No dia 23 de janeiro de 2020 entrou em vigor a Lei 13.964/2019 que acarretou a alteração de 16 artigos do Código de Processo Penal, além de outros dez dispositivos do Código Penal, sem contar as profundas inovações na legislação extravagante de natureza penal e processual penal. Conhecido como Pacote Anticrime, esse novo diploma legal que teve um período de vacatio legis de apenas trinta dias, ao arrepio de todas as orientações disciplinadas na Lei Complementar n.º 95/1998, que exige do legislador bom senso no momento de fixar o tempo entre a publicação e a vigência da lei, levando em conta a sua complexidade, bem como repercussão para a vida em sociedade, trouxe muito mais problemas para o ordenamento jurídico brasileiro do que propriamente mecanismos legais capazes de conter, ainda que minimamente, a criminalidade endêmica do nosso país.
Por ironia do destino, ao menos no que diz respeito ao Processo Penal, o aspecto mais importante da Lei 13.964/2019 está naquilo que não fez parte do seu texto original, mas sim por intermédio de uma inserção proposta por alguns parlamentares no bojo do processo legislativo. Trata-se da criação do instituto do Juiz das Garantias, que não tem por escopo combater a delinquência, mas sim o arbítrio institucionalizado por um Código de Processo Penal de 1941, idealizado e redigido por juristas nascidos na segunda metade do século XIX.
Há muitos anos parte da doutrina vinha anunciando que o caráter inquisitivo do inquérito policial estaria com os dias contados em razão da estrutura processual contemplada pelo Novo Código de Processo Penal, ainda em trâmite no Congresso Nacional, provavelmente carcomido pelo tempo, entre traças, poeira e mofo. A tese tinha como fundamento a criação de um juiz para atuar na investigação, assegurando o contraditório em vários momentos dessa fase tão delicada da persecução penal. Inesperadamente, tal realidade se consolidou com a edição da lei em comento, que antecipou diversas alterações, entre elas o mencionado juiz envolvido no procedimento investigatório. A esse magistrado caberia decidir sobre decretação de medidas assecuratórias, busca e apreensão domiciliar, interceptação das comunicações telefônicas, trancamento do inquérito policial via habeas corpus, entre outras atribuições. Sua atividade cessaria no momento em que recebesse a denúncia ou queixa. A partir da instauração do processo seria sucedido pelo juiz da instrução e julgamento.
Apesar de todo o avanço jurídico, o Supremo Tribunal Federal, em decisão de caráter liminar, proferida pelo Ministro Luiz Fux, suspendeu a eficácia dos arts. 3.º-A ao 3.º-F, ainda pendente de deliberação do Plenário. A medida foi tomada sob o fundamento de suposta violação às normas constitucionais de ordem orçamentária que afetam o Poder Judiciário. Não obstante a controvérsia no âmbito da Suprema Corte, seja qual for a sorte da ação de inconstitucionalidade em andamento, pode-se afirmar que, finalmente, o Congresso Nacional promoveu na legislação pátria um importantíssimo movimento no sentido de adequá-la ao Sistema Acusatório, contemplado pela atual Constituição da República, mediante o qual se assegura ao investigado maior amplitude de defesa na etapa administrativa de apuração do delito.
A propósito, se consolidado o posicionamento em favor do Juiz das Garantias, diversas normas constantes no Código de Processo Penal serão direta ou indiretamente afetadas, como no caso do art. 12 do Código de Processo Penal. Como sabido, o inquérito é um procedimento formal. E por essa razão, tudo que for investigado deverá ser reduzido a termo e cada folha juntada aos autos deverá ser rubricada pela autoridade policial (art. 9.º do CPP). O art. 12 do Código de Processo Penal sempre serviu de exemplo que reforça o caráter escrito do inquérito policial ao estabelecer que quando a denúncia e a queixa se basearem em inquérito policial, este acompanhará as respectivas exordiais acusatórias. Entretanto, com o advento Lei 13.964/2019, a partir do momento em que o art. 3.º-C, § 3.º, do Código de Processo Penal, passar a produzir seus devidos efeitos, tal dispositivo estará tacitamente revogado, em decorrência de os autos do inquérito não poderem mais acompanhar a denúncia ou queixa. A nova regra visa impedir que o juiz da instrução sofra algum tipo de influência daquilo que fora realizado no curso da investigação submetida ao controle do Juiz das Garantias.
Ainda com relação à fase administrativa da apuração do crime, de acordo com a regra contida no art. 10 do Código de Processo Penal, o inquérito deve ser remetido a juízo no prazo de 10 (dez) dias se o indiciado estiver preso e 30 (trinta) dias se estiver solto (art. 10 do CPP), mesmo que não concluído, caso em que a autoridade policial poderá solicitar a devolução dos autos para a realização de diligências imprescindíveis ao oferecimento da denúncia. Deferido o requerimento de baixa, os autos retornarão à polícia judiciária para que conclua as devidas diligências dentro do prazo que o juiz fixar, desde que o indiciado se encontre em liberdade.
Por sua vez, a Lei 13.964/2019, em seu art. 3.º-B, § 2º, trouxe a possibilidade de prorrogação do inquérito policial, por uma única vez, pelo prazo de 15 (quinze) dias, a ser determinada pelo Juiz das Garantias, mesmo em se tratando de investigado segregado ao cárcere. Ultrapassado o tempo da prorrogação sem que a investigação tenha sido concluída, a prisão tornar-se-á ilegal, devendo o relaxamento se sobrepor à constrição da liberdade como medida de contracautela. Mais uma vez vale lembrar que a nova regra encontra-se com a eficácia suspensa por decisão do Supremo Tribunal Federal, mantendo-se, por enquanto, a aplicação da norma expressa no art. 10 do Código de Processo Penal, excetuando-se as hipóteses previstas na legislação extravagante, como preceitua a Lei de Drogas (art. 51 da Lei 11.343/2006).
Em relação aos prazos de conclusão do inquérito policial não se pode perder de vista o que dispõe o art. 31 da Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019), contemporânea ao Pacote Anticrime, que passou a incriminar a conduta daquele que, dolosamente, “estender injustificadamente a investigação, procrastinando-a em prejuízo do investigado ou fiscalizado”, em consonância com o Princípio da Razoável Duração do Processo.
No que tange à conclusão do procedimento inquisitivo, a Lei 13.964/2019 revogou o art. 28 do Código de Processo Penal a fim de permitir o arquivamento do inquérito policial diretamente pelo representante do Ministério Público, sem que a medida se sujeitasse ao controle do Poder Judiciário. Caberia apenas ao promotor de justiça comunicar o ato à autoridade policial e aos interessados (indiciado e vítima), submetendo, em seguida, os motivos de sua decisão à apreciação de um órgão revisor dentro da própria instituição para um reexame necessário.
Apesar de o novo art. 28 representar uma antiga reivindicação do Ministério Público, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela suspensão da eficácia do dispositivo em tela. O fundamento do pedido de liminar suscitado na ADI 6298 MC/DF, deferido pelo Ministro Luiz Fux, baseia-se na suposta violação às normas constitucionais relativas à autonomia e gestão administrativa e financeira do Ministério Público.
Contudo, os mais controvertidos pontos da Lei 13.964/2019 não giram em torno do Juiz das Garantias ou do inquérito policial, mas sim no que diz respeito ao acordo de não persecução penal (Art. 28-A). É sabido que a atual Constituição da República consagrou o que chamamos de Justiça Penal Consensual ao dispor sobre os Juizados Especiais Criminais. Antevendo a atravancamento dos processos judiciais que ocorreria anos mais tarde, culminando na proporção de quase um processo para cada dois brasileiros, o legislador constituinte lançou as bases para a realização de acordos no âmbito criminal.
A Lei 9.099/1995 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais) regulamentou definitivamente a matéria, instituindo três medidas despenalizadoras com o objetivo de evitar o oferecimento da acusação e a eventual instauração do processo, ou, quando não possível, a sua suspensão mediante o preenchimento de certas condições. A composição civil e a transação penal cumpriram a primeira tarefa, permitindo, respectivamente, as negociações de reparação do dano e cumprimento imediato de pena não privativa de liberdade como forma de solucionar a questão de natureza penal, sem a necessidade de demandar em busca da pacificação social.
Diante do novo diploma legal, a doutrina passou a apregoar que o instituto da transação penal teria mitigado o Princípio da Obrigatoriedade, segundo o qual o Ministério Público deve demandar contra o suposto autor da infração penal nas situações em que estejam presentes os elementos mínimos para o oferecimento da denúncia. Com a Lei 9.099/1995 tal obrigação teria sido atenuada em virtude da possibilidade da negociação penal em tela, pois mesmo possuindo todas as condições para deflagrar a fase judicial da apuração do crime, o promotor de justiça não o faria quando ausentes as vedações elencadas no art. 76, § 2.º, I, II, III, da Lei 9.099/1995.
Por sua vez, a Lei 13.964/2019 ao criar o chamado acordo de não persecução penal acentuou ainda mais a mitigação ao Princípio da Obrigatoriedade. Mediante o negócio jurídico (processual) disciplinado no art. 28-A do Código de Processo, com redação determinada pela lei em comento, o Ministério Público poderá deixar de promover a ação penal, caso todos os requisitos subjetivos e objetivos para a sua celebração estejam presentes, como a existência de procedimento investigatório que não se coadune às hipóteses de arquivamento; a infração penal não tiver como elementar a violência ou a grave ameaça, e a pena mínima cominada for inferior a quatro anos; ter o investigado confessado formalmente, e voluntariamente, ser o autor da infração penal; a infração não ter sido cometida no âmbito da violência doméstica ou familiar contra a mulher; o investigado não ter sido beneficiado nos últimos cinco anos por transação penal ou suspensão condicional do processo etc.
Importante destacar que o texto da lei não trouxe proibição expressa no que se refere à possibilidade de proposta do acordo de não persecução penal no caso de prática de crimes hediondos ou a estes equiparados. Considerando que o ordenamento jurídico deve obedecer aos comandos da Constituição da República, que define a separação dos Poderes como Princípio Fundamental do Estado brasileiro, não cabe ao intérprete proibir aquilo que o legislador não o fez quando do exercício de sua função típica de legislar, caso contrário estaria realizando analogia in malam partem, vedada na esfera penal. Conclui-se, portanto que não havendo vedação prevista no texto legal, e o fato criminoso se enquadrar nas condições cumulativas elencadas no caput do artigo 28-A para a sua propositura, não haverá óbice para que o Membro do Ministério Público ofereça o acordo de não persecução penal ao investigado.
A aceitação da proposta pelo acusado implicará no compromisso do beneficiado de reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos ou proveito do crime, prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Código Penal, a entidade pública ou de interesse social, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.
O acordo de não persecução penal dependerá de homologação do juiz, que poderá recusá-lo caso entenda não terem sido respeitados os requisitos legais acima citados, ou quando considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições firmadas. Nessas hipóteses, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor.
Ao contrário do que foi previsto sobre o Juiz das Garantias, o acordo de não persecução penal está em pleno vigor, e os operadores do Direito vêm encontrando inúmeras dificuldades no enfrentamento de algumas questões fundamentais. No caso de descumprimento, por exemplo, quem terá competência para revogar o pacto homologado? E caso seja uma atribuição do promotor de justiça, este será o que atua na Vara de Execuções Penais ou aquele que formulou a proposta? O acordo de não persecução penal poderá ser oferecido apenas antes do oferecimento da denúncia ou em qualquer fase do processo penal?
Quanto ao instituto da prisão cautelar, a Lei 13.964/2019 se antecipou aos planos de alguns parlamentares que visavam alterar o Código de Processo Penal, aos moldes do Projeto de Lei n.º 554/2011, que procurava inserir ao art. 306 a audiência de custódia, instituto que vem sendo aplicado na prática desde 2016, como efeito de diversos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, entre eles a Convenção Interamericana de Direitos Humanos – Pacto de San Jose da Costa Rica, e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, segundo os quais o preso deve ser apresentado, sem demora, à presença do magistrado. Nesse sentido, a Lei 13.964/2019 cumpriu a exigência das normas supralegais ao introduzir a audiência de custódia ao texto do art. 310 do Código de Processo Penal: “Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente: I - relaxar a prisão ilegal; ou II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.”. Aguardamos, por enquanto, o que irá prevalecer no Supremo Tribunal Federal sobre o parágrafo quarto do mesmo artigo que também se encontra com a eficácia suspensa.
Se por um lado nos sentimos obrigados a homenagear a iniciativa do legislador no que diz respeito à nova redação dada ao art. 310 do Código de Processo Penal, em contrapartida lamentamentos a infeliz inserção da norma contida ao parágrafo segundo do mesmo dispositivo. Não obstante o consolidado entendimento dos Tribunais Superiores no sentido de que não se pode presumir a necessidade da prisão com base na gravidade abstrata do delito, ficou estabelecido no texto atual que “se o juiz verificar que o agente é reincidente ou integra organização criminosa armada ou milícia, ou que porta arma de fogo de uso restrito, deverá denegar a liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares.”. Mais uma vez pretende o legislador subtrair do magistrado a análise dos elementos concretos revelados nos autos do inquérito ou do processo para que se possa determinar a constrição da liberdade, antecipando assim uma conclusão a ser elaborada na mente de quem detém o poder jurisdicional. Aliás, com tal dispositivo o legislador não se limitou a afrontar a doutrina e a jurisprudência no que se refere à disciplina da prisão, mas também ao que ele próprio disciplinou no Código de Processo Penal, mais precisamente nos arts. 312, caput, e § 2.º; 313, § 3.º; 315, II. Um contrasenso inadmissível, e que deve ter a mesma sorte das nefastas normas outrora repudiadas pela Suprema Corte, por pretenderem instituir a famigerada prisão automática.
O art. 311 do Código de Processo Penal, também alcançado pela recente reforma, passou a dispor que “em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial”. Nota-se que o legislador positivou o entendimento já pacificado na doutrina e na jurisprudência sobre a inadmissibilidade do decreto prisional de ofício, tanto na fase do inquérito policial (hipótese que já havia sido rechaçada pela Lei 12.403/2011), quanto na fase do processo penal.
Se o juiz decretasse a prisão preventiva de ofício na fase da investigação policial, estaria antecipando uma análise que somente poderia ser feita pelo Ministério Público. Ao receber o inquérito policial, o promotor de Justiça irá avaliar as provas colhidas durante a investigação, a fim de averiguar a existência de justa causa para a propositura da ação penal. Considerando a exigência legal de um conjunto probatório significativo para a decretação da prisão preventiva, capaz de demonstrar a tendência de ocorrer condenação ao final do processo (fumus boni iuris), e que para a propositura da ação penal basta a existência de indícios da materialidade e autoria, a decretação, nesse momento, já estaria deixando entrever que o promotor teria provas mais do que suficientes para denunciar. Seria um contrassenso afirmar existir prova que justifique a constrição da liberdade, porém insuficiente para originar um processo. Em suma, se há prova para prender, então há mais do que o necessário para denunciar. O juiz, decretando a prisão preventiva de ofício na fase do inquérito, não daria outra opção ao Ministério Público a não ser promover a ação penal. Entretanto, a análise quanto à essa iniciativa não pertence ao judiciário, mas sim ao Ministério Público, na ação penal pública, em que o promotor forma livremente a opinio delict, ou ao ofendido, ou seu representante legal, na ação penal privada.
A prisão preventiva decretada por livre iniciativa do juiz na segunda fase da persecução penal também se mostrava ofensiva ao Sistema Acusatório, segundo o qual as funções de acusar e defender não podem ser entregues a um dos órgãos que compõem a relação processual. A adoção desse sistema pela Constituição da República visa garantir a imparcialidade do órgão julgador. A possibilidade de o magistrado decretar a prisão preventiva no curso do processo sem que houvesse a provocação dos interessados o colocaria em posição de suspeição, por representar uma incoerente medida de quem, na contramão da ordem constitucional, demonstraria algum interesse em se aliar à acusação.
A medida cautelar extrema da prisão preventiva continua não comportando prazo. Quando decretada pelo juiz, subsistirá enquanto os motivos que ocasionaram a sua deflagração perdurarem. A liberação do preso dependerá de revogação determinada pelo próprio juiz que a originou, ou pelo tribunal, mediante provocação ou de ofício. Nos dois casos, haverá a expedição de alvará de soltura.
Embora a Lei 13.964/2019 tenha preservado a regra acima sobre a possibilidade de se manter o acusado preso enquanto não desaparecerem os motivos que serviram de fundamento para a segregação cautelar, por outro lado acrescentou o parágrafo único ao art. 316 do Código de Processo Penal, a fim de impor ao juiz, ou ao Tribunal, o reexame da necessidade da custódia a cada 90 (noventa) dias: “Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.”.
Por se tratar de medida cautelar, para a decretação da prisão preventiva permanece intacta a necessidade de se conjugar os elementos que compõem o fumus boni iuris (fumus comissi delicti) - traduzidos como a possibilidade maior de condenação ao final do processo, uma vez constatadas as provas da existência do crime e indícios suficientes da autoria - com algum dos elementos que indique o periculum in mora (periculum libertatis), entendido como a imprescindibilidade de antecipação daquilo que tende a ocorrer ao final do processo, ou seja, a prisão. Logo, se periculum in mora deve ser interpretado como a necessidade da prisão, qualquer um dos demais elementos contidos no art. 312 do Código de Processo Penal estaria de pleno acordo com essa concepção, como a garantia da ordem pública, a garantia da ordem econômica, conveniência da instrução criminal e asseguração da aplicação da lei penal. O “perigo gerado pelo estado de liberdade”, incluído pela Lei 13.964/2019, destaca-se pela despicienda redundância, pois trata-se de uma expressão genérica representativa das circunstâncias anteriormente mencionadas.
A Lei 13.964/2019 inseriu ainda uma série de dispositivos sobre a prisão preventiva com o único intuito de trazer para o corpo da lei o entendimento já consolidado pelos Tribunais Superiores. A inovação legislativa alterou o art. 315, § 2.º, do Código de Processo Penal, estabelecendo que “não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I- limitar-se à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV- não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V - limitar-se a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. E, em complemento, a qualquer uma das hipóteses acima, aplica-se o recém-criado inciso V, do art. 564 do Código de Processo Penal, que considera nula qualquer decisão judicial carente de fundamentação.
No âmbito das provas, a Lei 13.964/2019 renovou a malfadada proposta com o fulcro de criar mais um caso de impedimento do juiz, além daqueles já previstos na legislação pátria, decorrente do reconhecimento de uma prova contida nos autos produzida por meios ilícitos (art. 157, § 5.º, do Código de Processo Penal). Dessa vez, não foi o veto presidencial que derrubou a pretensão do legislador, como ocorrera em relação à Lei 11.690/2008, mas sim a decisão proferida pelo Ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, suspendendo a eficácia do referido dispositivo pelos termos expostos abaixo: “O § 5º do art. 157 é também danoso ao princípio do juiz natural, por ser norma de competência que não fornece critérios claros e objetivos para sua aplicação. Como redigido, o preceito pode resultar na criação de situações em que a produção de prova eventualmente nula sirva como instrumento deletério de interferência na definição do juiz natural (CF, art. 5º, LIII), abrindo brecha para a escolha do magistrado que examinará o processo-crime, vulnerando-se, por via transversa, o postulado constitucional em questão.”.
Contudo, ao capítulo destinado ao exame de corpo de delito e outras perícias houve um acréscimo de mais um instituto em matéria processual: a cadeia de custódia. Disciplinada nos arts. 158-A ao 158-F do Código de Processo Penal é definida como o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte. Embora a novidade legislativa mereça aplausos por almejar maior segurança quanto à preservação da prova, reduzindo assim os riscos de sua contaminação em razão de questões de ordem meramente administrativas, entendemos que o tema deveria ter sido tratado por lei específica, engrossando o rol das leis extravagantes de natureza criminal.
No tocante aos procedimentos, ao contrário do ocorrido em 2008, quando a reforma ao Código de Processo Penal atingiu sobremaneira esse tema, dessa vez nenhuma alteração foi promovida, exceto quanto ao rito do Tribunal do Júri. De acordo com o novo texto atribuído ao art. 492, I, e, do Código de Processo Penal, foi inserido o abominável instituto da execução provisória da sentença condenatória, outrora rechaçado pelo Supremo Tribunal Federal em decisão plenária. Entendemos, por conseguinte, que a sorte do dispositivo em comento não poderá ser outra senão o reconhecimento de sua inconstitucionalidade.
Em contrapartida, feliz tratamento deu o legislador aos casos de decretação de perdimento de obras de arte ou de outros bens de valor cultural ou artísticos com a inserção do art. 124-A ao Código de Processo Penal. Não havendo vítima determinada, tais objetos poderão ser destinados a museus públicos. Torcemos, entretanto, para que não virem pedaços de carvão como efeito do total abandono direcionado ao patrimônio cultural brasileiro.
Muito oportuna também a inserção do art. 133-A ao dispor que o juiz poderá autorizar, constatado o interesse público, a utilização de bem sequestrado, apreendido ou sujeito a qualquer medida assecuratória pelos órgãos de segurança pública previstos no art. 144 da Constituição Federal, do sistema prisional, do sistema socioeducativo, da Força Nacional de Segurança Pública e do Instituto Geral de Perícia, para o desempenho de suas atividades. Há muito tempo a sociedade questionava a razão de o poder público não se utilizar dos bens sequestrados e apreendidos no combate à criminalidade.
Com o passar do tempo os institutos acima apresentados poderão ser analisados com mais profundidade, principalmente após testados na rotina dos Tribunais, e debatidos pelos operadores do Direito, que levarão à tona as experiências adquiridas entre erros e acertos no âmbito da prática forense. Que as arestas venham ser aparadas sem perder de vista que o Direito voltado para fins estranhos ao bem-estar do indivíduo não passa de um emaranhado de papel e tinta no qual os protagonistas continuarão sendo os fictícios Tício, Caio e Mévio dos enunciados das questões de prova.