Apontamentos sobre a Constituição social do Estado-Nação e seu papel nos processos migratórios

06/04/2020 às 04:33
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Neste artigo realizo uma abordagem do Estado-nação segundo autores clássicos e contemporâneos. O Estado-nação é um fenômeno recente e tem no Estado o aparato jurídico-legal que se torna relevante no controle de migrantes por meio da soberania.

INTRODUÇÃO

O conceito de Estado-nação aqui trabalhado será abordado levando em consideração sua conceituação e buscando compreendê-lo enquanto fenômeno social. Foi utilizado para tanto autores clássicos, como Renan ([1882] 2010) e Mauss ([1920] 2017), e contemporâneos da Ciência Política (BONAVIDES, 2010) e Antropologia Política (BALANDIER, 1969). Pretende-se então evidenciar o caráter extraordinário que a nação possuía para os autores clássicos, já que, até meados do século XIX e início do século XX, o Estado-nação ainda se firmava como nova entidade política surgida com o fim da Idade Média. Assim, a organização de uma comunidade política em um Estado-nação é um acontecimento relativamente recente. Ressalta-se que na contemporaneidade o Estado-nação é considerado um fenômeno comum, justificando então a breve incursão histórica sobre o conceito aqui discutido. As transformações da conceituação de nação, como salientado por Mauss, demonstram a rápida evolução dessa entidade política, evolução essa que chegou ao ponto de questionar sua centralidade na arena internacional com o advento da globalização e da trans-nacionalidade nos movimentos migratórios no final do século XX.

Um Estado-nação é composto por vários elementos como povo, território, poder central, soberania, todos esses elementos compondo uma entidade soberana que se tornou referência político-social de agrupamento e distinção humanas. Essas características implicam, entre outras coisas, na distinção entre quem pertence ao Estado-nação e quem não pertence, ou seja, o estrangeiro. Já que o migrante internacional é um sujeito que não pertence à nação de destino de sua viagem, levarei em consideração neste trabalho a constituição de uma nação e seus critérios de pertencimento privilegiando uma abordagem sociológica. Esta abordagem busca ressaltar que esse pertencimento não se materializa apenas numa entidade política – o Estado, mas numa comunidade social - a nação, que possui laços de solidariedade constituídos ao longo do tempo e formam um todo coeso com identidade própria, centralizado pelo Estado.

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O ESTADO NAÇÃO

Ernest Renan ([1882] 2010) já nos alertava que a nação não pode ser confundida com raça[1] ou com grupos etnográficos. Numa linguagem contemporânea, não existe um grupo homogêneo que deu origem a determinada nação; ao contrário, como será visto, vários povos estão na origem do Estado-nação.

Renan afirma que a nação é um advento da modernidade e um fenômeno novo; a antiguidade não conheceu essa forma de organização social. O Egito antigo, a China, eram massas de pessoas lideradas por um Filho do Sol, ou por um Filho do Céu. Não existiam cidadãos nesses lugares. A antiguidade clássica possuía repúblicas como Atenas e Esparta, mas eram simplesmente cidades com um território relativamente restringindo. Por sua vez, o Império Romano parecia bem mais com uma pátria, uma enorme associação e sinônimo de ordem, paz e civilização, mas, ainda assim, não se pode falar em uma nação pois, concretamente, “foram as invasões germânicas que introduziram no mundo o princípio que mais tarde serviria de base para a existência das nações” (RENAN, 2010, p. 23). Esse princípio diz respeito à existência de dinastias e a criação de aristocracias militares em uma longa faixa do velho Império do Ocidente.

Para o autor, uma das características chave da composição do recente Estado é a fusão das populações que o compõem. Assim, povos de origens distintas se uniram em um território comum e formaram uma unidade política maior englobando esses povos e atribuindo a eles uma nova identidade, a do novo Estado, o que caracteriza essa fusão. Isso ocorreu por dois fatores pertinente às invasões germânicas: primeiramente, os germanos aceitaram a religião católica e, em segundo lugar, de modo semelhante, eles abriram mão de sua língua. Isso tudo porque os invasores possuíam poucas mulheres em seus grupos e tiveram que se relacionar com mulheres latinas.

Cabe ressaltar também que existiram dinastias que tomaram o poder violentamente e, posteriormente, esse fato foi esquecido pela população. O esquecimento – incluindo, diria, o erro histórico – é um fator fundamental na criação de uma nação, razão pela qual o progresso nos estudos históricos sugere constituir um perigo para o princípio da nacionalidade. De fato, a investigação histórica põe à luz os atos de violência que estiveram na origem de todas as formações políticas, mesmo aquelas que tiveram consequências completamente benéficas. Por certo, a maioria das nações modernas foram estabelecidas por uma família de origem feudal, que havia contraído casamento com o solo e que em certo sentido era um núcleo de centralização (RENAN, 2010, p. 25)

Assim, existe um princípio na constituição das nações que faz com que o passado seja esquecido, um passado o qual não havia a união que se encontra hoje na maioria das nações. Renan também afirma que a nação não possui sua razão de ser na raça, ou na língua, no solo ou religião. Para o autor a nação é uma alma, um princípio espiritual que é constituído de duas coisas: um passado e um presente. O passado diz respeito a um rico legado de recordações, e o presente é o consentimento atual, o desejo de viver juntos, de perpetuar a herança que têm recebido. “Uma nação, por tanto, é uma solidariedade em grande escala, constituída pelo sentimento dos sacrifícios que se tem feito e aqueles que se está disposto a fazer” (RENAN, 2010, p. 36).

Atestando também, já na segunda metade do século XX, sua origem recente, Marcel Mauss (2017, p. 47) afirma sobre as nações que:

[...] não são as primeiras nem as mais naturais das sociedades, não são as últimas nem as mais ideais formas de vida em comum que a história e a humanidade atuais já nos tenham apresentado. São hoje as mais recentes e as mais aperfeiçoadas entre as que se conhecem, não são eternas nem no presente, nem no futuro.

Numa ênfase com maior teor político, Mauss afirma que o conceito de nação adquire uma forma bem mais precisa, mais clara e producente no ano de 1789, com a revolução francesa, em que “pela primeira vez na história, uma nação procura tomar consciência de si mesma, por meio de ritos, de uma festa, e manifestar-se perante o poder do Estado” (MAUSS, 2017, p. 59). Ainda escrevendo sobre as ocorrências políticas do século XVIII, Mauss afirma que:

A nação, tal como concebida pelos grandes revolucionários da América e da França, foi o ambiente ideal em que floresceu definitivamente o patriotismo. “República” e “patriota” compõem, desde a origem, termos relacionados. Os povos que foram os primeiros a definir direitos correram para as fronteiras a fim de defende-las e derrotaram os exércitos dos tiranos conjurados, segundo as expressões da época, ainda hoje verdadeiras. A fidelidade a um Rei, a lealdade a um Estado, o vago senso de independência nacional, ou melhor, o horror ao governo estrangeiro, estavam bem longe de ter a clareza da noção de pátria. Esta só se impôs com os heróis de Valmy. Por meio deles – à sua imagem – é que ela se propagou em todos os espíritos generosos da Europa. [...] O princípio da nacionalidade, cujo papel ainda não terminou, expressava simbolicamente essas reivindicações das nações por existência, existência completa, e, como em muitos casos, constituía uma trindade. Mais tarde, passou a ser apenas uma díade: a Lei, a Nação.

Já no século XIX, a ideia de nação, segundo Mauss, mudou de espírito. O princípio de soberania nacional caiu em desuso e passou a ser utilizado mais amplamente como mote da nova formação social a categoria Estado. A própria noção de Nação foi substituída pela noção de nacionalidade, de modo que a Primeira Guerra Mundial foi uma guerra de nacionalidades, entre “Estados de pura força” (MAUSS, 2017, p. 61).

Na época de Mauss o termo nação, portanto, ainda não estava efetivado no vocabulário da maioria dos povos, com exceção da França. Consequentemente esse termo não encontrara definição própria consensual no meio acadêmico do período. Mauss então elabora a sua própria definição:

Entendemos por nação uma sociedade material e moralmente integrada, com poder central estável, permanente, fronteiras definidas, relativa unidade moral, mental e cultural dos habitantes, os quais aderem conscientemente ao Estado e a suas leis. (MAUSS, 2017, p. 70).

Pode-se perceber que essa definição de Mauss, como já salientado, possui um caráter mais político do que a de Renan, considerando o poder central e as fronteiras, ou seja, implicitamente reconhecendo o papel do Estado e da soberania. Fazendo jus aos preceitos evolucionistas então em voga à época, Mauss afirma que nem todos os povos ainda chegaram ao “estágio” de nação. Haveria nas sociedades humanas “vivas” muitas diferenças de natureza e inúmeras delas não estariam no mesmo grau de evolução. “Considerá-las iguais constitui uma injustiça em relação àquelas em que a civilização e o senso do direito estão mais plenamente desenvolvidos” (MAUSS, 2017, p. 71).

Mauss destaca também como recente a forma nacional de vida econômica e, desta maneira, o desenvolvimento do direito público, que depende do estado econômico da sociedade e vice-versa. “[...] o processo que formou as nações era, a um só tempo, econômico, de um lado, moral e jurídico, de outro” (MAUSS, 2017, p. 76). Nos primeiros tempos o comércio era feito apenas entre indivíduos e aldeias, numa produção familiar; com o desenvolvimento das cidades, a produção se ampliou, mas sempre nos limites da demanda de pequenos grupos. “Por fim, vastos sistemas de trocas interurbanas e rurais e o início do comércio e da produção internacionais alteraram as necessidades e os recursos de povos que apresentavam volume e densidade cada vez maiores” (MAUSS, 2017, p. 77). Desse fato Mauss afirma as coincidências que muitas vezes ocorrem entre nacionalismo e protecionismo.

Curiosamente, para Mauss, o aumento considerável do número de nações não resultou em uma uniformização da civilização, mas, em grande medida, uma individuação das nações nas nacionalidades. Na Europa, desde a Idade Média até o século XVIII, nas universidades, a única língua corrente era o latim; a Igreja era a única depositária das artes e das ciências; somente os folclores bárbaros individualizavam os povos, enquanto que as elites viviam em um ambiente predominantemente cristão.

No entanto, é uma verdade evidente que as civilizações, em uma história tão longa e em nações tão vastas, se tornaram tão grandes, tão particulares e, ao mesmo tempo, tão humanas que podem, de um lado, ser mais autossuficientes – pois englobam todo o essencial do saber e da sabedoria prática humana – e, de outro, divergir muitíssimo mais do que a civilização grega divergiu da romana (MAUSS, 2017, p. 78).

Essa unidade que consiste hoje cada nação se expressa no espírito coletivo pela ideia de pátria, de um lado, e pela de cidadão, de outro, afirma Mauss. O termo pátria se refere ao total dos deveres que os cidadãos possuem perante a nação e seu território. Já a noção de cidadão simboliza a totalidade dos direitos civis e políticos que tem o membro dessa nação em correlação com os deveres que nela deve cumprir. A noção de cidadania é antiga, e vem desde os períodos que existiam cidades no período antigo, passando pelo Estado romano e culminando, no final da Idade Média, com os Estados europeus. Foram nestes últimos que os deveres do cidadão se ampliaram de uma polis para uma nação, “e que só existia nação onde o cidadão participava da administração do Estado por delegação parlamentar” (MAUSS, 2017, p. 79).

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Até aqui foi exposto o conceito de Estado-nação buscando ressaltar o desenvolvimento histórico dessa entidade social. A princípio, o Estado surge de acordo como desenvolvimento da nação, quando esta unifica sua população heterogênea em torno de uma entidade política comum – o cientista político brasileiro Azambuja (2008) define a nação como pessoa moral e Estado como pessoa jurídica. A partir de então, o Estado ganha força e predominância e se configura como o lócus privilegiado do exercício do poder encarnando em si a representação da nação. Essa última característica vem a ser hoje uma das principais fontes de estudo da Ciência Política contemporânea.

Paulo Bonavides (2010) é um dos autores no Brasil que em sua obra buscou sistematizar os principais conceitos e conteúdos do campo da Ciência Política e nos fornece definições basilares sobre o conceito de Estado. Bonavides reconhece o avanço da obra de Renan ao corroborar a ideia deste último sobre importância da tradição na constituição de uma nação bem como da existência de um “espírito nacional”. Afirma Bonavides:

Com a politização reclamada, o grupo nacional busca seu coroamento no princípio da autodeterminação, organizando-se sob a forma de um ordenamento estatal. E o Estado se converte assim na “organização jurídica da nação” ou, segundo Esmein, em sua “personificação jurídica” (2010, p. 92)

Essa “personificação jurídica” tem com como um de seus princípios legitimar o exercício do poder pelo Estado que, segundo Bonavides, é um de seus elementos constitutivos essenciais. O poder constitutivo do Estado: “representa sumariamente aquela energia básica que anima a existência de uma comunidade humana num determinado território, conservando-a unidade, coesa e solidária” (BONAVIDES, 2010, p. 115).

Com respeito ao poder do Estado, existem traços que lhe emprestam a fisionomia, que são: a imperatividade e a natureza integrativa do poder estatal, a capacidade de auto-organização, a unidade e indivisibilidade do poder, o princípio de legalidade e legitimidade e a soberania (BONAVIDES, 2010). Desses traços, o que mais importa para o presente estudo é a soberania, “que exprime o mais alto poder do Estado, a qualidade de poder supremo (suprema potestas)” (BONAVIDES, 2010, p. 119). Relata o autor que a soberania se divide em interna e externa. A soberania interna se remete ao poder que o Estado exerce sobre o território e a população, bem como a superioridade do poder político sobre os demais poderes sociais. A soberania externa “é a manifestação independente do poder do Estado perante outros Estados” (BONAVIDES, 2010. p. 119).

A abordagem do conceito de Estado em sua acepção jurídica fornece um instrumental analítico importante para os aspectos de legitimação e exercício do poder, mas essa abordagem não é a única. Nas palavras do antropólogo político Georges Balandier (1969, p. 117):

Diante das dificuldades resultantes do emprego do conceito de Estado em sentido amplo, viram-se incitados os juristas a restringir-lhe o uso e a definir o Estado como o sistema de normas jurídicas em vigor. Qualificam-no como fenômeno jurídico e sublinham que ele realizou, no mais alto grau, a institucionalização do poder. Essa interpretação é falha, pois reduz o fato estatal a seus aspectos “oficiais”, e não situa os problemas em seu verdadeiro nível, que é, em primeiro lugar, político.

Partindo do plano especificamente político, Balandier articula as possibilidades de delineamento das características de um Estado tradicional, que seriam: 1) controle do interior e exterior; 2) centralização política; e 3) organização de uma classe política dirigente. Ressalta ainda o autor que devido à falta de parâmetros para a definição de Estado, muitas vezes os pesquisadores têm se apoiado na emergência do Estado moderno.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A contribuição final trazida aqui de Balandier (1969) faz-se relevante por especificar no presente estudo os aspectos políticos em sua composição social, não deixando de lado a contribuição da acepção jurídico-moderna do Estado, como forme visto acima. No caso dos imigrantes, a soberania estatal é sempre presente, regulando os mecanismos de entrada e saída das nações bem como a legitimação para a permanência nelas. Contudo, as manifestações de ordem sociais, estritamente políticas, se manifestam e tornam-se relevantes na medida em que esses mesmos imigrantes somam a suas ações elementos de transnacionalidade, rompendo as fronteiras da modernidade, do Estado-nação, e estabelecendo novas configurações sociais no domínio das migrações internacionais, o que se desdobra num novo fenômeno pra estudo.

 

REFERÊNCIAS

 

AZAMBUJA, D. Introdução à ciência política. São Paulo: Globo, 2008.

 

BALANDIER, G. Antropologia Política. São Paulo: Difusão europeia do livro, 1969.

 

BONAVIDES, P. Ciência Política. São Paulo:  Malheiros Editores Ltda, 2010.

 

MAUSS, M. A nação. São Paulo: Três Estrelas, 2017.

 

RENAN, E. Qué es una nación? In: BHABHA, H. K. (org). Nación y narración. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2010.

 

 


[1] Naquela época o conceito de raça ainda estava em voga. Acreditava-se na diferença biológica entre grupos humanos, inclusive atribuindo diferenças de qualidade entre as distintas raças. Concebia-se que cada nação era a reunião de uma raça específica, o que Renan quer desconstruir em seu texto.

Sobre o autor
Leone de Araújo Rocha

Graduado em Ciências Sociais, Bacharelado e Licenciatura, pela Universidade Federal do Amapá (2010). Especialista em Ciência Política pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa e Extensão (2012). Mestrado Profissional em Estudos de Fronteira também pela Universidade Federal do Amapá (2020). Foi professor efetivo de Sociologia do Governo do Estado do Amapá (2013-2019). Atualmente é Antropólogo do INCRA-AP onde atua no serviço de regularização fundiária quilombola. Áreas de interesse: Antropologia do Direito, Estudos de Fronteira, Comunidades Quilombolas e Antropologia Econômica.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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