Damásio E. de Jesus: Honra e Glória do Direito Penal

08/04/2020 às 18:00
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1.     Personagem singular

Ele, que discorria “ex professo” do princípio da proporcionalidade da pena([1]) — que deve corresponder sempre ao grau da culpa ou da falta cometida —, esqueceu-lhe aferir por justa craveira a pena dos que perdem os objetos de sua afeição: preferiu que outros o fizessem. Foi debalde, porém, que a dor de certas perdas não raro excede toda medida.

Não cabe realmente no coração humano (porque infinita) a mágoa que acompanha o desaparecimento de individualidades privilegiadas como o benemérito Professor Damásio Evangelista de Jesus, arrebatado pela morte no dia 13 de fevereiro deste ano.

Até mesmo os que aprenderam a resignar-se ao império da lei que fixou o termo a todas as coisas — “pois também as pedras morrem”, como asseverou um alto espírito([2]) — acabrunharam-se com a interrupção do esplêndido curso da vida desse varão egrégio, no qual se viam reunidas, no mais elevado grau de primor, qualidades que apenas se encontram distribuídas entre muitos.

Os que o conheceram e trataram — e esses se contam por dezenas de milhares — podem atestar que não há encarecimento retórico nem tropo de linguagem no juízo de ter sido Damásio de Jesus, sem contradição, uma das figuras mais úteis, estimadas e fascinantes de nossa idade.

A razão do mui particular apreço e reverência que lhe sagrava o comum das pessoas ilustradas (máxime as atuantes nas províncias do Direito) procedia da notória fama de sua dedicação, contínua e proficiente, ao magistério das disciplinas jurídicas.

Ao mesmo tempo que se desempenhava, com exemplar exação, de árduas e relevantes funções no Ministério Público do Estado de São Paulo, dava lições de Direito a classes universitárias. Com provada competência e assiduidade cumpria à risca as praxes da cátedra e proferia aulas com seguro critério e esmero; granjeou bem cedo, por isso, entre alunos e professores, grande prestígio e reputação. Ainda: nas preleções patenteava, sem quebra, a excelência de sua didática: expunha com clareza e vivacidade as matérias do programa oficial, que, muito de estudo, para logo aplicava a casos concretos, numa como antecipação da liça incruenta, expressão com que se referia à futura agenda dos advogados, promotores de justiça e juízes de direito.

Pelo interesse que a novidade excitava, a classe inteira ficava-lhe suspensa dos lábios!

Não se restringia, porém, seu magistério a transmitir doutrina segundo a mais apurada matriz da ciência jurídica; declarava as dúvidas e infundia torrentes de conhecimentos aos que se aprestavam para o exercício da profissão (o que lhe conferia já legítima credencial de professor benemérito); inculcava, por fim, no espírito dos alunos o termo de proceder que deviam guardar, à luz da Ética.

À maneira dos rudimentos da boa educação (de ordinário ministrados com o leite materno), recitava aos moços, no limiar da vida acadêmica, o pregão duas vezes milenar de Ulpiano, jurisconsulto romano de muito nome: Os princípios fundamentais do Direito são: Viver honestamente; não lesar a ninguém; dar a cada um o que é seu([3]).

Estes, em síntese, os traços mais conspícuos das nunca assaz louvadas preleções que, na regência da cadeira de Direito Penal, fazia o provecto mestre Damásio E. de Jesus!


II.     Artífice das letras jurídicas

No benéfico intuito de obviar às dificuldades e percalços que soem influir no aproveitamento letivo, o Prof. Damásio diligenciou por suprir suas aulas com textos adequados às matérias do currículo. Por esta forma, tirou a público o prestigioso repertório didático em quatro volumes: Direito Penal. Sucessivamente, atendendo à extraordinária aceitação da obra e aos abundantes frutos que produzia, deliberou entre si enviar ao prelo os que seriam os mais laureados compêndios de doutrina e jurisprudência em pontos de Direito Penal e Processo Penal: Código Penal Anotado e Código de Processo Penal Anotado.

  

 

 Assim pelo rigor do senso crítico e acurada exegese dos textos legais como pela sistemática e judiciosa disposição dos temas versados e feliz apresentação gráfica, esses dois livros bastaram a exaltar aos cornos da lua a glória literária de seu autor. 

Em verdade, apenas expostos nas livrarias, despertaram geral atenção e interesse da classe jurídica do País, que de pronto os adquiriu e transformou no principal vade-mécum dos que militam na área do Direito Penal.

Nenhum bacharel especializado na “Ciência de Carrara” furtou-se a dar-lhes guarida pronta e cortês. Advogados criminalistas, promotores de justiça e magistrados tinham-nos sempre à mão (na mesa de trabalho ou na estante de obras seletas). Para dar força e peso a seus arrazoados forenses, ou para acrescentar o vigor da fundamentação de suas decisões, era aos “Códigos Anotados” do Prof. Damásio que se habituaram a recorrer.

E não havia que opor a esta sensata e natural prática. À uma, porque sempre foi de louvar o dito daquele discreto: “Duvido muito de quem se não abordoa a autoridades (…)”([4]); à outra, porque, no caso de necessitarmos de boa lição, importa muito que a tomemos a quem a deu mais clara e completa.

De mim, entre honrado e agradecido, direi que não caem sob o algarismo as vezes em que me valeram esses dois edificantes compêndios. Advogado, eram-me a primeira fonte de consulta; juiz de 2º grau, constituíam meu oráculo e subsídio na aplicação do bom direito à espécie em causa. E isto por mui atendível razão: a despeito da robusta bibliografia com que eminentes penalistas opulentaram a república das letras([5]), esses dois livros passavam pelos mais fáceis de compulsar, além de, sem salvas nem rodeios, encaminhar o leitor para a solução do ponto controverso. Por fim — circunstância notável —, eram suas edições, com desusado esmero, revistas e atualizadas anualmente.

Eis por que (e cuido não incorrer em engano se alego interpretar o sentimento comum dos que frequentam a barra da Justiça Criminal), fomos alcançados em altíssima dívida para com o Prof. Damásio E. de Jesus, irresgatável como todas as contraídas com um benfeitor, já que de gratidão.


III.    Vocação para o magistério superior e para as artes

Sem embargo de suas atividades de professor universitário, membro efetivo do Ministério Público e escritor de pulso, Damásio achou ainda força e condições para realizar ambicioso projeto, que o consagraria como o precursor das escolas preparatórias às carreiras jurídicas. Fundou e dirigiu, com inspiração de educador exímio, o Complexo Jurídico Damásio de Jesus, glorioso celeiro de saber especializado, onde jovens encontravam estímulo e pecúlios intelectuais que os habilitassem a ingressar no Ministério Público e na Magistratura.

Mestre Damásio e o abalizado corpo docente de seu instituto deitaram em solo fértil sementes de verdadeira e sã doutrina, que logo medraram e, por fortuna, produziram os frutos que se esperam da boa árvore (na espécie, a nova geração de servidores públicos, “magna pars” da cota de sinergia orientada para o aprimoramento dos quadros da Justiça).

Incontáveis, com efeito, são hoje os que servem lugares de Magistratura, dignificam as hostes do Ministério Público e da Advocacia e podem exibir com orgulho, à guisa de credenciais de mérito, as insígnias do Complexo Jurídico Damásio de Jesus.

A auréola de celebridade começava, destarte, a cingir a fronte do Mestre, pois transpusera a meta que muitas organizações predestinadas não lograram sequer tocar!

Houve mais, porém! É fama que a Natureza, para não desmentir a parêmia que a dá por mãe pródiga, costuma dotar de modo especial certas individualidades, com apurar-lhes o entendimento, a vontade, o senso estético e as potências que afirmam a vida([6]). Este prodígio operou em relação a Damásio, cujo ânimo, agraciado já com peregrina inteligência e caráter, quis também dispor para altas concepções e misteres: ungiu-o ministro juramentado da arte e da beleza, em cujos altares oficiou com devota pontualidade.

O bucólico teor de vida, o estilo original e as expansões de jovialidade que imprimia às horas feriadas, em sua estância rural, forjaram-lhe afável e lisonjeiro perfil. Comprazia-se em cultivar, com entranhado desvelo, imenso orquidário, que encerrava para cima de 6 mil espécies, e extensa plantação de coqueiros (coisa de 3 mil pés, que lhe rediam a safra anual de 90 mil cocos). Ainda: criava em sua deleitosa quinta — que, num lampejo feliz de imaginação denominou Ilha da Fantasia —, formoso bando de 153 flamingos. Remeteu o disco ainda mais longe: com infinita paciência adestrou-os na arte coreográfica; sob sua regência e ao som de melodia favorita, punham-se as aves a agitar a cabeça e o pescoço, graciosa e sincronicamente, de um para outro lado. Espetáculo era esse belíssimo de ver e mui digno de divulgar, para gáudio e encantamento de quantos ainda se extasiam perante o maravilhoso e sabem ser gratos àqueles que, pelo engenho, ação fecunda e idealismo, engrandecem a sociedade humana.

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A revista Veja SP, edição de 5.10.2005, levou a palma do bom gosto e oportunidade, ao comentar, com texto da jornalista Marcella Centofanti, ilustrado com fotografia expressiva, a arte cênica dos alvinitentes flamingos do Prof. Damásio de Jesus (pp. 49-50):


IV.    A herança do varão sábio e probo

Aquele que ensinou pela palavra e pelo exemplo, e converteu em facho de luz os livros com que aplainou a milhares de jovens o caminho das mais nobres profissões, esse não foi apenas agente do bem; exerceu, em rigor, a missão de apóstolo, termo por que se conhecem e recomendam os propagadores de boa doutrina.

Obrando conforme o seu nome — Evangelista —, Damásio armara-se de ponto em branco para revelar aos espíritos ávidos de saber e afeitos aos estudos jurídicos as noções fundamentais da ciência que o faria conhecido e louvado em todos os círculos acadêmicos: o Direito Penal.

Mentor intrépido da instrução secundária e guia seguro da mocidade estudiosa, acha-se-lhe por isso inscrito o nome, à conta de sua manifesta e inconcussa influência, entre os grandes vultos nacionais.

Isto de um obscuro discípulo pretender tributar louvor a seu mestre, se este se chamou Damásio E. de Jesus, não será pedra de escândalo nem pretexto para censura, já que se amparou em razões forçosas e atendíveis, das quais uma é a regra que manda proporcionar o galardão ao merecimento, e o castigo à iniquidade. (Ora, os serviços que o homenageado prestou à gente do foro ultrapassam o mais generoso estalão!).

É de ordem natural o outro motivo: procede das fibras do coração humano, que nunca ficou indiferente à face daqueles que, por haverem tomado sobre si o patrocínio de causas sociais nobres e urgentes, tornaram-se dignos de eterno reconhecimento.

Ao Prof. Damásio Evangelista de Jesus convém, pois, o mote paradoxal que a opinião pública tem reservado aos varões de sumo valor, saber e honra: “Morreu ontem um desses homens que não morrem” !([7])

Prof. Damásio E. de Jesus (1935-2020)

( Luminária grande do Direito Penal)


Notas

([1])    Direito Penal Anotado, 18a. ed., p. 3.

([2])    Pe. Antônio Vieira, Sermões, 1959, t. I, p. 120.

([3])    “Juris praecepta sunt haec: Honeste vivere; neminem laedere; jus suum cuique tribuere” (Digesto, 1.1.10.1).

([4])    José de Sá Nunes, Aprendei a Língua Portuguesa, 1938, vol. II, p. 221.

([5])    No soberbo e dilatado cânon dos penalistas que, por universal consenso, têm entre nós lugar assinalado no panteão da glória literária, avultam os nomes de: Nélson Hungria (“Pontifex Maximus” do Direito Penal Brasileiro), Bento de Faria, A.J. da Costa e Silva, Basileu Garcia, José Frederico Marques, Aníbal Bruno, Heleno Cláudio Fragoso, Edgard Magalhães Noronha, René Ariel Dotti, Alberto Silva Franco, Mohamed Amaro, Guilherme Souza Nucci, Luiz Flávio Gomes, Cezar Roberto Bitencourt, Miguel Reale Jr., Edílson Mougenot Bonfim, Fernando Capez, Roberto Delmanto, e muitos outros também de primeira plana.

([6])    Assevera um de seus biógrafos que Benjamim Disraeli (1804-1881), estadista que consolidou o Império Britânico, “idolatrava as árvores e as flores” (André Maurois, A Vida de Disraeli, 7a. ed., p. 141; trad. Godofredo Rangel; Companhia Editora Nacional; São Paulo); o genial Rui Barbosa (1849-1923), nos raros e breves ócios que lhe consentiam as graves ocupações, “sempre dedicou especial carinho ao jardim e às flores” (cf. Ruy Barbosa, “In Memoriam”, 1923).

([7])    Dístico eloquente com que a imprensa da Capital paulista lamentou a morte de seu prefeito Olavo Setúbal (in O Estado de S. Paulo, 22.8.2008).

Sobre o autor
Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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