Servidão voluntária:

A submissão à tirania em Étienne de La Boétie

07/04/2020 às 23:11

Resumo:


  • Étienne de La Boétie investiga por que as pessoas, mesmo sendo maioria, aceitam submeter-se a um tirano, abordando a servidão voluntária.

  • Ele elenca um paradoxo sobre como alguém pode renunciar à liberdade, discute a tipologia de tiranos e explora como o povo se identifica com o tirano.

  • La Boétie propõe a resistência pacífica como forma de conquistar a liberdade, antecipando conceitos de desobediência civil adotados posteriormente por Thoreau e movimentos de resistência do século XX.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Investigar as bases de sustentação do poder e a legitimidade do direito imposto são algumas das grandes questões perseguidas pela filosofia e ciência política. Nesse sentido, o presente trabalho se propõe a indagar o porquê da obediência de uma multidão a

I - CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Étienne de La Boétie nasceu na França em 1º de novembro de 1530. O tumultuado século XVI foi o auge do Renascimento, movimento de regaste da cultura clássica e de intensas discussões políticas e religiosas. É com O Príncipe (1532), de Maquiavel, que se passa a ter uma nítida separação entre Direito e Moral, Estado e Igreja, o que teria implicações na teoria de direito divino de obediência ao monarca, que mais tarde John Locke categoricamente fustigaria em seu Primeiro Tratado sobre o Governo Civil.

Filho de cultos magistrados, foi criado pelo tio, Estienne de La Boétie, que, fascinado por Direito e Letras, despertou-lhe desde logo o interesse pelo estudo da antiguidade greco-romana. Formou-se em Direito na Universidade de Orleãs, uma das mais famosas da França, cujo ensino era marcado pelo uso da filologia e do legado de Justiniano na interpretação da jurisprudência contra os dogmas escolásticos em voga.

Morreu prematuramente aos 32 anos. A publicação de sua mais divulgada obra, Discurso da servidão voluntária (também conhecida sob o título Contra Um), só se deu post-mortem, por seu amigo e ensaísta Michel de Montaigne, que a recebeu em testamento. Em 1580, cópias do livro passaram a circular clandestinamente e já eram muito populares, tendo inclusive tornado-se um texto militante, bastante usado durante as constantes guerras religiosas decorrentes da Reforma Protestante. O emprego da violência, no entanto, não foi defendido por La Boétie, que pregava o que Henry Thoreau concisamente definiria, quase três séculos depois, como desobediência civil, isto é, recusa pacífica de submeter-se à autoridade injusta.

 

II - O PARADOXO DA SERVIDÃO VOLUNTÁRIA

Se o que antes fazia o povo obedecer ao tirano era o temor de penas transcendentais, a abolição de tal entendimento seria suficiente para que a autoridade do soberano fosse contrariada? Acaba-se com a servidão divina para legitimar-se a que realmente existia: a de um homem sobre a multidão. “Como tantos homens, burgos, tantas cidades e tantas nações suportam às vezes um tirano só, que não tem mais poder que o que lhe dão, que só pode prejudicá-los enquanto quiserem suportá-lo”.[1]

O que La Boétie se propõe a analisar é exatamente como um grande número de pessoas pode se sujeitar às truculências e às crueldades “não de um exército, mas de um só”[2]. É natural sacrificar até mesmo a própria vida para salvar aqueles a quem se ama, mas fazer o mesmo a um tirano que apenas oprime e ilude seus súditos? Haveria alguma explicação para tamanha irracionalidade?

“Chamaremos isso de covardia?”[3], questiona o autor. Seria razoável, apesar de estranho, admitir-se que um único indivíduo ou pequeno grupo tenha medo de desafiar outro homem. Quando, todavia, trata-se não de dezenas, mas de milhares ou milhões de pessoas que se deixam tiranizar por um só, inertes e indiferentes a tudo, não podem sequer receber a qualificação de covardes, pois esta não teria razão de ser frente a disparidade explícita. Servidão talvez seja o termo mais adequado, como esclarece o próprio autor: “É o próprio povo que se escraviza e se suicida quando, podendo escolher entre ser submisso ou ser livre, renuncia à liberdade e aceita o jugo”.[4]

A servidão, no entanto, pressupõe a submissão coercitiva: não se é servo por desejo próprio, mas por imposição de outrem. A liberdade é natural e inerente a todo ser humano e até mesmo aos animais, que tentam se esquivar sempre que capturados. Contentar-se com o cativeiro é renunciar à própria vida, a um direito que lhe pertence desde o nascimento. Por que, então, alguns se submetem tão facilmente, enquanto outros dão a própria vida para não perder um bem que lhe é tão precioso e que ajuíza a própria essência da humanidade?

La Boétie cita[5] o memorável exemplo dos gregos, que se envolvendo em diversas batalhas contra o Império Persa, absolutamente superior em número de armas e soldados, conseguiram, ainda assim, derrotá-los e preservar a independência de sua pátria. Vê-se exatamente o contrário do que se expôs anteriormente: um número inferior de pessoas combate e consegue resistir a outro bem maior. Qual o segredo dos gregos para vencerem grandes confrontos militares, mesmo em total desvantagem bélica? A diferença é que eles, ao contrário dos súditos de Dario ou Xerxes, conheciam e viviam a liberdade baseado num sistema de participação democrática na política, não numa ditadura teocrática cujo poder supremo emanava de um só. Desde cedo eram educados para participar da vida pública na pólis, a desenvolver a oratória e a contra-argumentar. Tinham, portanto, valiosa motivação que lhes inspirava bravura, de modo que qualquer ameaça à sua liberdade fosse prontamente rechaçada com todas as forças. Lutar por algo que se conquistou a muito custo é completamente diverso de se lutar por algo que nunca se teve. Os persas foram instruídos para obedecer, arriscavam suas vidas em campo sem qualquer estímulo, mas tão somente por serem intimados e coagidos a isso – ou será que poderiam agir de outra forma? Nunca conheceram a liberdade: a servidão lhes era apresentada como natural.

Irônico constatar que entre os gregos também havia escravidão. Segundo Aristóteles, a própria natureza faria esta distinção: “Quem pode usar o seu espírito para prever é naturalmente um comandante e naturalmente um senhor, e quem pode usar o seu corpo para prover é comandado e naturalmente escravo”.[6] Ou seja: uns nasceriam para servir e outros para comandar. O escravo, por natureza (e não apenas por leis humanas), não pertenceria a si mesmo, e sua fisionomia seria proeminente exatamente para exercer atividades laboriosas, enquanto aos senhores, de postura ereta e razão elevada, caberia o exercício superior da cidadania.

Discordando veementemente de tal opinião, afirma La Boétie:

Se há algo claro e evidente, ao qual ninguém pode ficar cego, é que a natureza, ministra de Deus e governante dos homens, criou todos nós da mesma forma e na mesma forma, para nos mostrar que somos todos companheiros, ou melhor, todos irmãos. [7]

Nota-se que o autor já havia ponderado sobre garantia fundamental que seria arguida pela Revolução Francesa no século XVIII e que influenciou, sobremaneira, as atuais Constituições dos Estados democráticos. Igualdade universal, não apenas para os mais “aptos”, como queria Aristóteles. E o que isso significa na prática?

Se todos são irmãos, se nascem iguais para se ajudarem reciprocamente, não existem príncipes investidos de poder por uma divindade. E se não há governantes por natureza, a conseqüência lógica é de que tampouco há pessoas que nascem para servir. A liberdade é natural, “não só nascemos com ela, mas também com a paixão para defendê-la.”[8] Qual a primeira atitude de um pássaro se a gaiola que o encarcera for aberta? É certo que instintivamente voa para a liberdade. Se nem mesmo os animais se habituam a servir os homens (pois do contrário o pássaro não sairia da gaiola, ainda que estivesse aberta), seria absurdo supor que os habitantes de um Estado tirânico se acostumam a servir a outro homem que os priva de decidir sobre os rumos da própria vida.

Mas se ninguém em sã consciência renunciaria à própria liberdade, por que La Boétie cunhou o termo servidão voluntária, que é um paradoxo em si mesmo?

 

III - TRÊS ESPÉCIES DE TIRANOS

Logo no início da obra, La Boétie adverte que não é seu objetivo discutir se outras formas de República são melhores que a monarquia, questionando, entrementes, como esta poderia ocupar algum lugar entre as formas de governo da coisa pública, vez que “é difícil acreditar que haja algo público num governo no qual tudo depende de um só”. [9]

Locke define tirania como o abuso do poder daquele que lá chegou pelas vias legais (diferente da usurpação, em que há o exercício do poder a que outro tem direito). La Boétie, um século antes, assevera a existência de três tipos de governantes tiranos, levando em consideração a forma pela qual chegam ao poder: por eleição do povo; por força das armas; e por sucessão hereditária. Este já nasce rei e é formado para se portar como tal: vê o povo como servos que lhe pertencem por herança, um verdadeiro direito adquirido e pronto para usufruto imediato. Os que conquistam o poder através da violência (na visão de Locke seriam usurpadores, não tiranos), apreciam o povo como o animal a sua presa, pronta para ser abatida e esgotada de todas as maneiras, até que nada mais reste a ser subtraído.

Tem-se, por fim, o tirano eleito. Se o próprio povo resolveu entregar-lhe o Estado, não deve ter sido desmotivadamente. Seria plausível concluir, por conseguinte, que foi escolhido por ser o mais suportável dentre os candidatos ao mesmo posto. Não é o que geralmente acontece. Deslumbrando-se com a própria “grandeza”, passa a acreditar que tudo pode, pois o poder lhe pertence; e que sua família deva ser favorecida, a fim de que o poder se torne hereditário. Por esse motivo, superam os outros tiranos em todos os tipos de vícios, e mesmo em crueldade[10]. Ocorre, portanto, uma inversão dos fatos: a população vai esquecendo que um dia foi livre e que o déspota que lá está não é intocável, mas apenas um homem.

Há duas hipóteses nas quais os homens podem se deixar sujeitar: quando forçados ou enganados[11]. No primeiro caso, são coagidos violentamente a se submeter, como nas conquistas militares. O engano tem consequências mais drásticas, pois sobrevém quando um poder excessivo é dado a uma pessoa em certas circunstâncias. Exemplos não faltam na história antiga ou recente: em Roma, ditador era o título provisório conferido pelo Senado ao cônsul em exercício, atribuindo-lhe poderes absolutos para sanar graves ameaças à república, não sendo punível por qualquer ato que perpetrasse[12]; Hitler também foi alçado ao poder pelas mãos dos alemães, inconformados com o humilhante Tratado de Versalhes e a tempestuosa crise econômica que os assolava. O herói vai tornando-se tirano.

Não há, conforme exposto, divergências capitais entre os três tipos de tiranos apontados por La Boétie, pois “embora cheguem ao trono por meios diversos, sua maneira de reinar é quase sempre a mesma”.[13] Em outras palavras: exercem o poder em seu nome e para si mesmo.

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IV - HABITUALMENTE SERVOS

Aristóteles, contrariando o pensamento platônico, sustenta que a virtude é um hábito e, por isso, pode ser ensinada[14]. Nenhuma das várias formas de excelência moral se constitui no homem por natureza, pois do contrário não poderia ser alterada pelo hábito. E exemplifica: “a pedra, que por natureza se move para baixo, não pode ser habituada a mover-se para cima, ainda que alguém tente habituá-la jogando-a dez mil vezes para cima”[15]. A natureza nos dá apenas a capacidade de receber a virtude, mas seu aperfeiçoamento dá-se com o hábito. “Os homens se tornam construtores construindo, da mesma forma que tornamo-nos justo praticando atos justos”[16], arremata o Estagirita. Se assim não fosse, a educação em nada influenciaria na formação dos indivíduos, mas na realidade ocorre exatamente o oposto.

La Boétie, que comunga do posicionamento de Aristóteles, cita[17] uma controvertida história de Licurgo, o legendário legislador de Esparta, em que teria criado dois cães nascidos e amamentados pela mesma genitora. Posteriormente, um deles foi engordado na cozinha, enquanto o outro foi criado solto pelos campos. Querendo provar a importância do hábito na definição do comportamento humano, expôs os dois cães em praça pública e colocou entre eles um prato de sopa e uma lebre: um correu para a sopa e o outro para a lebre. Apesar de serem irmãos, receberam tratamentos diferentes, daí porque tomaram escolhas distintas.

Com esta breve passagem, La Boétie quis demonstrar quão o hábito também pode ser pernicioso. É o caso de um povo que, vendo-se subjugado, vai olvidando da liberdade que dantes usufruía, conformando-se de tal modo à servidão que, ao invés de tortura, mais parece um prêmio. De início, poder-se-ia argumentar, serve-se pela força. Mas as novas gerações aceitam sua situação sem relutância, repetindo voluntariamente o que fizeram seus antecessores. Chegam mesmo a se convencer de que a liberdade é lenda de sua família, algo que nunca lhe pertenceu e que por isso não tem motivos para buscar herança indevida. De tanto servir, acabam consentindo com a própria condição. Como lamentar o que nunca se teve?[18]

Outro brilhante exemplo fornecido por La Boétie é um diálogo entre dois espartanos e um persa, que tenta convencer os primeiros de que “o rei sabe honrar os que o servem”, inclusive com cargos políticos. Os gregos, contudo, recusam tal conselho, pois o incentivo à própria submissão só poderia ser fruto da ignorância do persa quanto a um bem de que nunca gozou. Ou como eles mesmos disseram: “Experimentaste o favor do rei, mas não sabes o gosto delicioso da liberdade”.O mínimo contato com ela o faria defendê-la “não só com a lança e o escudo, mas com unhas e dentes”.[19]

A primeira razão da servidão voluntária, portanto, é o hábito. No início até pode haver alguma espécie de relutância, mas o tempo é cúmplice do conformismo, e aos poucos vão se persuadindo da posse daqueles que os tiranizam.[20]

Há, no entanto, aqueles poucos mais bem nascidos que não se habituam à sujeição, nem esquecem os direitos que lhes pertencem por natureza. São os que cultivam o estudo e o saber e que jamais esqueceriam a liberdade, ainda que ela fosse plenamente perdida.

Não por acaso, os regimes totalitários restringem e manipulam a educação, pois sabem que ela é arma poderosa contra a tirania. Logo, qualquer pensamento que destoe do oficial é prontamente combatido, e o seu autor, condenado. Deixar um louco solitário propagar ideias contrárias ao regime despótico seria suicídio: daí porque enquadrá-lo no miserável título de “traidor”, executando-o publicamente. A indubitável pretensão é desestimular qualquer iniciativa análoga, preservando o status quo.

 

V - ARTIFÍCIOS DO PODER

Como visto, a razão pela qual os homens servem voluntariamente é porque nascem servos e são educados como tais. Mais a pergunta ainda não está completamente respondida. Há algo mais.

Os tiranos fazem o possível para demonstrar seu poder sobre a vida de cada um dos súditos, deixando-os cada vez mais fracos e covardes, com baixa autoestima e perca de vivacidade. Numa guerra, não encontram estímulo nem para defender a vida que sequer lhes pertencem. A desconfiança do governante é tamanha, que prefere entregar as armas a mercenários estrangeiros ao invés do próprio povo, que poderia por algum instante imaginar que possuía algum poder, por mais insignificante que fosse. O servo ideal, por conseguinte, é aquele desprovido de qualquer valor, embrutecido e ignorante, verdadeiro animal doméstico de um senhor cruel, que saqueia tudo o que encontra para satisfazer seus caprichos. E de que forma os adestra?

Os artifícios de alienação social não mudaram desde a Roma Antiga: a política do pão e circo continua a ter uma eficácia avassaladora. Teatros, jogos, festas, bebidas, duelos de gladiadores, animais ferozes e um centeio de trigo são iscas que costumam agradar o povo, que não tendo nada, contenta-se com qualquer coisa. E depois de saciado, ainda grita: “Viva o rei!”. Não percebe que apenas recuperou parte do que já era seu e que seria desnecessário recuperá-la se o tirano não tivesse desfalcado tudo o que antes lhe pertencia.

O homem ignorante, assegura La Boétie, “desconfia daquele que o ama e acredita naquele que o engana”[21]. É evidente que a população, sofrendo todas as mazelas sociais, vendo seu senhor oferecendo-lhe algumas migalhas, o reverenciará até em sonhos. “O rei é bondoso”, pensam, “vilões são os cobradores de impostos que sugam o pouco que ainda tenho”. Banquetes populares, não despropositadamente, ainda existem aos montes. Quem nada tem não receia nem por um segundo em trocar sua liberdade por um prato de comida. O vínculo de gratidão será eterno.

Há outros meios de iludir o povo: o discurso inflamado e algumas gotas de cínica benevolência constituem um conjunto que quase sempre dá frutos. Mais uma vez valendo-se da República romana, o título de tribuno da plebe era bastante cobiçado e considerado ofício sagrado, gozando de ampla aceitação no Estado[22]. O povo, acreditando ingenuamente que seus interesses estariam igualmente assegurados, seria mais facilmente convencido a acatar as deliberações políticas que continuavam lhes sendo desfavoráveis. Basta recordar que os tribunos que genuinamente se rebelaram contra o Senado e tentaram implantar reformas sociais foram perseguidos e assassinados, a exemplo dos irmãos Graco.

Os discursos que tentam se legitimar sobre os pilares do bem público e do interesse geral devem ser encarados com ainda mais cautela: trágicas campanhas já foram versadas ludibriosamente em seu nome, a exemplo do holocausto e de várias ditaduras.

Outra prática antiga que ainda fascina a muitos é criar uma imagem misteriosa e sobre-humana do tirano. Evitando aparecer abertamente, o público não conhecerá a real dimensão de seu poder e, por conseguinte, o temor é dilatado. No Egito Antigo, por exemplo, os faraós só apareciam mascarados, fomentando a própria onipotência sobre os servos, que lhes reverenciava como entidade divina e dotada de poderes mágicos. O manto da religião é de uso imprescindível a qualquer político que queira se manter no poder, pois além de transmitir fantasiosamente a ideia de bondade e justiça, contrariar o rei vira sinônimo de afronta aos deuses. Submetem o povo não só à obediência e à servidão, mas ainda à sua devoção.[23]

 

VI - PEQUENOS TIRANOS

Malgrado o poder do Estado esteja nas mãos do tirano, este certamente não governa sozinho. Cria uma rede de ligações tal qual ocorria na Idade Média entre senhores e vassalos, de modo que do início ao fim todos estão, diretamente ou não, subordinados a ele. La Boétie ironiza: “Com os ganhos e favores que se recebem dos tiranos, chega-se ao ponto em que são tão numerosos aqueles para os quais a tirania parece proveitosa quanto aqueles para quem a liberdade seria agradável.”[24]

O gosto da servidão é tão doce assim? O que faz um homem renunciar à própria liberdade para obedecer cegamente um déspota cruel e mal intencionado? Uma corrente de pessoas o apóia não porque o ama ou admira, mas para participar da “divisão dos lucros”, tornando-se “pequenos tiranos sob o grande tirano”[25]. Essa é a explicação que procurávamos: a comunidade se reconhece no tirano e no seu comando[26] e, fascinada, também almeja exercer uma parcela de poder em nome do governante: surge aí a figura do tirano do tirano, que tenta reproduzir em seu microcosmo o mesmo estado de insegurança vivido por ele, iludido com a possibilidade de realmente deter o poder e fazer o que bem entenda sem precisa obedecer qualquer limite legal.

Mas será que a opressão só existe para quem está fora do círculo do poder? A resposta só poderia ser negativa, pois o tirano “vê os que o cercam como pessoas que trapaceiam e mendigam seus favores”[27]. A paranoia vai se implantando em sua mente de tal maneira que vai ganhando grandes proporções em tempos de crise, passando a suspeitar de todos e a formular perigos inexistentes. Seus bajuladores, os mais diretamente ligados a ele, são os primeiros a padecer de seu mal: toda a riqueza e benesses que haviam conseguido com sua falsa lealdada ao rei são novamente despojadas, pois o que imaginavam serem seus apenas o era enquanto conveniente a quem deu. Acabam sendo esmagados pela mesma força que outrora defendiam com tanto ardor e percebem, tardiamente, o preço a ser pago pela renúncia voluntária da liberdade. Mas se conseguirem escapar de punição letal e outro assumir o trono, tornam a esquecer tudo porque passaram e a provar novas doses do amargo gosto da servidão.

 

VII - A CONQUISTA DA LIBERDADE

Como se libertar de um governo tirânico e retomar a liberdade natural? Várias foram as teorias propostas no decorrer da história. Seus maiores formuladores encontram-se, sobretudo, no chamado “período iluminista” do século XVIII, responsáveis por severas críticas ao absolutismo real e justificação divina do poder.

Desde a antiguidade houve a preocupação com as questões relacionadas à justiça, a exemplo das tragédias gregas. A peça Antígona, de Sófocles, ilustra bem isso: proibida, sob pena de morte, de sepultar o irmão que havia morrido em batalha travada pelo poder do reino e cujo corpo havia sido abandonado aos abutres, Antígona desacata a ordem do monarca, alegando que a mesma não poderia ser superior ao direito natural, que exigia que todo homem pudesse descansar em paz depois da morte.[28] Percebe que a autoridade do rei não é inatacável se for contrária ao que acredita ser o correto e, por isso, o desafia, rejeitando a condição de súdita.

Foi John Locke, contudo, quem modernamente elaborou a teoria dos direitos de propriedade na obra Segundo Tratado do Governo Civil, que corresponderiam à vida, liberdade e bens. Estes seriam usufruídos no estado de natureza, mas com o advento do dinheiro e da desordem dele surgido seria necessário estabelecer a sociedade civil para que fossem plenamente garantidos. Ao contrário do que declarava Thomas Hobbes, para Locke o homem não renunciaria à sua liberdade e a doaria a um Estado absolutista para evitar a guerra civil: sua função seria, em verdade, resguardar aqueles direitos fundamentais, inerentes a todo ser humano. O governante não poderia deles dispor como bem quisesse, e caso fosse incapaz de assegurá-los, o povo teria o direito à resistência, ou seja, poderia destituí-lo legitimamente do poder. Deveria obedecer fielmente aos limites do contrato acordado com a sociedade, pois “onde termina a lei, começa a tirania”[29]. O rebelde, destarte, não seria o povo, mas o próprio governante que não se submetesse à lei, provocando conflitos para os quais fora incumbido de solucionar.

Mas La Boétie tinha posicionamento um pouco diverso. Ele teria concordado com Locke quanto à existência de direitos naturais, mas teria discordado da forma como defendê-los, e para isso utiliza-se de uma metáfora:

 

O fogo de uma pequena faísca cresce e vai aumentando sempre e, quanto mais lenha encontra, mais está disposto a queimar. Não é preciso jogar água para apagá-lo, basta não colocar mais lenha, e ele, não tendo mais o que consumir, acaba se extinguindo por si mesmo.[30]

 

Não será necessário recorrer à violência para derrubar o tirano: “ele se destrói sozinho, se o país não consentir com sua servidão”[31]. Não seria preciso tirar-lhe algo: bastaria não dar-lhe nada, e assim iria enfraquecendo e definhando como o fogo sem lenha para queimar. É o próprio povo que se deixa maltratar, pois se resolvessem parar de servir seriam livres. La Boétie antecipa uma tendência que seria levantada tempos depois pelo americano Henry David Thoreau no século XIX: a desobediência civil.

Os Estados Unidos, no afã de expandir seu território, travava guerra contra o México. Para sustentá-la, cobrava de seus cidadãos um imposto específico. Thoreau, que não concordava com tal empreitada, entendeu que de nada adiantariam palavras soltas: teria que tomar uma atitude concreta que evidenciasse sua discordância. Resolveu, então, sonegar o tal imposto, pois raciocinava que, não dando o dinheiro, o governo não teria como manter a guerra. Foi preso. E se não somente uma, mas milhões de pessoas decidissem fazer o mesmo? Haveria prisão suficiente todos? A resistência pacífica consiste, pois, na desobediência de atos considerados injustos como meio de derrubá-los.

Nas democracias atuais existem mecanismos semelhantes e até mais acessíveis para boicotar um governante inglório: o voto. Inacreditavelmente, muitos ainda são indiferentes e preferem continuar servos da própria ignorância, escolhendo não por consciência, mas por mera e passageira conveniência. A implicação disso é a dilapidação da coisa pública, tratada com absoluto descaso e empregada para atender não ao bem coletivo, mas aos interesses pessoais e familiares de cada um. O senhor continua a domar seus servos. E o pior de tudo: com o consentimento deles!

 

VIII - CONCLUSÃO

O jurista e filósofo francês Étienne de La Boétie propõe-se a investigar, na obra Discurso da servidão voluntária, o motivo pelo qual o povo, mesmo sendo maioria, aceita submeter-se a um tirano.

Foi inicialmente elencado o paradoxo trazido pela expressão servidão voluntária, porque sendo a liberdade um direito natural de todos os homens, é difícil entender como alguém pode ter a intenção de renunciar à própria liberdade para ficar sob o jugo de outrem. Conclui-se, no entanto, que o hábito exerce incisiva influência sobre a formação dos indivíduos e, por conseguinte, sobre suas escolhas. Assim, quem foi criado para servir e jamais desfrutou da liberdade, ignora sua importância e até o próprio direito que tem sobre ela.

O autor apresenta ainda uma tipologia de tiranos tomando por critério a forma pela qual ascendem ao poder: se pela força militar, se por sucessão hereditária ou por eleição do povo. Os três abusam excessivamente do poder, mas contrariando o bom senso, o último pode ser tornar o mais viciado pelo fascínio que o poder lhe exerce, considerando-se, então, o seu legítimo titular e pronto para mantê-lo a despeito de todos.

O povo até pode ser forçado ou iludido a servir, mas em diversas circunstâncias o faz voluntariamente: identificando-se com a grandeza do tirano, também ambiciona ser um “pequeno tirano” em sua comunidade. O rei finge honrar quem lhe é leal, e os que são honrados fingem que são leais ao rei. Predomina um ambiente de intensa desconfiança.

Constata, por fim, que para se libertar da servidão não é necessário armar-se contra o tirano: basta não lhe dar nada nem lhe obedecer que ele se destruirá sozinho.

Por suas ideias, La Boétie é considerado o precursor do pensamento anarquista bem como dos movimentos de desobediência civil que ao longo do século XX conseguiram derrubar pacificamente diversas ditaduras e regimes segregatórios, como os que existiam na Índia e África do Sul.

 

REFERÊNCIAS

 

ARISTÓTELES. Político. São Paulo: Martin Claret, 2008.

CHÂTELET, François; DUHAMEL, Olivier; PISIER-KOUCHNER, Evelyne. História das ideias políticas. São Paulo: Jorge Zahar, 2000.

CRETELLA JR, José. Direito Romano Moderno. São Paulo: Forense, 1998.

HOBBES, Thomas. O Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2009.

LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Martin Claret, 2009.

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o Governo Civil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

MARCONDES, Danilo. Textos básicos de filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2009.

SÓFOCLES. Édipo Rei e Antígona. São Paulo: Martin Claret, 2008.

THOREAU, Henry David. A Desobediência Civil e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2005.


[1] LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Martin Claret, 2009. p. 30.

[2] Ibidem, p. 31.

[3] Ibidem, p. 32.

[4] Ibidem, p. 34.

[5] Ibidem, p. 33.

[6] ARISTÓTELES. Político. São Paulo: Martin Claret, 2008. p. 15.

[7] LA BOÉTIE, ob. cit., p. 38. 

[8] Ibidem, p. 39.

[9] Ibidem, p. 30.

[10] Ibidem, p. 41.

[11] Ibidem, p. 41.

[12] CRETELLA JR, José. Direito Romano Moderno. São Paulo: Forense, 1998. p. 19.

[13] LA BOÉTIE, ob. cit., p. 41.

[14] ARISTÓTELES apud MARCONDES, Danilo. Textos básicos de filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p. 52.

[15] Ibidem, p. 52.

[16] Ibidem, p. 52.

[17] LA BOÉTIE, ob. cit., p. 44.

[18] Ibidem, p. 48.

[19] Ibidem, p. 46.

[20] Ibidem, p. 48.

[21] Ibidem, p. 54.

[22] Ibidem, p. 56.

[23] Ibidem, p. 61.

[24] Ibidem, p. 62.

[25] Ibidem, p. 63.

[26] CHÂTELET, François; DUHAMEL, Olivier; PISIER-KOUCHNER, Evelyne. História das ideias políticas. São Paulo: Jorge Zahar, 2000. p. 385.

[27] LA BOÉTIE, ob. cit., p. 64.

[28] SÓFOCLES. Édipo Rei e Antígona. São Paulo: Martin Claret, 2008. passim.

[29] LOCKE, John. Segundo tratado sobre o Governo Civil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. p. 207.

[30] LA BOÉTIE, ob. cit., p. 35.

[31] Ibidem, p. 34.

Sobre o autor
Bruno Cortez

Doutorando e Mestre em Direito Penal pela Universidade Federal do Paraná em Curitiba. Advogado e professor universitário.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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O autor é Doutorando e Mestre em Direito Penal pela Universidade Federal do Paraná em Curitiba.

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