é aumentada de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço) se o crime é cometido com violência ou se a vítima é submetida a condição desumana ou degradante. A pena prevista para o crime será aplicada sem prejuízo das correspondentes às infrações conexas.  

O novo tipo penal foi criado no artigo 115, da Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017, que instituiu a Lei de Migração.

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Acredita-se que o legislador tenha agido bem na criação desse tipo penal a fim de coibir essas práticas altamente censuráveis. Mas o grande erro e pecado capital foi ter criado essa nova modalidade de delito no Título destinado aos crimes contra a Dignidade Sexual, no Capítulo do lenocínio e do tráfico de pessoa para fim de
prostituição ou outra forma de exploração sexual. 

A objetividade jurídica no crime de promoção de migração ilegal não pode ser a dignidade sexual da pessoa. Errou feio o legislador que deixou entender que toda migração ilegal, seria para prostituição ou outra forma de exploração sexual. 

Teria agido melhor se o referido tipo penal tivesse sido previsto no Capítulo dos crimes contra a liberdade pessoal, se tivesse, por exemplo, inserido o artigo 149-B, para ali fazendo constar logo após o crime de tráfico de pessoas.

 

6. A QUALIFICADORA DO TRÁFICO DE PESSOAS

 

O delito em apreço sempre foi tratado como tráfico internacional de mulheres para fins de prostituição plasmado no artigo 231 do Código Penal.

Um tempo depois percebeu que existia também o aumento de tráfico internacional para fins de exploração sexual masculina, tendo o tipo penal se ajustado por meio de modificação legislativa para contemplar agora o tráfico internacional aumentando o âmbito de proteção da norma. Mais adiante percebeu que um grande incide de tráfico interno de pessoas também para fins de exploração sexual, acrescentando, desta feita, o artigo 231-A ao Código Penal.

Destarte, com a intenção de proteger a dignidade humana como base, o direito penal, previu as condutas criminosas dos arts. 231 (tráfico internacional de pessoa para fins de exploração sexual) e 231-A (tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual), intervindo decisivamente me questão de fundamental importância para a sociedade, a saber:

Art. 231. Promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território nacional, de pessoa que venha exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro:

Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa.

Tráfico interno de pessoas Art. 231-A. Promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da pessoa que venha exercer a prostituição:

Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa.

 

Logo depois, entrou em vigor no país a Lei nº 13.445, de 2016, operando um novo desenho no sistema legal brasileiro revogando os dois artigos 231 e 231-A, criando o crime de tráfico de pessoas no artigo 149-A no Código Penal, deslocando o tráfico internacional de pessoas para fins de exploração sexual para esse novo dispositivo, criando uma espécie de deslocamento típico sem revogação do fato criminoso, passando a existir com a nova redação:

Art. 149-A.  Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: 

I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo;

II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo;

III - submetê-la a qualquer tipo de servidão; 

IV - adoção ilegal; ou

V - exploração sexual.  

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.        

Acontece, que uma das causas de aumento de pena previstas no § 1º, IV, art. 149-A, é o fato da vítima do tráfico de pessoas ser retirada do território nacional.  

Mais uma vez pecou o legislador por omissão ou incompetência, porque esqueceu de prever também como causa de aumento de pena o fato da vítima ser retirada do estrangeiro para ser traficada no Brasil, questão que possui a mesma reprovabilidade da retirada da vítima do tráfico de pessoas do território nacional para o estrangeiro, considerando que o país é signatário de Tratados Internacionais de repressão ao tráfico de pessoas, a exemplo do Protocolo Adicional à Convenção da ONU contra o Crime Organizado relativo à prevenção, repressão e punição do tráfico de pessoas, ratificado pelo Brasil e promulgado pelo Decreto Nº 5.017/04.

O festejado professor ROGÉRIO SANCHES, comentando a causa de aumento de pena do artigo 149-A, § 1º, IV, com acerto acentua:

“Aqui o legislador errou e porque que ele errou?  Porque ele somente aumenta a pena na exportação da vítima para o tráfico transnacional, e não aumenta a pena na importação da vítima para o tráfico internacional. Assim, o § 1º, inciso IV do artigo 149-A do CP tem uma omissão gigantesca do legislador. Ele só majora a pena no caso de vítima exportada. E não majora a pena em caso de vítima importada. Erro grasso. Se a vítima for importada o tráfico é transnacional de competência da Justiça Federal, mas não vai sofrer o aumento lamentavelmente. Trata-se de maneira desigual duas situações importantes, isonômica.”[1]

 

7. O FIM DA PROTEÇÃO PENAL DO DIREITO DE LOCOMOÇÃO DO CIDADÃO

 

A livre locomoção do cidadão é direito fundamental previsto no artigo 5º, XV, da Constituição da República, segundo o qual, é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens.

A violação desse direito por agentes públicos durante muito tempo foi rotulada como crime de abuso de poder, artigo 3º, I, da Lei nº 4.898/65, in verbis:

Art. 3º Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:

a) à liberdade de locomoção;

 

Acontece, que a Lei nº 4.989/65 foi revogada expressamente pela nova Lei de Abuso de Autoridade, Lei nº 13.869, de 05 de setembro de 2019, que logo no seu artigo 9º define a prisão ilegal, consistente em decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais. Segundo entendimento majoritário que se firmou no Brasil, esta conduta criminosa é destinada ao juiz de direito que venha a decretar medida privativa de liberdade em manifesta desconformidade com a lei.

Esse entendimento se constrói porque o artigo 9º utilizou o verbo nuclear de decretar medida privativa de liberdade. Assim, nem policial civil nem militar, nem promotor de justiça, ninguém decreta prisão de pessoas, tarefa destinada tão somente ao juiz de direito.

Mas se for o policial quem priva a liberdade de alguém ilegalmente, por exemplo, uma prisão por averiguação, uma prisão 10 dias depois do fato, sem perseguição ininterrupta, qual seria o crime de abuso de poder?

Lógico que sua ação abusiva está perfeitamente enquadrada nas sanções do artigo 11 da nova Lei de abuso de poder, a saber:

Artigo 11

Executar a captura, prisão ou busca e apreensão de pessoa que não esteja em situação de flagrante delito ou sem ordem escrita de autoridade judiciária, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei, ou de condenado ou internado fugitivo: Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Aqui não resta dúvidas, se o autor não está em situação de flagrância criminosa e nem existe ordem escrita de autoridade judiciária competente o crime só poderia ser este previsto no artigo 11 da Lei nº 13.869, de 05 de setembro de 2019, até mesmo por conformar-se com o artigo 5º, LXI, inciso da Constituição da República de 1988, segundo o qual ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.

No entanto, caros leitores, que este artigo 11 da nova Lei de Abuso de Autoridade foi vetado pelo Presidente da República e o veto mantido pelo Congresso Nacional, num duplo jogo de incompetência, com sérias ameaças aos direitos fundamentais do cidadão.

Eis as razões do veto:

“A propositura legislativa, ao dispor sobre a criminalização de execução de captura, prisão ou busca e apreensão de pessoa que não esteja em situação de flagrante delito gera insegurança jurídica, notadamente aos agentes da segurança pública, tendo em vista que há situações que a flagrância pode se alongar no tempo e depende de análise do caso concreto. Ademais, a propositura viola o princípio da proporcionalidade entre o tipo penal descrito e a pena cominada. ”

 

8. DUAS PENAS E O FIM DO TECNICISMO JURÍDICO

Quem estuda direito penal sabe muito bem que o tipo penal possui dois preceitos importantes, o primário e o secundário. O preceito primário descreve a conduta criminosa e o secundário comina a pena. Simples assim.

Por absoluta harmonia na construção das condutas criminosas, o legislador pátrio sempre definiu a cominação da pena privativa de liberdade em reclusão ou detenção, acompanhadas ou não da pena de multa, que pode vir isolada, alternada ou cumulativamente.

Tudo isso se harmonia com a descrição do artigo 1º do Decreto-Lei nº 3.914, de 1941, a chamada Lei de introdução do Código Penal (decreto-lei n. 2.848, de 7-12-940) e da Lei das Contravenções Penais (decreto-lei n. 3.688, de 3 outubro de 1941), a saber:

Art 1º Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.

Parece ser tão simples, tão óbvio, entretanto, mais uma vez o legislado pecou feio quando deixou passar um único caso de crime existente na legislação brasileira em que a lei comine conjuntamente penas de reclusão ou detenção para um mesmo delito, artigo 306, parágrafo único, do Código Penal, in verbis:

Art. 306 - Falsificar, fabricando-o ou alterando-o, marca ou sinal empregado pelo poder público no contraste de metal precioso ou na fiscalização alfandegária, ou usar marca ou sinal dessa natureza, falsificado por outrem:

Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa.

Parágrafo único - Se a marca ou sinal falsificado é o que usa a autoridade pública para o fim de fiscalização sanitária, ou para autenticar ou encerrar determinados objetos, ou comprovar o cumprimento de formalidade legal:

Pena - reclusão ou detenção, de um a três anos, e multa

 

9. A INSENSIBILIDADE DO LEGISLADOR PÁTRIO

Na construção dos tipos penais, o legislador deve ter a sensibilidade ao rotular as condutas criminosas. Uma demonstração de falta de cuidado do legislador foi o nome jurídico dado ao crime de homicídio, no art. 121 do Código Penal.

Assim, aquele homicídio que não é qualificado é chamado no Código Penal de homicídio SIMPLES, isso mesmo homicídio simples, como se houvesse simplicidade no ato de matar alguém.

Melhor seria se o legislador tivesse utilizado o nome jurídico de HOMICÍDIO SEM MAJORAÇÃO ao invés de HOMICÍDIO SIMPLES.

 

DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

"Devemos ouvir pelo menos uma pequena canção todos os dias, ler um bom poema, ver uma pintura de qualidade e, se possível, dizer algumas palavras sensatas" ( Johann Goethe)

 

O Código Penal brasileiro. Trata-se do Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940, que entrou em vigor no dia 1º de janeiro de 1942.

É formado por duas partes, a parte geral e a especial. São 361 artigos, sendo que a sua parte geral começa no artigo 1º e se estende até o artigo120, importante salientar que a parte geral foi reformada pela Lei nº 7209, de 1984.

Começa a parte especial, que define os delitos, no artigo 121, dos crimes contra a pessoa, composta exatamente por 30 crimes, de homicídio simples a invasão de dispositivo informático, criado pela Lei nº 12.737, de 2012, rotulada de Lei Carolina Dieckmann, vindo em seguida o título II, crimes contra o patrimônio, de furto a receptação de animais, formado por 25 delitos. Do título III, crimes contra a propriedade imaterial, somente restou o artigo 184, violação de direito autoral. Dos crimes contra a organização do trabalho, Titulo IV, são 11 delitos. O título V, elenca dos crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos, composto por 05 crimes. Os crimes contra a dignidade sexual são previstos no Título VI, composto por 17 delitos, de estupro a escrito ou objeto obsceno.

Já os crimes contra a Família, Título VII, são 14 delitos. Os crimes contra a Incolumidade pública, previstos no Título VIII, são ao todo 31delitos.O Título IX prevê os crimes contra a paz publica, art. 286 a 288-A, portanto, composto por 04 delitos. Os crimes contra a Fé pública, previstos no Título X, possui 24 delitos, desde o art. 289 até o art. 311-A, do CP. O último título do CP, IX, crimes contra Administração Pública, possui 66 tipos penais.

Destarte, após estudos heurísticos, percebe-se que o atual Código Penal possui exatamente 228 crimes, sendo que desses, 66 delitos pertencem ao rol dos crimes Contra a Administração Pública.

A parte especial, desde quando entrou em vigor vem sofrendo modificações constantes e profundas em face das grandes transformações sociais, notadamente com o avanço da tecnologia no meio social, criando, inclusive, um grande ramo do direito penal denominado crimes cibernéticos, aqueles delitos praticados no ambiente das redes sociais.

É muito claro que a vida tendo sido mais rica que a previsibilidade normativa nos apresenta uma multiplicidade de opções que merece ajustes legais. Assim, quando o atual Código Penal entrou em vigor em 1942, o jurista NELSON HUNGRIA, seus colegas de comissão e a sociedade da época jamais se imaginavam que um dia pudesse falar em estupro virtual, desconstruindo todo aquele pensamento antes de que este delito era praticado de forma vinculada, a famosa expressão intromissio penis intra vas.

Insta reconhecer que houve grande transformação na qualidade do legislador e hoje tem-se um Congresso Nacional essencialmente heterogêneo e isso contribui, sobremaneira, para a oferta do produto final relativo ao processo legislativo, totalmente deficitário, onde se percebe que delitos mudam de nome, mas ainda permanecem a citação do nome antigo revogado noutras passagens do Código como o que aconteceu com o crime de quadrilha o bando que foi mudado para associação criminosa, art. 288 do CP, com nova redação determinada pela Lei nº 12.850/2013, entretanto, permanece a sua citação na qualificadora do artigo 159, § 1º, do CP, e também na Lei nº 7.960/89, que dispõe sobre a prisão temporária, e ninguém nada faz e nem se preocupa para a harmonização sistemática do nosso direito penal.

Sabe-se que o Pacote Anticrime modificou o prazo de cumprimento de pena no Brasil, para 40 anos, artigo 75 do Código Penal, mas se esqueceram de mudar os artigos 58 e 81 do Código Penal Militar, que ainda constam 30 anos de reclusão. E agora o sistema jurídico passa a contar doravante com dois limites de cumprimento de pena, um de 40 anos para o cidadão comum e 30 anos para o militar? Outras aberrações jurídicas também foram abordadas neste ensaio, conforme se verifica alhures, o que faz necessária a urgente providência no sentido de se montar uma Comissão revisora no Congresso Nacional a fim de se proceder a atualização do sistema penal, visando a real harmonização de suas normas.

 

DAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

CUNHA, Rogério Sanches. Aspectos penais da nova Lei 13.344/16. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=mOEW5IR7PA4. Aceso em 02 de abril de 2020, às 13h03min


[1] CUNHA, Rogério Sanches. Aspectos penais da nova Lei 13.344/16. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=mOEW5IR7PA4. Aceso em 02 de abril de 2020, às 13h03min.

Sobre o autor
Jeferson Botelho Pereira

Jeferson Botelho Pereira. Ex-Secretário Adjunto de Justiça e Segurança Pública de MG, de 03/02/2021 a 23/11/2022. É Delegado Geral de Polícia Civil em Minas Gerais, aposentado. Ex-Superintendente de Investigações e Polícia Judiciária de Minas Gerais, no período de 19 de setembro de 2011 a 10 de fevereiro de 2015. Ex-Chefe do 2º Departamento de Polícia Civil de Minas Gerais, Ex-Delegado Regional de Governador Valadares, Ex-Delegado da Divisão de Tóxicos e Entorpecentes e Repressão a Homicídios em Teófilo Otoni/MG, Graduado em Direito pela Fundação Educacional Nordeste Mineiro - FENORD - Teófilo Otoni/MG, em 1991995. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Teoria Geral do Processo, Instituições de Direito Público e Privado, Legislação Especial, Direito Penal Avançado, Professor da Academia de Polícia Civil de Minas Gerais, Professor do Curso de Pós-Graduação de Direito Penal e Processo Penal da Faculdade Estácio de Sá, Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela FADIVALE em Governador Valadares/MG, Prof. do Curso de Pós-Graduação em Ciências Criminais e Segurança Pública, Faculdades Unificadas Doctum, Campus Teófilo Otoni, Professor do curso de Pós-Graduação da FADIVALE/MG, Professor da Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC-Teófilo Otoni. Especialização em Combate à corrupção, crime organizado e Antiterrorismo pela Vniversidad DSalamanca, Espanha, 40ª curso de Especialização em Direito. Mestrando em Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória/ES. Participação no 1º Estado Social, neoliberalismo e desenvolvimento social e econômico, Vniversidad DSalamanca, 19/01/2017, Espanha, 2017. Participação no 2º Taller Desenvolvimento social numa sociedade de Risco e as novas Ameaças aos Direitos Fundamentais, 24/01/2017, Vniversidad DSalamanca, Espanha, 2017. Participação no 3º Taller A solução de conflitos no âmbito do Direito Privado, 26/01/2017, Vniversidad DSalamanca, Espanha, 2017. Jornada Internacional Comjib-VSAL EL espaço jurídico ibero-americano: Oportunidades e Desafios Compartidos. Participação no Seminário A relação entre União Europeia e América Latina, em 23 de janeiro de 2017. Apresentação em Taller Avanco Social numa Sociedade de Risco e a proteção dos direitos fundamentais, celebrado em 24 de janeiro de 2017. Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad Del Museo Social Argentino, Buenos Aires – Argentina, autor do Livro Tráfico e Uso Ilícitos de Drogas: Atividade sindical complexa e ameaça transnacional, Editora JHMIZUNO, Participação no Livro: Lei nº 12.403/2011 na Prática - Alterações da Novel legislação e os Delegados de Polícia, Participação no Livro Comentários ao Projeto do Novo Código Penal PLS nº 236/2012, Editora Impetus, Participação no Livro Atividade Policial, 6ª Edição, Autor Rogério Greco, Coautor do Livro Manual de Processo Penal, 2015, 1ª Edição Editora D´Plácido, Autor do Livro Elementos do Direito Penal, 1ª edição, Editora D´Plácido, Belo Horizonte, 2016. Coautor do Livro RELEITURA DE CASOS CÉLEBRES. Julgamento complexo no Brasil. Editora Conhecimento - Belo Horizonte. Ano 2020. Autor do Livro VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. 2022. Editora Mizuno, São Paulo. articulista em Revistas Jurídicas, Professor em Cursos preparatórios para Concurso Público, palestrante em Seminários e Congressos. É advogado criminalista em Minas Gerais. OAB/MG. Condecorações: Medalha da Inconfidência Mineira em Ouro Preto em 2013, Conferida pelo Governo do Estado, Medalha de Mérito Legislativo da Assembléia Legislativa de Minas Gerais, 2013, Medalha Santos Drumont, Conferida pelo Governo do Estado de Minas Gerais, em 2013, Medalha Circuito das Águas, em 2014, Conferida Conselho da Medalha de São Lourenço/MG. Medalha Garimpeiro do ano de 2013, em Teófilo Otoni, Medalha Sesquicentenária em Teófilo Otoni. Medalha Imperador Dom Pedro II, do Corpo de Bombeiros, 29/08/2014, Medalha Gilberto Porto, Grau Ouro, pela Academia de Polícia Civil em Belo Horizonte - 2015, Medalha do Mérito Estudantil da UETO - União Estudantil de Teófilo Otoni, junho/2016, Título de Cidadão Honorário de Governador Valadares/MG, em 2012, Contagem/MG em 2013 e Belo Horizonte/MG, em 2013.

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TEMA DE EXTREMA IMPORTÂNCIA. O presente texto tem por escopo precípuo analisar as incongruências técnicas cometidas pelo legislador brasileiro, durante a construção dos tipos penais, no processo legislativo, demonstração inequívoca de falta de zelo ou até mesmo de conhecimento técnico no momento de formatar os tipos penais e garantir segurança jurídica para a sociedade brasileira.

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