O direito coletivo não possui no ordenamento jurídico nacional uma codificação que discipline o seu processo, no entanto, o conjunto de leis constituem um verdadeiro processual jurídico que utilizam instrumentos de tutela coletiva como forma de promover a defesa dos interesses metaindividuais.
No ordenamento jurídico pátrio o legislador, preocupou-se com a tutela coletiva de modo que existem diversas leis que tratam da temática, o que é chamado pela doutrina de microssistema da tutela coletiva.
Logo, o principal preceito do princípio ora em comento é que sempre que o magistrado se deparar com uma lacuna na legislação que rege determinado processo coletivo ele deve buscar cobri-la dentro desse próprio microssistema, sendo a legislação do processo individual usada somente de forma residual.
Há, nestes casos, a perfeita aplicação da teoria do diálogo das fontes, desenvolvida pelo jurista Alemão Erick Jaime e trazida ao Brasil por Cláudia Lima Marques, que afasta a ideia de as leis serem aplicadas de forma isolada, defende o ordenamento jurídico como um todo. É nesse sentindo que, pode-se dizer que as diversas normas que tratam da tutela coletiva (o microssistema da tutela coletiva) devem ser interpretadas de forma una.
Teori Albino Zavascki indica a existência de uma denominada “revolução brasileira de processo coletivo”, tendo em vista que na década de 70 a Lei 6.513/77 trouxe modificações objetivando a viabilização da tutela de direitos difusos, porém, na década de 80, a partir do advento da Ação Civil Pública preencheu lacunas do sistema de processo civil em relação a tutela dos direitos ou interesses transindividuais. Maior disciplinamento trouxe a Constituição Federal de 1988:
A partir da Constituição de 1988 que consagrou a tutela de direitos com natureza transindividual, tais como o direito ao meio ambiente sadio (artigo 225), à manutenção do patrimônio cultural (artigo 216), à preservação da probidade administrativa (artigo 37, §4º) e a proteção ao consumidor (artigo 5º, XXXII), bem como a Ação Popular (artigo 5º, LXXIII), a qual passou a ter objeto explícito e rol significativo de direitos transindividuais, tais como moralidade administrativa, meio ambiente, patrimônio histórico e cultural (ZAVASCKI 1 ).
Entende Rodrigo Mazzei2 ser inegável a existência de um microssistema coletivo, pois a tuleta de massa, sem uma regulação codificada, é regulada por um grande número de diplomas interligados, com princípios comuns e formam um ‘microssistema” que permite a constante da legislação atrelada ao dirieto coletivo. Enfatiza o referido autor que o ‘microssistema coletivo’, tem sua formação marcada pela reunião intercomunicante de vários diplomas, diferenciando-se da maioria dos ‘microssistemas’ que, em regra, tem formação enraizada em apenas uma norma especial, recebendo razoável influência de normas gerais.
O PARADIGMA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
A Lei nº 8.078/90 incluiu na Lei nº 7.347/85 o artigo 21, segundo o qual “Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor”.
Por coerência, o artigo 90 do Código de Defesa do Consumidor também deixa claro que se aplicam às ações coletivas nele previstas as disposições da Lei da Ação Civil Pública, estabelecendo uma perfeita integração entre as duas legislações.
Montuari Ciocchetti de Souza manifesta-se acerca da amplitude alcançada pela Ação Civil Pública:
[...] ante a amplitude trazida pelo art. 83, tendo em vista a reciprocidade das normas processuais em análise e a relevância dos interesses por elas tutelados, a ação civil pública pode adotar qualquer rito procedimental, assim como conter qualquer tipo de pedido e de provimento jurisdicional – e não apenas no que pertine à defesa do consumidor[...]. 3
Tal lição é pautada na dicção do art. 83. do Código de Defesa do Consumidor, que enuncia: “Para a defesa dos direitos e interesses protegido por este Código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela”.
Enuncia o princípio em análise a possibilidade de utilização de todas as espécies de ações (rectius, tutelas) capazes de propiciar a adequada e efetiva proteção da tutela jurisdicional coletiva referente aos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, assegurados pela Lei de Ação Civil Pública. Dessa forma, toda e qualquer demanda e, toda e qualquer espécie de tutela, são admissíveis no processo coletivo.
Neste proceder, o legislador, com o fito de concretizar as tutelas coletivas, o fez, integrando a prefalada lei com o Código de Defesa do Consumidor, em franca aplicação da técnica processual que mais contribua para realizar o ideal constitucional de efetividade do processo, assim como, estes novos direitos, ressaltando que a própria coletividade tem interesse na pacificação dos conflitos.
A doutrina tem se mostrado tranquila no sentido que o núcleo essencial ou duro do microssistema coletivo é constituído pela Lei da Ação Civil Pública e pelo Código de Defesa do Consumidor. Outros doutrinadores enfatizam que se faz necessário uma visão mais ampla, pois apesar da maior relevância dos referidos diplomas legais, os demais diplomas legais também devem ter suas regras aplicadas no que for útil e pertinente.
A partir daí, a doutrina e a jurisprudência passaram a reconhecer existência de um sistema integrado de tutela dos interesses metaindividuais, ou seja, um “microssistema processual para as ações coletivas”, sendo aplicáveis entre si, no que for compatível, os regramentos das seguintes leis: Lei 4.717/1965 (Ação Popular); Lei 6.9398/1981 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente); Lei 7.347/1985 (Ação Civil Pública); Lei 7.853/1989 (Lei das Pessoas Portadoras de Deficiência); Lei 7.913/1989 (Lei dos Investidores dos Mercados de Valores Imobiliários); Lei 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor); Lei 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente); Lei 8.492/1992 (Lei de Improbidade Administrativa); Lei 12.016/2009 (Lei do Mandado de Segurança); a Lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) e até a novíssima Lei 12.846/2013 (Lei anticorrupção) de 01 de agosto de 2013, em vacatio legis de 180 dias, prevê expressamente em seu art. 21. a adoção do rito da Lei de Ação Civil Pública em processos judiciais.
Assim, pela interpenetração de suas regras (salvo disposição em sentido contrário), esse microssistema deve servir de parâmetro para toda e qualquer ação coletiva, podendo seus instrumentos processuais ser utilizados para a tutela dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.
Grande parte da doutrina entende que entre a parte processual do Código de Defesa do Consumidor e a Lei de Ação Civil Pública está estabelecido um diálogo com um núcleo essencial, havendo um envio e reenvio de informações, sendo denominadas de normas de reenvio. Sendo assim, tem se entendido que o um núcleo essencial ou gravitacional do microssistema processual coletivo são a Lei da Ação Civil Pública e Código de Defesa do Consumidor, apontando como base legal a combinação dos artigos 9025 do Código de Defesa do Consumidor e 2126 da Lei de Ação Civil Pública, sendo aplicáveis a todas as ações coletivas, secundariamente utilizando-se o Código de Processo Civil. Na realidade essas normas de reenvio constituem um verdadeiro sistema integrativo aberto, em um verdadeiro diálogo entre as normas de direito coletivo.
Por esta teoria entende-se que, somente em não havendo norma protetiva do direito coletivo no núcleo essencial e nas normas de reenvio, deve-se buscar aplicação do Código de Processo Civil.
A partir de uma análise mais específica do microssistema processual coletivo detectamos a existência de leis se são pautadas pelos mesmos princípios constitucionais, qual seja, a tutela do patrimônio público e da moralidade administrativa, estando intimamente relacionados à defesa dos mencionados princípios a Lei de Ação Popular, Lei de Ação Civil Pública e a Lei de Improbidade administrativa.
A tese aqui defendida é corroborada pela intangível doutrina de Emerson Garcia e Rogério Pacheco, senão vejamos:
A caracterização da tutela do patrimônio público como um direito difuso nos permite aplicar não só toda a sólida base teórica já produzida, no Brasil e fora dele, sobre o tema também, e sobretudo, os instrumentos legais já existentes em nosso ordenamento. Nessa linha, a par da aplicabilidade das normas previstas na Lei de Improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92), tem-se como possível a incidência da Lei de Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85), da Lei da Ação Popular (Lei nº 4.717/65) e do próprio CDC ( Lei nº 8.078/90), isto, evidentemente, sem contar com a subsidiária possibilidade de aplicação do CPC e do próprio CPP, este último principalmente no capítulo referente ao inquérito civil.4
É evidente, que se acreditarmos que as mencionadas legislações formam um verdadeiro microssistema de tutela do patrimônio, poderíamos concluir que todas as leis podem ser aplicadas de forma indistinta ante a peculiaridade do caso concreto.
DO ENTENDIMENTO DA SUPREMA CORTE FEDERAL SOBRE A POSSIBILIDADE DE AÇÃO POPULAR PARA TUTELAR DANOS PATRIMONIAIS QUE NÃO TENHAM CAUSADO PREJUÍZO AO ERÁRIO
Não obstante o sólido embasamento doutrinário acerca da integralidade do microssistema de proteção da tutela coletiva e de inúmeros casos de sua aplicação nos tribunais ainda há resistência de conferir à Ação Popular os meios das demais tutelas conferidas, por exemplo, pela Ação Civil Pública ou Mandado de Segurança Coletivo, para legitimar a proteção ao patrimônio público sem a comprovação de dano ao erário.
Tal entendimento restritivo já foi enfrentado por nada menos que a Suprmea Corte Federal em Repercussão Geral assim ementado:
“ Direito Constitucional e Processual Civil. Ação popular. Condições da ação. Ajuizamento para combater ato lesivo à moralidade administrativa. Possibilidade. Acórdão que manteve sentença que julgou extinto o processo, sem resolução do mérito, por entender que é condição da ação popular a demonstração de concomitante lesão ao patrimônio público material. Desnecessidade. Conteúdo do art. 5º, inciso LXXIII, da Constituição Federal. Reafirmação de jurisprudência. Repercussão geral reconhecida.
1. O entendimento sufragado no acórdão recorrido de que, para o cabimento de ação popular, é exigível a menção na exordial e a prova de prejuízo material aos cofres públicos, diverge do entendimento sufragado pelo Supremo Tribunal Federal.
2. A decisão objurgada ofende o art. 5º, inciso LXXIII, da Constituição Federal, que tem como objetos a serem defendidos pelo cidadão, separadamente, qualquer ato lesivo ao patrimônio material público ou de entidade de que o Estado participe, ao patrimônio moral, ao cultural e ao histórico.
3. Agravo e recurso extraordinário providos.
4. Repercussão geral reconhecida com reafirmação da jurisprudência.
Decisão: O Tribunal, por maioria, reputou constitucional a questão, vencido o Ministro Marco Aurélio. Não se manifestaram os Ministros Gilmar Mendes e Rosa Weber. O Tribunal, por maioria, reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada, vencido o Ministro Marco Aurélio. Não se manifestaram os Ministros Gilmar Mendes e Rosa Weber. No mérito, por maioria, reafirmou a jurisprudência dominante sobre a matéria, vencidos os Ministros Marco Aurélio e Teori Zavascki. Não se manifestaram os Ministros Gilmar Mendes e Rosa Weber. Ministro DIAS TOFFOLI - Relator”
REPERCUSSÃO GERAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO com AGRAVO 824.781 MATO GROSSO, RELATOR :MIN. DIAS TOFFOLI (destaquei em negrito)
O método interpretativo do diálogo das fontes ao invés de afastar a aplicação de uma determinada lei, procura aplicá-las de forma simultânea e coordenada, a partir de uma interpretação que mais efetive o mandamento constitucional. Portanto, verifica-se que o diálogo das fontes deve ser pautado em valores constitucionais, especialmente nos direitos fundamentais. Esta visão constitucional do sistema que permite a consolidação do método do diálogo das fontes no Direito Brasileiro, como bem esclarece Antonio Herman Benjamin:
O diálogo das fontes é um método de interpretação, de integração e de aplicação das normas, que contempla os principais desafios de assegurar a coerência e a efetividade do direito a partir do projeto constitucional e o sistema de valores que impõe. Além disso, consiste no método de coordenação e coerência sistemática das várias fontes do direito, assegurando a conformidade entre elas e a supremacia da Constituição e, mais ainda, dos seus valores e direitos fundamentais. 5
A AÇÃO POPULAR COMO FONTE DO MICROSSISTEMA
Vários diplomas processuais se utilizam de dispositivos da Lei de Ação Popular como forma integrativa como a aplicação do artigo 6º e parágrafos 1º, 2º e 3º para tratar da formação do litisconsórcio passivo. Já a Lei de Improbidade Administrativa – LIA, expressamente prevê a aplicação do parágrafo 3º do artigo 6º da Lei de Ação Popular.
Outrossim, o artigo 19 da Lei nº 4.717/65 (Lei de Ação Popular) tem servido de base para o regime de reexame necessário em favor da coletividade.
Dispositivo legal similar encontramos na Lei de Ação Civil Pública em favor de pessoas portadoras de necessidades especiais (art. 4º, §1º, da Lei nº 7.853/89), portanto, embora não constem hipóteses diferenciadas de duplo grau de jurisdição obrigatório nas Leis nºs 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) e 8.429/92 (Lei da Improbidade Administrativa), em razão do microssistema processual coletivo, o referido artigo vem sendo aplicado no âmbito da ação civil pública, embora os tribunais apontem como motivação a aplicação analógica do dispositivo, apesar de um evidente caso de utilização do método do diálogo das fontes.
PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DO CONHECIMENTO DE MÉRITO PARA A TUTELA COLETIVA NA AÇÃO POPULAR
Uma vez que se demonstrou que a integralidade e complementariedade das normas que compõe a proteção dos direitos coletivos em conformidade com o microssistema de diálogo das fontes, outro ponto relevante a ser considerado quando da propositura de ação popular é a aplicação do princípio da primazia do conhecimento de mérito para a tutela coletiva de modo a evitar julgamentos que findem a ação por questão meramente processuais, e privilegie, desde que não a oponha outra norma processual fundamental, o julgamento da matéria.
Apesar de expressamente previsto no artigo 4º do NCPC, Didier (2017)6 alerta que tal princípio já era previsto há muito tempo para o processo coletivo por meio dos artigos 103 do CDC, 16 da Lei 7.347/85 e artigo 18 da Lei 4.717/65.
A mesma exegese foi manifestada pelo eg. STJ no seguinte julgamento:
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. VÍCIO NA REPRESENTAÇÃO. SÚMULAS 5/STJ E 7/STJ. EXTINÇÃO DO FEITO. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA INDISPONIBILIDADE DA DEMANDA COLETIVA.
(...) 3. Somente a efetiva e fundamentada demonstração pelo Parquet de que a Ação Civil Pública é manifestamente improcedente ou temerária pode ensejar seu arquivamento, que deverá ainda ser ratificada pelo Conselho Superior do Ministério Público, nos termos do art. 9º da Lei n. 7.347/85.
(REsp 1372593 /SP Ministro Humb erto Martins, DJe 17/05/2013)
Destarte, apenas a efetiva demonstração de irregularidade no processo é pata a ensejar seu arquivamento, de modo que caso não logre êxito nesta demonstração, deve-se prosseguir com o curso processual até o seu julgamento de mérito.
Por fim, em respeito ao microssistema de diálogo das fontes para a tutela dos direitos coletivos é possível a aplicação da ação popular apto a a legitimar a defesa de direitos coletivos que são disciplinados em outras leis de modo a construir no caso concreto o melhor modelo de efetiva proteção a estes direitos constitucionais.
Notas
1 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.42.
2 MAZZEI, Rodrigo Reis. A ação popular e o microssistema da tutela coletiva, in Luiz Manoel Gomes Junior (Coord.). Ação Popular - Aspectos controvertidos e relevantes - 40 anos da Lei 4.717/65. São Paulo: RCS, 2006, p. 408-410.
3 SOUZA, Montauri Ciocchetti de Souza. Ação civil pública e inquérito civil. São Paulo:Saraiva, 2001, p.25.
4 GARCIA, Emerson;ALVES, Rogério Pacheco.Improbidade Administrativa, 6ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p.648.
5 BENJAMIN, Antonio Herman. Prefácio. In: MARQUES, Claudia Lima (Coord.).Diálogo das fontes: do conflito à coordenação de normas do direito brasileiro. SãoPaulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 6-7.
6 DIDIER, Fredie; ZANETI, Hermes. Curso de direito processual civil – processo coletivo.12. ed. São Paulo: Juspodivm, 2017.