HAVERÁ UMA NAVE NOÉ?

05/04/2020 às 16:55
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Ao longo de centenas de anos, a filosofia libertou-se da fé cristã, contudo, continuou a carregar consigo o equívoco do Cristianismo: a crença de que os seres humanos são muito diferentes de todos os outros animais. Todavia, os ventos mudam.

RESUMO: Ao longo de centenas de anos, a filosofia libertou-se da fé cristã, contudo, continuou a carregar consigo o equívoco do Cristianismo: a crença de que os seres humanos são muito diferentes de todos os outros animais. Todavia, os ventos mudam trazendo novas concepções, correspondendo a uma transformação no tecido moral da sociedade. Nesse novo momento histórico uma nova valoração do conteúdo intrínseco do Direito tem sido convocada, que tenha como fundamento o respeito, a sensibilidade, o relacionamento, o amparo e a responsabilidade com as formas de vida. Não obstante, as Constituições nacionais englobam em seus conceitos um racionalismo que separa o homem das outras formas de vida que com ele habitam este Planeta. Por isso, a transformação é necessária, na medida em que o antropocentrismo clássico em nível mundial está em processo de superação. Assim, vamos à busca, em uma incursão que tem seu início na Pré-História da Humanidade, de uma perspectiva dos elementos naturais como objeto de consideração moral e ética, a partir de análises de uma Hemeroteca bastante diversa Ao se ampliar a noção de dignidade da pessoa humana, a partir do reconhecimento da sua necessária dimensão ecológica, é reconhecer uma dignidade da vida não-humana, é aventar-se a uma releitura do clássico contrato social em direção a uma espécie de contrato socioambiental ou ecológico como realidade, objetivando conferir espaço aos entes naturais no âmbito da comunidade estatal.

Palavras-chave: Transformação; Valoração do conteúdo intrínseco do Direito; Releitura do clássico contrato social; Contrato socioambiental ou ecológico como realidade.

INTRODUÇÃO

 

Cuidado com a fera, porque é o peão do Mal. Sozinho entre os primatas de Deus, ele mata por esporte ou luxúria ou ganância. Sim, ele matará seu irmão para possuir a terra de seu irmão. Que ele não se reproduza em grande número, pois ele fará um deserto da casa dele e da sua. Afaste-se dele; leve-o de volta ao covil da selva, pois ele é o prenúncio da morte.

Doutor Cornelius, “O Planeta dos Macacos”.

 

O “Planeta dos Macacos”, obra cinematográfica que foi lançada há 50 anos, através de sua filosofia altamente digerível às massas, colaborou com seu efeito simbólico a discussão, de forma clara, do direito à vida e à liberdade, provocando um exercício de empatia em relação aos animais. Cinquenta anos depois da estreia, a discussão ainda permanece atual: teria o ser humano o direito de utilizar os animais como figurantes em seu protagonismo na Terra?

No ano de 2018, em que se completaram: os 30 anos da Constituição Federal, que estabeleceu parâmetros importantes para a proteção da fauna; os 20 anos da Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998; aos 40 anos da “Declaração Universal dos Direitos dos Animais” e ainda, a estreia do livro “A Origem das Espécies”, de Charles Darwin, importante marco para a mudança da visão científica, filosófica e religiosa sobre os animais, o homem que um dia criou seres fantásticos como unicórnios, dragões e fênix, movido pelo fascínio pelos animais, é o mesmo que hoje os oprime da vida real.

Diferentemente dos imaginários, que perduraram na ficção, os reais vêm enfrentando uma longa batalha pela sobrevivência num mundo dominado por seu principal predador, o Homo sapiens.

Como em uma guerra, percebemos o homem em uma ambiguidade de sentimentos humanos em relação à fauna, que sugere uma esquizofrenia humana ao associar admiração e destruição do sujeito desejado. Estamos sempre constatando a destruição e os maus tratos a animais, assim como um discurso paralelo, e muito atual, de preservação e admiração em relação à fauna e flora, que se apresenta mais do que uma questão de direitos animais. Há um desequilíbrio, uma desproporção nos atos destruidores. Atos devastadores e mais ativos do que os bons sentimentos.

É o homem apenas mais uma espécie, de origem recente e extinção não muito distante, como todas as demais. Galileu nos demoveu da certeza da grandeza astronômica de nosso Planeta. Darwin nos convenceu da pequenez biológica dos humanos. Diante da nossa evidente pequenez, como açoitar as demais espécies?

A exposição da arqueóloga Anna-Merie Pessis (2003), responsável pelas investigações junto a outros profissionais da Arqueologia no Parque Nacional Serra da Capivara, importante sítio arqueológico revelador da Pré-História do Brasil, conduz a uma assertiva que adentra aos contornos conflituosos apregoados pela tradição judaico-cristã.

De acordo com Pessis (2003), há muito, os animais humanos afastaram-se de sua consciência biológica. Somando-se a essa exposição, tem-se ainda a refletir no meio ambiente e nas relações do homem com a Natureza, uma tradição que prega animais e plantas como inferiores a humanos. Formação moral especista, na qual seus efeitos podem ser vistos, claramente, como em um jogo de espelhos, refletidos nos mais diversos problemas ambientais. O pensamento, bastante antropocêntrico, de que qualquer coisa viva somente é atribuída de valor se servir aos propósitos e negócios humanos guiaram tanto homem como Natureza a um arcabouço de problemas que parecem não encontrar o seu fim, muito embora, se tenha consciência sobre o seu início.

O ser humano ao se apartar de sua consciência biológica institucionalizou-se como único protagonista na cena da vida. Afinal, sob essa perspectiva, animais e plantas não se configuram como seres falantes, não reivindicam direitos, portanto, segundo essa lógica não os tem, não agenciam novas tecnológicas, e assim por adiante. O que se pode auferir plenamente da perspectiva antropocêntrica é a existência de um profundo engano, ao confundir habilidades típicas do cognitivo humano, como racionar de modo instrumental e a habilidade de transmitir esse raciocínio utilizando-se de sons articulados, ou seja, palavras que acabam por induzir a uma superioridade moral.

Extrai-se dessas argumentações, a seguinte indagação: Somente àqueles que possuem a habilidade da razão, nos moldes antropocêntricos, são apenas estes, entes possuidores e sujeitos de direitos? Direitos que acabam por abarcar o uso, o abuso, a exploração e, por inúmeras vezes, a promoção da morte de quem não se encontra dentre o rol estabelecido pelos animais humanos da habilidade da razão?

No mais, o Direito Ambiental, considerado um ramo especial do Direito, configura-se como Direitos Fundamentais de 3ª. dimensão, portanto, materializa em seu ordenamento poderes de titularidade coletiva, ultrapassando o modelo arcaico da visão individualista, como também supera por suas características a dicotomia entre o público e o privado, revestindo-se de uma natureza que se posta além das relações de direitos entre homens, como leciona Elida Seguin (2006).

Recorrendo-se ainda as lições anotadas de Elida Seguin (2006, p. 94), explicam-se as transformações a partir do Direito Ambiental que “transforma o objeto, dando-lhe uma nova versão, que guarda similitude com os que o compõem sem perder sua individualidade”.

Questões que se impõem e se projetam no campo da razão, transformando comportamentos sociais, costumes, tradições e parâmetros morais originados da sociedade de outrora e, que na contemporaneidade assumem relevância no contexto.

Por entre os caminhos utilizados na confecção desta comunicação incursionamos em diversas disciplinas, até mesmo, porque estamos diante de uma dimensão comportamental do ser humano, na qual a relação do homem com o seu entorno não pode ocupar papel secundário. Assim, a interdisciplinaridade se perfaz presente, tornando essencial o reencontro das Ciências Naturais e das Ciências Humanas. A complexidade da essência humana exige o agenciamento de teores pluralistas.

Insurge de uma abordagem interdisciplinar um novo paradigma, o qual reconhece o mundo como um sistema vivo, onde homem e Natureza constituem-se parte integrante de um ecossistema.

1 UMA NECESSÁRIA CONSCIÊNCIA BIOLÓGICA

Esta investigação não se aparta de sua natureza sentimental, até mesmo, porque se configuraria como falácia que a subjetividade seja afastada pelo pesquisador acadêmico. É cada vez mais pertinente e necessária à compreensão da realidade, a subjetividade. Subjetividades esta, que vem ocupando lugar na reflexão da Ciência enquanto processo de construção de conhecimento. O debate na atualidade indica que o conhecimento sobre o sujeito não pode prescindir do olhar atento sobre as tramas que o envolvem, sobre as formas como se expressa e articula com o mundo ao seu entorno. Em suma, sobre a complexidade de sua configuração individual.

Aliás, estamos a nos ocupar a debater sobre antropocentrismo, ocupando nestas páginas e linhas, o espaço central do tema em questão, o que nos conduz a um viés, inclusive, de perspectiva histórica, que pode ser observada na trajetória constitucional do país.

2. Teoria do Pensamento Complexo e Teoria da Subjetividade

A compreensão da realidade na perspectiva da complexidade é destaque nas discussões da Teoria do Pensamento Complexo (MORIN, 2005) e da Teoria da Subjetividade (GONZÁLES REY, 1997).

A primeira vista, a análise da realidade na perspectiva da complexidade pode parecer um contexto de incerteza, de desordem e de irracionalidade, mas como aborda Edgar Morin (2000, p. 38):

[...] complexus significa o que foi tecido junto; de fato, há complexidade quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico), e há um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre o objeto de conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as partes entre si. Por isso, a complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade. Os desenvolvimentos próprios a nossa era planetária nos confrontam cada vez mais e de maneira cada vez mais inelutável com os desafios da complexidade.

Desta maneira, não há como se pensar a complexidade sem que a sua heterogeneidade constitutiva e a sua natureza plural não sejam admitidas e incorporadas. Nesse sentido, constitui-se como uma maneira de compreender a realidade em que aspectos como a desordem, a contradição, o pluralismo, a diversidade, a singularidade, a indivisibilidade e o histórico são princípios fundamentalmente importantes.

A Teoria da complexidade de Morin (2005) é um dos fundamentos da Teoria da Subjetividade de González Rey (1997) em virtude da compreensão complexa que desenvolve sobre o funcionamento psicológico humano. Nessa perspectiva, Fernando Luis González Rey (2004, p. 137) apresenta o conceito de subjetividade, como:

Um macroconceito que integra os complexos processos e formas de organização psíquicos envolvidos na produção de sentidos subjetivos. A subjetividade se produz sobre sistemas simbólicos e emoções que expressam de forma diferenciada o encontro de histórias singulares de instâncias sociais e sujeitos individuais, com contextos sociais e culturais multidimensionais.

A partir desta compreensão do conceito, os pilares da Ciência Clássica: ordem, separação, redução e racionalismo, são subvertidos. A concepção de indivíduo passa pelo que nele há de contraditório, resultado da sua ação como sujeito e dos reflexos da sua história de vida. Compreender o sujeito significa visualizar sua interação com os outros e com o mundo. Trata-se de uma oposição ao arcaico reducionismo da Ciência.

A compreensão da realidade passa pela necessária inclusão da ação do sujeito. E o sujeito através da sua elaboração criadora, dos vínculos que estabelece com o ambiente e da expressão da sua prática nas atividades sociais, como elucida Ovídio D’Angelo Hernández (2005), transforma e é transformado, concede significados, interpreta segundo estruturas preestabelecidas e por ele produzidas, e essa ação de significação e objetivação também faz parte da realidade.

3 A RELAÇÃO ENTRE ANIMAIS HUMANOS E NÃO-HUMANOS NO ESPAÇO-TEMPO DA HUMANIDADE

A relação entre humanos e não-humanos assume diversos contextos na sociedade atual, podendo ser vistos como monstros ou mitos, anjos ou demônios, amigos ou escravos. Mas, nem sempre a humanidade se postou da mesma maneira.  A trajetória de desventuras dos animais teve seu início há seis milhões de anos, quando o antecessor humano e o macaco, originados do mesmo ancestral, tomaram rumos diferentes na evolução.

A partir da África, os sapiens se espalharam pelo mundo. Há dois milhões de anos, foram para Europa e Ásia. Povoaram a Austrália há 45 mil anos, e a América há 16 mil anos. Há 100 mil anos, pelo menos seis espécies de humanos habitavam o Planeta. Há 13 mil anos, o Homo sapiens se tornou a única espécie humana sobrevivente.

Quando começou a caminhar sobre duas pernas e, com as duas mãos agora livre, o sapiens descobriu que podia usar pedras, madeiras e ossos como ferramentas. E, no ínterim entre o osso lançado ao alto até o satélite lançado no espaço, o uso dessas ferramentas levou o Homo sapiens à caça, que gerou dois comportamentos, uma dieta cujo alimento principal seria a carne, contribuindo com mais energia e expansão do cérebro humano e visão do animal “irracional” como inimigo, milhares de anos depois.

Com o advento do fogo, os predadores passaram a ser afugentados, o homem pôde adaptar-se a mudanças climáticas e passou a preparar seus primeiros churrascos, concedendo, a partir do ato de cozinhar os alimentos a energia suficiente para alimentar os nossos 86 bilhões de neurônios, o que o fez, tomar um caminho diferente dos macacos. Mas o maior acontecimento para o humano foi a revolução cognitiva, quando surgiu a linguagem há 70 mil anos.

Os humanos que viveram há um milhão de anos, apesar de seus cérebros grandes e ferramentas de pedras afiadas, viviam com um temor constante dos predadores, raramente caçavam animais grandes e subsistiam principalmente da coleta de plantas, insetos e captura de animais pequenos, comendo, inclusive, carniça deixada por outros animais mais fortes. As pedras eram usadas para quebrar os ossos e comer o tutano, restos de alimentos deixados por outros animais. A posição do gênero Homo na cadeia alimentar era, portanto, até pouco atrás, intermediária. Somente há 400 mil anos, várias espécies de homens começaram a caçar animais grandes regularmente, e apenas nos últimos 100 mil anos, com a ascensão do Homo sapiens, esse homem saltou para o topo da cadeia alimentar.

Este espetacular salto, do meio para o topo, gerou consequências grandiosas. Outros animais no topo da pirâmide, por exemplo, como leões e tubarões, evoluíram para essa posição de maneira gradual, ao longo de milhões anos. O que permitiu que o ecossistema desenvolvesse formas de compensação e equilíbrio, que impediram que leões e tubarões causassem destruições em excesso. À medida que leões se tornavam mais ferozes, a evolução fez as gazelas correrem mais rápido. Contudo, de maneira diversa, a humanidade ascendeu ao topo rapidamente e o ecossistema não teve tempo de ajustar-se.

Até pouco tempo atrás oprimidos na savana, tomados pelo medo e ansiedades quanto à posição ocupada, nos tornamos duplamente perigosos e cruéis. Nossos efeitos são claramente vistos nas calamidades históricas, nas guerras mortais e catástrofes ecológicas. Fruto desse apressado salto. O resultado: extinção de algumas espécies. Tem-se, como ilustração, a morte do último rinoceronte-branco macho do norte da Terra, em maio deste ano, no Quênia, que aos 45 anos, vítima de uma infecção irreversível, foi submetido a uma eutanásia.

No Brasil, país ainda jovem, com 518 anos de história relacionada ao ‘homem branco’, 322 espécies foram extintas. De acordo com pesquisa do Instituo Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio), há uma lista de mais de 1173 espécies ameaçadas. As maiores vítimas são as aves, como a coruja caburé-de-pernambuco, a ave gritadordo-nordeste, a ave limpa-folha-do-nordeste, a perereca-verde-da-fímbria, o roedor ratode-fernando-de-noronha.

Sob a perspectiva de uma manifestação cultural típica do animal humano, a Religião, os animais assumiram ante as mais diversas civilizações, as figuras que vão desde as formas de deuses as formas de demônios. Já na Pré-história, a trajetória do homem se confunde a de animais não humanos. É a partir desse espaço-tempo que a nossa incursão tem seu início. Não é possível a separação da transformação da sociedade e a evolução do Direito.

3.1 Pré-História: espaço-tempo de comunhão

As primeiras histórias registradas por mitos parecem ter sido instigadas pelo mundo natural que cercava os povos primitivos. Por exemplo, os pimas do sudoeste americano possuem um mito no qual o deus Gavião reproduz nosso mundo em um cosmo em miniatura. Cada mito é como este cosmo em miniatura, apresentando uma ampla gama de significados.

Todas as mitologias narram como os primeiros homens foram feitos, e muitas vezes, a humanidade parece emergir como um tipo de reflexão posterior, apenas após o processo principal da criação estar concluído, seja pelos deuses, ou por uma raça de seres ancestrais. Ao longo de sua existência, o animal humano, de uma forma ou outra, registrou e ainda registra sua vida, seu imaginário, seu cotidiano, e uma dessas formas de registro é a Arte Rupestre. Dessa forma, o ser humano passou a ser impor enquanto registro de sua existência, a partir do momento em que foi capaz de deixar suas marcas, através da transformação que atribui à Natureza e pelas interferências produzidas e singularidades culturais que se constituíram e, ainda continuam a se constituir, desde antes do período da escrita alfabética.

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Para garantir a própria sobrevivência, o animal humano adquiriu a capacidade de transitar pelas mais variadas regiões do Planeta. Por ser onívoro, passou a comportar características que lhe conferiram determinadas vantagens ante aos outros animais não humanos. Tornou-se capaz de preservar sua espécie e defender‐se frente aos desafios hostis que a Natureza os impunha. Saga que pode ser revisita quando incursionamos em tempos pré-históricos.

A princípio, com o apoio da Natureza, traça com os dedos figuras nas paredes úmidas das cavernas, se apropriando das sugestões de suas formas, utilizando carvão e pigmentos terrosos para a elaboração dos seus registros. Na riqueza dessas imagens identificam‐se alguns animais, cenas de caça, de rituais, de sexo, e imagens representando plantas, as quais são denominadas de imagens “fitomorfas”, conforme lições da arqueóloga Gabriela Martin (1999). 

As figuras que representam animais são encontradas em abundância em determinadas regiões; em algumas outras há uma maior diversidade, nas quais, além das representações de animais, figuras humanas e geométricas, plantas e objetos, sendo que as representações de animais são as que permanecem sendo desenhadas por um período de tempo mais extenso.

 Por exemplo, a Caverna de Lascaux na França apresenta pinturas rupestres datadas de aproximadamente 17.000 anos. Também, podemos ver tais registros na Caverna de Chauvet, França. Há ursos, panteras, cavalos, mamutes, hienas, dezenas de rinocerontes peludos e animais diversos.

Percebe‐se que todas estas imagens constituem elementos significativos a identificação de grupos culturais, indicando uma opção particular dos grupos humanos dentro de um universo de possibilidades. Já que, por exemplo, nem todos os animais contemporâneos ao homem foram representados. Também por refletir as condições de sua realidade e a relação existente entre os animais humanos e os animais não humanos durante um determinado período.

Buscamos com estas ilustrações refletir, mediante a arte rupestre vista no mundo inteiro, uma vez que se trata de uma arte universal, o reconhecimento da interação do homem com o meio no qual está inserido. São imagens representadas desde tempos remotos, que demonstram evidências que o animal humano observa os ciclos da Natureza como base para os universos de representações desiguais que integram a leitura da cultura e da Natureza. Nessa condição, o homem não pretendia dominar a Natureza, mas reconhecer a si mesmo, os seus limites e possibilidades, conforme explica Eugênia Dantas (2004).

Dantas (2004) relata sobre a sedimentação de conhecimentos e informações a respeito da relação Homem/Natureza, capaz de religar e reconhecer meandros da Natureza na trajetória da cultura, que nos conduz ao entendimento de Edgar Morin (2005), ao destacar que o homem é 100% biológico e 100% cultural. A autora acrescenta ainda, que a natureza é um conjunto de representações que fazemos e temos a respeito de sua dinâmica, tanto quanto o homem ao falar da Natureza constrói representações de si mesmo. Dessa maneira, quando nos reportamos à arte rupestre, percebemos a Natureza como produtora de design, uma tela, na qual a arte pré‐histórica assume uma dinâmica própria, carregada de sentidos que nos levam a perceber a Terra como um grande ateliê a expor uma multiplicidade de impressões culturais.

O físico alemão Werner Heisenberg (1901‐1976), um dos pais da física quântica, ressalta que: “Se a Natureza nos conduz a formas matemáticas de uma grande simplicidade e beleza – que ninguém antes entreviu, não podemos impedir‐nos de pensar que elas são verdadeiras, que elas revelam um aspecto real da Natureza” (THUAN, 1999, p. 17).  Heisenberg ainda reforça que a beleza das coisas está nos olhos de quem as vê.

Nesse instante aconselhemos a escutar a definição de Beleza de Heisenberg, semelhante à perspectiva na Antiguidade: “A conformidade das partes umas com as outras e com o todo” (THUAN, 1999, p. 20).

Neste tempo-espaço, conformado a gerações futuras, através de um sítio rupestre, a natureza humana, o meio ambiente e a cultura se encontram coexistindo, e o sentido é criado em uma conjunção dessas variantes. Tais conjunções são produtos únicos da interação entre cérebro e a cultura.

Também no Brasil, natureza humana, o meio ambiente e a cultura se encontram coexistindo em um todo. Como as pinturas rupestres do Parque Nacional Serra da Capivara. Os autores destas pinturas (grupos étnicos) viveram fora dos abrigos, em aldeias emergidas em lugares planos no alto das chapadas ou perto de fontes hídricas, como rios sazonais e reservatórios naturais. Ao lado de uma beleza extensa, abundante e natural de sua flora, junto ao mesmo espaço-tempo de uma megafauna, como preguiças gigantes e tigres dente-de-sabre. Fenômeno que se repete em outras regiões Nordeste do país.

Desde o século XVI, cronistas relatam a existência de sítios rupestres no Brasil. Dentre os relatos, tem-se as referências de Manoel da Nóbrega (1988), datadas de 1549, referindo-se as “pisadas” de São Tomé. Relatos sobre as pegadas de São Tomé aparecem desde “A Nova Gazeta da Terra do Brasil”, primeiro documento que versa sobre São Tomé na América (1515). Junto às pegadas do mito Sumé ou Tomé, encontrou-se lugar até mesmo para as gravuras zoomorfas, animaizinhos que haviam se aproximado do santo para ouvir sua pregação.

A pesquisadora Ana Célia Barradas Correia Correia (1992, p. 82) nos conta que,

A marca de pé humano, esquerdo, “perfeitíssimo”, com o calcanhar para a terra e os dedos para a água, é atribuída ao apóstolo São Tomé. A pata de animal, segundo eles, seria o rastro de um cachorro. As depressões circulares são vistas como marcas do cajado do santo. Faria parte ainda do conjunto uma figura identificada com uma cruz cristã, símbolo da religiosidade do autor das pegadas.

Quetzalcoatl é a divindade suprema do panteão asteca, juntamente com os deuses Tlaloc, Tezcatlipoca e Huitzilopochtli, civilização que habitava o estado do México. Também identificado como expressão de grande herói dessa mitologia; deus do vento, do planeta Vênus, do amanhecer, dos comerciantes, das artes, artesanato, conhecimento e senhor da luz. A serpente com asas que lhe é atribuída, “Serpente Emplumada”, representa espírito (serpente) e corpo (pássaro). É o criador e transgressor da fronteira entre a Terra e o Céu. Ele é uma divindade criadora, tendo contribuído essencialmente para a criação da humanidade. Animais que provavelmente representam Quetzalcoatl incluem o quetzal-resplandecente, cascavel, o corvo, e a arara. Em sua forma como a Estrela da Manhã, Vênus, é retratada como um gavião. 

Quetzalcoatl é considerada uma das divindades mais antigas da América Central, uma vez que as serpentes sempre foram reverenciadas pelos povos dessa região. Seu culto teria surgido com a civilização olmeca, a mais antiga conhecida da Mesoamérica, e passado em seguida para os teotihuacanos, toltecas, astecas e maias. Para os maias, o deus era conhecido como Kukulcán. Dois outros deuses representados pelo planeta Vênus são aliados de Quetzalcoatl: Tlaloc que é o deus da chuva, e irmão gêmeo de Quetzalcoatl e, o deus da morte chamado Xolotl.

Tezcatlipoca, deus asteca, é a divindade do céu noturno, da lua e das estrelas; senhor do fogo e da morte. Ele é o patrono dos soldados jaguares, espécie de tropa de elite asteca, também representado como deus jaguar. Seu nome significa “Senhor do Espelho Fumegante”, em alusão ao espelho negro que carrega em seu pescoço, lhe permitindo ver o que se passa em qualquer parte do mundo.

Na mitologia mexicana, os cães eram seres muito mais do que amigos dos homens, eram valorizados como companheiros incondicionais da vida e também da morte, sendo sacrificados para guiar e acompanhar as almas no submundo. Também conhecido como pelado mexicano, o Xoloitzcuintle é uma raça canina oriunda do México. Desprovido de pelo, como o próprio nome já diz, é popular em seu país de origem, embora também esteja difundido pela América do Sul e Central.

Mas muito mais do que uma simples raça de cachorro, possuem um grande envolvimento com os astecas. É uma raça canina um tanto rara, não existindo muitos deles no mundo. São possuidores de um valor histórico e cultural, o que os torna uma herança e símbolo da Cidade do México. Sua origem é bastante antiga, aproximadamente três mil anos. O nome Xoloitzcuintle vem de Naguatl ‘Xolotl’, em razão do Deus Xolotl e Itzcuintli, que significa ‘cão’.

De acordo com lenda, o Deus Xolotl da transformação, dos espíritos e da escuridão é também irmão gêmeo de Quetzalcoatl como já nos referimos, enviou ao mundo dos homens o Xoloitzcuintle, como um presente que os protegeria até o final de seus dias e após a morte. Este presente devia ser digno, admirado e respeitado pelos astecas. Por essa razão, desde a sua chegada ao mundo, estes cães se tornavam fiéis aos seus mestres, até mesmo depois da morte. Acreditava-se que esses animais dirigiam as almas para o Mictlán, o submundo da mitologia asteca. 

Também, há civilizações nas quais os deuses já foram cães, gatos, aves, jacarés, sapos, falcões, bois, no Egito, universo permeado por seres antropoformos, zoomorfos, e por que não? Antropozoomorfos.

3.2 A Civilização que Compreendia as Leis como uma Rede de Forças

Nas palavras do historiador Heródoto (500 a.c.), citado por Moustafa Gadalla, “de todas as nações do mundo os egípcios são os mais felizes, saudáveis e religiosos (2004, p.21).

Segundo Gadalla (2003b, p.24), o conhecimento cosmológico do Antigo Egito foi expresso no formato de uma história, que seria considerado um meio superior de expressar tanto os conceitos físicos quanto a metafísica. Sendo assim, esses princípios são a base para a estrutura política e social da cultura em foco.

Em se tratando de uma civilização cuja cosmovisão se assenta no mito, e cuja temporalidade do faraó é por extensão a sociedade como um todo, viabiliza a reprodução e manutenção de uma ordem, que por sinal é denominada Maat, podendo ser considerada a medida ética que orientou a conduta moral.

Ao longo dos séculos e com o aprofundamento dos estudos acerca das instituições jurídicas no Egito Antigo, ficou evidente que aquela nação gozava de uma estrutura judicial muito semelhante a que observamos nos dias atuais, inclusive, podendo se dizer que havia um ordenamento que compactuava com os Direitos Fundamentais.

Em relação ao Direito Ambiental, pode-se dizer que os egípcios creditavam em uma relação equilibrada entre pessoas e animais, e essa premissa era um elemento essencial da ordem cósmica e, como consequência, animais e plantas eram membros de um Todo. Tanto animais domésticos como selvagens eram fonte de espiritualidade, companheirismo e sustento. Por exemplo, o abate de um boi gordo era parte central de um ritual de oferenda.

Durante o período pré-dinástico e nos posteriores, o culto dos deuses em sua forma animal era extremamente popular. Muitos desses animais eram criados em grande número com o objetivo de serem sacrificados e mumificados. Ciro Flamarion (1982) observa que, por exemplo, o cavalo era usado para puxar carros, e não montado. Vacas e bois eram usados também para alimentação (carne, leite) e sacrificados aos deuses. Cada cidade possuía um deus patrono e um animal consagrado a ele, demonstrando o respeito e a admiração as habilidades do animal. Assim, os deuses possuíam características antropomórficas, zoomórficas e mistas, eram considerados como múltiplas facetas da realidade, por vezes conflitantes.

Dentre alguns Deuses que compunham uma vastidão mitológica, tem-se:

O grande deus de Tebas, Amon, de origem incerta. O primeiro elemento cósmico a receber a vida no caos que prevalecia antes do universo tomar forma. Posteriormente adquiriu fisionomia própria. Seus animais sagrados eram o carneiro de chifres curvos e o ganso. 

Rá, um falcão representando o Sol no auge de seu esplendor, forma mais comum assumida pelo Deus-Sol: um homem com cabeça de falcão encimada pelo disco solar, pela serpente Uraeus ou pela coroa dupla dos faraós. Representava o Juiz Supremo, o criador dos homens.

Sekhemet, uma mulher com cabeça de leoa encimada pelo disco solar, simbolizava o calor e os poderes destrutivos do Sol e protegia o faraó em sua tumba. Era respeitada como aquela que traz a destruição para os inimigos de Rá. Embora fosse uma leoa sanguinária, também operava curas e tinha um frágil corpo de moça, como se pode ver na estatueta conservada no Museu do Cairo. Era a deusa cruel da guerra e das batalhas e tanto causava quanto curava epidemias, sendo a patrona dos médicos. 

 O mais venerado e célebre dos animais sagrados, o touro Ápis, a expressão mais completa da divindade sob a forma animal. Diferentemente de outras divindades, era sempre representado na forma animal e nunca na forma humana com cabeça animal. Encarnação, ao mesmo tempo, dos Deuses Osíris e Ptah. Por ser uma antiga divindade agrária simbolizava a força vital da Natureza e sua força geradora.

 Aker, Deus-terra bastante antigo, provavelmente no Egito os leões tenham ganhado simbolismo de cunho religioso no período pré-histórico. A associação entre o rei e o leão deve ter se originado das caçadas a esses animais pelos chefes tribais durante o período pré-dinástico. Fato é que o “rei das selvas’ sempre foi símbolo do poder e soberania dos faraós.

O carneiro era um animal considerado excepcionalmente prolífico pelos egípcios, simbolizava um dos deuses relacionados com a criação. Segundo a lenda, o Deus Khnum, um homem com cabeça de carneiro com chifres horizontais, era quem modelava em seu torno de oleiro, os corpos e os kas, isto é, réplicas imateriais dos corpos dos deuses e, também, dos homens e mulheres, pois plasmava em sua roda todas as crianças ainda por nascer. Acreditava-se ainda que ele tivesse modelado o ovo primordial, do qual saiu à luz solar no início dos tempos.

Na passagem pelo reino das sombras, à noite, Rá, o Deus-Sol, enfrentava diversos adversários, dentre os quais, as serpentes. O líder dos adversários era a grande serpente Apófis, ou, Apep.

Gata ou uma mulher com cabeça de gata simbolizava a Deusa Bastet, representando os poderes benéficos do Sol. Essa divindade também estava associada à Lua e protegia os partos e as mulheres grávidas de doenças e dos maus espíritos. O gato, aliás, era um dos bichos mais estimados no Egito. Bastet era uma divindade bastante antiga, já citada nas primeiras dinastias, quando então era identificada com os gatos selvagens que povoavam o país. Foi a partir do Império Médio (c. 2040 a 1640 a.C.) que ela começou a ser associada com o gato doméstico.

Os babuínos ou cinocéfalos são grandes macacos africanos, cuja cabeça oferece alguma semelhança com a dos cães e que, no entender do historiador grego Diodoro de Sicília, parecem-se a homens disformes por seu corpo, sendo seu grito um gemido de voz humana. Outro autor grego, Eliano, que escreveu um tratado sobre a natureza dos animais, garantia que no tempo dos Ptolomeus, os egípcios ensinaram os cinocéfalos a ler, a dançar, a tocar flauta e a cítara. No Egito antigo esses animais, usando o disco lunar e o crescente na cabeça, estavam associados ao Deus Thoth.

Thoth ou Tehuti era considerado o Deus da escrita, sendo a divindade que revelara aos homens quase todas as disciplinas intelectuais: a escrita, a aritmética, as ciências em geral e a magia. Era o Deus-escriba, por excelência. Inventor da escrita hieroglífica e escriba dos deuses. Senhor da sabedoria e da magia. Além de sua representação como cinocéfalos, era simbolizado pela ave Íbis.

O Chacal, animal que tem por hábito desenterrar ossos, paradoxalmente representava para os egípcios o Deus Anúbis, justamente a divindade considerada a guardiã fiel dos túmulos e patrono do embalsamamento. Representado por um chacal ou por um cão deitado, ou ainda pela figura de um homem com cabeça de chacal ou de cão, o Deus Anúbis ou Anpu era o embalsamador divino e um dos responsáveis pelo julgamento dos mortos no além-túmulo. No reino dos mortos, na forma de um homem com cabeça de chacal, ele era o juiz que, após uma série de provas pelas quais passava o falecido, dizia se este era justo e merecia ser bem recebido no além-túmulo, ou se, ao contrário, seria devorado por um terrível monstro, Ahmit.

 Ahmit, combinação de crocodilo, leão e hipopótamo. Divindade que assistia ao julgamento dos mortos e devorava a alma dos condenados, sendo, por isso, conhecida como o devorador dos mortos. 

Com Tehuti, Anúbis e Ahmit inauguramos o Tribunal de Osíris, elemento essencial no “Livro dos Mortos”.

No Egito antigo, a Religião que possuía um caráter atognático, influenciava tanto a ideologia com viés divino, quanto o caráter prático da sociedade (GOMES, 2010). Seus deuses representavam as virtudes e os atributos de Deus, representando diversos elementos naturais que eram vinculados com elementos cotidianos. 

3.2.1 O “Livro da Saída para a Luz

Assim como os Direitos Fundamentais em geral, identifica-se também nas relações ao meio ambiente uma evolução histórica, que tem seu início na Antiguidade e que se consolida mesmo que tardiamente. 

Jorge Alberto Oliveira de Marum (2002) ilustra o texto se referindo ao estudo sobre a história do Direito Ambiental realizado por Renato Guimarães Jr., e adverte que o “Livro dos Mortos” do Antigo Egito, assim como o “Código de Hamurabi” e o “Hino Persa de Zaratrusta”, já se demonstrava a preocupação das antigas civilizações com relação ao respeito à Natureza.

A “Lei Mosaica”, inclusive, confere também ao “Livro dos Mortos” e as confissões negativas um caráter de “Código Legislativo”. Segundo alguns historiadores, essa lei possui adaptações e transcrições encontradas em códigos legislativos e morais mais antigos, como os utilizados pelos egípcios como excertos do “Livro dos Mortos”, bem como, o “Código de Manu” - Hindu, a “Lei de Talião” - Babilônia e o “Código de Hamurabi”. Essa lei traz em seu bojo, uma preocupação com a preservação do meio ambiente, determinando que o arvoredo fosse poupado em caso de guerra (MARUM, 2002).

O Livro Egípcio dos Mortos é o livro mais antigo que se tem conhecimento da confissão negativa. É um modelo utilizado pelos sacerdotes egípcios para guiar a alma dos homens até o paraíso, onde desfrutaria de vida eterna consciente e feliz. Antes de chegar até Anúbis, o Juiz, a alma desencarnada passaria por uma sequência de provações, que se bem-sucedidas deveria pronunciar a Anúbis, que o esperava no fórum das almas, as 42 confissões negativas e, em seguida Anúbis pesaria em uma balança seus atos bons e ruins.  Ao se analisar cada uma das 42 confissões negativas pode-se estabelecer vínculos com alguns princípios de Direito. “

Os Extratos do Papiro da Real Mãe Nezemt” contêm uma espécie de Código Ético, personificados nas quarenta e duas leis essenciais da Natureza, conhecidas como confissões negativas, demonstrando o que os seres humanos deveriam abster-se em vida para a conquista da eternidade. Somente depois de confrontadas as quarenta e duas leis essenciais, o morto seria, então, colocado diante da balança da justiça para ser julgado e livrar-se, ou não, da roda dos renascimentos. São elas, as quarenta e duas leis naturais: 

1. Eu não cometi pecados; 2. Eu não assaltei; 3. Eu não roubei; 4. Eu não agi com violência; 5. Eu não matei seres humanos; 6. Eu não roubei oferendas; 7. Eu não causei destruição; 8. Eu não pilhei a divina propriedade do templo; 9. Eu não confiei falsidade; 10. Eu não saqueei grãos; 11. Eu não amaldiçoei; 12. Eu não transgredi; 13. Eu não abati o rebanho divino do templo; 14. Eu não fiz mal; 15. Eu não saqueei a terra cultivada; 16. Eu não agi com luxúria; 17. Eu não amaldiçoei ninguém; 18. Eu não fiquei irado sem causa justa; 19. Eu não dormi com o marido de nenhuma mulher; 20. Eu não poluí a mim mesmo; 21. Eu não aterrorizei nenhum homem; 22. Eu não pilhei; 23. Eu não agi com raiva; 24. Eu não me fiz de surdo ao ouvir palavras da justiça e da verdade; 25. Eu não aticei brigas; 26. Eu não fiz ninguém chorar; 27. Eu não forniquei; 28. Eu não destruí meu coração; 29. Eu não amaldiçoei ninguém; 30. Eu não exagerei; 31. Eu não realizei julgamentos precipitados; 32. Eu não cortei a pele e pêlos de animais divinos; 33. Eu não elevei minha voz em conversas; 34. Eu não cometi pecados e não procedi mal; 35. Eu não amaldiçoei a realeza; 36. Eu não desperdicei água; 37. Eu não agi com arrogância; 38. Eu não amaldiçoei divindades; 39. Eu não agi com falso orgulho; 40. Eu não agi com desdém; 41. Eu não aumentei minhas riquezas exceto por meio de meus próprios recursos; 42. Eu não desprezei o princípio de minha cidade (SELLEM, 2005, p.140-144).

A filosofia religiosa do Egito antigo foi construída de acordo com as leis naturais, não a partir da vida de uma personalidade, profeta ou indivíduos. Pode-se notar o modernismo incomum ao período comparado aos dias atuais em relação aos princípios de Direitos Humanos, e que não seria nenhum absurdo aceitá-los como originados no Egito antigo. Sidney Guerra (Apud NASCIMENTO FILHO, 2011) partilha da mesma posição.

O estudo dos direitos humanos tem como marco teórico a origem dos direitos individuais da pessoa humana no Antigo Egito e na Mesopotâmia, onde já existiam ferramentas que possibilitavam a proteção individual contra o arbítrio do Estado, sendo a civilização egípcia a primeira a desenvolver um sistema jurídico nesse sentido.

O autor Alexandre de Moraes (1988, p. 21) pactua também da mesma opinião e dispõe que: “a origem dos direitos individuais do homem pode ser apontada no Egito antigo no terceiro milênio a.c., onde já eram previstos alguns mecanismos para proteção individual”. Cabe recordar que o terceiro milênio corresponde ao Império Antigo.

O historiador e jurista espanhol Félix Alonso Royano (1998, p. 62) vai além em suas exposições, e disserta que:

Así pues, nuestro derecho es, por ahora, el último escalón de una serie de hitos jurídicos que naciendo en Sumer y en Egipto, han ido conformando el mundo del derecho occidental, tal y como lo conocemos y aplicamos, con mutuas influencias, impregnando de particularismos, pero en el fondo emergiendo las instituciones egipcias a poco que nos preocupemos de inquirir [...].

Para este autor, o Direito ocidental é a última etapa de uma série de evoluções de marcos legais originários na Suméria e no Egito antigo, e discorre ainda que:

Hoy en día es ya científicamente incontestable la preponderante influencia egipcia sobre las culturas minoica, griega y romana. Desde los criticados trabajos científicos de Revillout, a principios de este siglo, hasta las últimas certezas de Martin, Iniesta y Diop, entre otros a los que me sumo, y el reconocimiento del Coloquio de la UNESCO, en El Cairo, voy a demostrar que, en el campo jurídico el Egipto faraónico influyó, a manera de osmosis, sobre la cultura occidental (ROYANO, 1998, p. 62).

Royano (1998) apoia sua defesa na existência de documentos que comprovam a sedimentação das leis egípcias em países que mantinham relações com o Egito, como Creta, Chipre, Grécia e Roma. Ressalva-se que a civilização egípcia durante milênios foi a maior potência do Mundo Antigo.

O jurista Paulo Servinkas em palestra proferida na cidade de Paraíba sobre “Meio Ambiente e Sustentabilidade” faz uma referência ecológica ao “Livro dos Mortos”. A passagem a que se refere o ilustre jurista é a parte do Tribunal de Osíris, que consta as 42 afirmações negativas. Abaixo o Capítulo 126, aludido pelo jurista, que fazia parte do testamento do morto: “Homenagem a ti grande Deus, Senhor da Verdade e da Justiça/não fiz mal algum (...)/não matei animais sagrados/não prejudiquei as lavouras (...)/não sujei a água/não usurpei a terra/não fiz um senhor maltratar o escravo(...)/não repeli a água em seu tempo/não cortei um dique (...)/sou puro, puro, puro!”

Antes de fazer a passagem para o outro lado da vida, o egípcio deveria provar, dentre outras coisas, que não havia cometido nenhum pecado ao meio ambiente. Aliás, destaca-se que, por exemplo, sujar a água e torturar um escravo compartilhava o mesmo grau de gravidade.

3.3 Europa, Austrália, Ásia, África e Américas

Embora tenhamos introduzido de maneira mais pertinente algumas exposições nos subitens, nos preocupamos em expor também de forma mais generalizada os caminhos percorridos por animais humanos e seus ancestrais animais, não-humanos. Destaca-se que a intenção é evidenciar da melhor maneira possível às mudanças ocorridas na trajetória histórica, com vistas a demonstrar o rumo tomado pela humanidade nos contornos delineados pelo antropocentrismo e especismo.

Os celtas, por exemplo, narram à história do Deus Odin na busca de obter o hidromel6, que no intuito de roubá-lo utiliza de seu dom de transformação, assumindo as formas de cobra, de águia e, por fim, de homem. Na Austrália, África e Américas, muitos mitos não se preocupam com contemporâneos, mas sim com os seres ancestrais, parcialmente humanos, parcialmente animais, da época da criação.

Como exemplo, tem-se a mitológica “história do universo” dos achuwamis da Califórnia registrada em livro, do qual dentre as 160 páginas que trazem o relato oral de um membro da etnia, apenas na penúltima os seres humanos entram na história. Todo o livro dedica-se a relatar os feitos de uma raça conhecida como o Primeiro Povo, e é somente depois de um dilúvio, no qual quase todo esse povo se transforma em animais, que surge a raça humana conforme conhecemos. Esta visão de mundo parece também ter sido dominante na Europa, como se pode observar pelas pinturas de cavernas da Idade do Gelo, que retratam animais, homens e homens-animais e parecem se relacionar a rituais xamanísticos de caça.

As pinturas do período Paleolítico, c.38.000 a 8.000 a.C. da Idade do Gelo mostram tipicamente cenas de caça com animais como bisões, cervos e cavalos. As figuras, como a do famoso “feiticeiro”, esculpida nas paredes de Trois-Frères, no sul da França, geralmente mostram características animais como chifres e caudas. Essas figuras, meio humanas e meio animais, podem representar xamãs da Idade do Gelo. 

Também, na Idade da Pedra, as figuras geralmente possuem características de animais ou pássaros além das humanas. Mas, é na Idade do Bronze, que um novo Deus masculino celeste cresce em importância e passa a dominar as mitologias emergentes dos gregos, romanos, escandinavos e celtas. Estão ainda espalhadas na arte em rocha no sul da África, cujos mitos vivos tratam dos feitos da Raça Primitiva de pessoas-animais.

Por vezes, a criação dos homens pelos deuses é a última de uma série de tentativas para se fazer uma raça, como se observa na mitologia clássica grega e maia, no qual os protótipos humanos rejeitados podem ser destruídos, exilados pelos seus criadores ou transformados em animais, como o guerreiro-águia da América Central que honra um membro da raça prévia de seres animais, tema comum a várias culturas. Aliás, ao se observar crenças e práticas mesoamericanas, percebe-se que a crença cultural no nagualismo, capacidade dos humanos de se transformarem em animais, revela a razão do uso de vestuários animais pelos guerreiros teotihuanacos.

 Na Ásia, um cisne divino serve como veículo a Brahma. Vishnu, o protetor e terceiro deus da trindade hindu, que segundo os mitos primitivos, participou da criação do mundo. Possui em seus três primeiros avatares a forma de animais (peixe, tartaruga e javali), utilizados em sua visita a Terra para proteger o mundo de uma série de desastres naturais. Também em seu sétimo avatar, o Deus Vishnu é acompanhado por um importante aliado na salvação de sua esposa do malvado gigante Ravana: Hanuman, o guerreiro-macaco.

Na China, o mito da deusa Nü Wa, criadora de uma raça inteira de homens e mulheres, é retrata como uma figura híbrida, com o corpo de serpente e a cabeça de uma jovem. Entretanto, as representações de animais na China também remontam um pretérito Neolítico, como relatos referentes ao primeiro imperador Shi Huangdi (221229 a.C.), imortalizado como dragão para ascender ao Céu. A partir dessa história, o dragão tornou-se o símbolo do poder imperial e passou a tremular na bandeira chinesa. Mas não somente o dragão é representado na China.

Tiamat é uma deusa das mitologias babilônica e sumérica. Na maioria das vezes, Tiamat é descrita como uma Serpente do Mar ou um Dragão. Também, entre os Astecas, Celtas, e até mesmo Gregos. Na Inglaterra, podemos observar no Hatfield Park, na cidade Hertfordshire, na qual há existência de lendas sobre dragões como deuses, uma intrigante rocha.

No Japão, as raposas são associadas à Inari, o Deus do arroz. Na mitologia japonesa são representadas em vários locais sagrados. Muitos mitos dos iroqueses e algonquinos do nordeste dos Estados Unidos possuem temas e padrões comuns de narrativa. Um dos mais famosos é o mito da Criação, que dá nome à América do Norte na linguagem dos nativos americanos: Ilha da Tartaruga, no qual, segundo descreve, foi determinado que o solo do fundo do oceano primitivo deveria ser trazido à tona e colocado sobre o casco firme e amplo da Tartaruga. E hoje todos vivem sobre o casco da Tartaruga, que ao se mover provoca terremotos (WILKINSON; PHILIP, s/d).

Entre os cherokee, o gavião criou a Terra. Os nativos americanos codificam sua cultura em expressões de orgulho familiar, que traçam a linhagem até os homens-animais do tempo da Criação. As esculturas desses ancestrais-animais em geral descrevem mitos, são os Totens. A identidade cultural do povo tikigaq do Alasca está codificada no mito do Corvo e da Baleia. Enquanto no Novo México, os índios taos encenam a dança da águia sagrada, considerada uma ligação entre o céu e a terra em muitas mitologias.

No sul da África, o antílope é o animal que condensa à maior carga de espiritualidade. Quando pintavam um antílope, em tempos em que a rocha representava lócus de ateliê, os xamãs buscavam aprisionar a essência do animal. Hoje tentam em rituais adquirir a força do antílope.

Na Oceania, precisamente na Austrália, os poderes xamânicos dos “homens sábios” aborígenes eram obtidos da serpente arco-íris, que possui o poder de dar a vida, mas pune os infratores da lei. Em Nova Quiné, há o mito dos homens-bagres, peixes que receberam a forma humana.

Os mitos dos Incas e seus temas são apenas um dos aspectos da mitologia sul-americana, que se estende dos waraos, no delta do Ornoco, à cultural extinta dos yamanas, no extremo sul Terra do Fogo. Cada tribo tem sua própria e complexa mitologia, em geral intimamente vinculada ao meio ambiente em que vivem. Mais uma vez, o foco de muitos mitos são os homens animais da época da Criação.

Entre os Gregos, Eurínome, fecundada pela serpente do vento, tomou a forma de uma pomba para botar o Ovo do Universo, origem de todo o mundo material.

Para os cristãos, os animais são criaturas menos privilegiadas, desprovidas de alma e inventadas antes pelo Criador. Apenas o homem foi criado à imagem e à semelhança de Deus, somente o homem tem fé, apenas ele irá subir aos céus, embora todos sejam criaturas de Deus.  Por fim, o animal é ainda o inseparável companheiro da humanidade: cães, gatos e, hoje, até iguanas, araras, furões, cobras e quatis cumprem essa função.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Deuses-animais geralmente se originam de religiões animistas. Essas crenças fazem parte de diversas sociedades tradicionais, mesmo que muito distantes uma das outras. Segundo elas, cada objeto e ser, de um seixo a um besouro, são um elo vital na cadeia da vida, e que uma coisa pode se transformar em outra. Todos os animais têm espírito, e deuses-animais abundam especialmente na África, Oceania e América. Muitos deuses mantêm um relacionamento especial com divindades animais e criaturas mágicas.

Vários deuses nórdicos e hindus possuíam poderosos corcéis que os carregavam pelo Cosmo, e um dos personagens mais populares da mitologia hindu é o macaco Hanuman, cujos poderes e sagacidade auxiliaram Rama e Sita no Ramayana.

Os animais mantêm um forte vínculo com muitas forças naturais. O antigo Deus egípcio do Rio Nilo, Sebek, tomava a forma de um crocodilo. Em muitos mitos dos nativos americanos, o relâmpago, o trovão, o fogo e a chuva são controlados por aves; o deus criador de algumas tribos norte-americanas é o corvo. Histórias sobre tais divindades explicam fenômenos imprevisíveis, e seus cultos ajudam a proteger o povo de perigos.

Na Grécia, vemos Ártemis, a deusa da caça. E também protetora divina de todas as crias animais. Por vezes, é a caça o que aproxima homens de deuses-animais e, então, a presa inspira profundo respeito; por outras, um animal é o vínculo entre um povo e seus ancestrais, compondo uma relação central em sua mitologia.

De pássaros e criaturas poderosas que vagam nas florestas até enormes serpentes que habitam o espaço subterrâneo, nas mitologias de todos os continentes há divindades animais, e também deuses que trazem sorte aos caçadores, demonstração do quanto às sociedades humanas dependem do mundo natural.Nos seus 4,5 bilhões de anos, a Terra assistiu a cinco extinções de animais em massa. A última ocorreu a 65 milhões de anos atrás, extinguindo os dinossauros, hoje lembrados ou imaginados em filmes, desenhos e brinquedos, como souvenirs da história. Estamos a caminho de uma sexta. E, desta vez, o Homo sapiens estará nela provavelmente como autor.

Assim como alertou Dr. Cornelius, ‘ele fará um deserto da casa dele e da sua’. Por isso, será que buscamos investir em Planetas habitáveis? Devido à está razão, enviamos como primeiro ser vivo ao espaço um animal, a cadela russa Laika? Alguém se recorda? Poucas horas depois, no dia 3 de novembro de 1957, Laika de três anos morreu vítima de estresse e do superaquecimento, para encontrar um novo lugar para o homem. Parafrasendo Débora Nascimento, repórter e colunista do site “Continente”: Haverá uma nave Noé?

REFERÊNCIAS

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Sobre a autora
Adriana Carolina Leão Carpi

Consultora Jurídica

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