Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017): Inconstitucionalidade da Legalização da Supressão do Intervalo Intrajornada (Art. 59-A da CLT)

09/04/2020 às 00:26
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Busca-se analisar a compatibilidade constitucional da legalização da supressão do intervalo intrajornada do trabalhador em regime de doze horas laboradas por trinta e seis de descanso (art. 59-A da CLT, introduzido pela Lei 13.467/2017).

1. INTRODUÇÃO

 

A “Reforma Trabalhista” foi aprovada e se transformou na Lei 13.467/2017, tendo entrado em vigor em 11 de novembro de 2017. Promovida pela Medida Provisória nº 808/2017, a “Reforma da Reforma” - que perdeu sua eficácia por decurso de prazo - em nada modificou o tema que ora será apreciado.

Nesse escrito, buscar-se-á analisar a compatibilidade constitucional da legalização da supressão do intervalo intrajornada do trabalhador em regime de doze horas laboradas por trinta e seis de descanso.

 

2. LINHAS GERAIS SOBRE O REGIME DE TRABALHO DE 12 POR 36

 

Quando se analisa o limite diário da jornada de trabalho, não se pode perder de vista que a Constituição Federal estipulou uma regra (duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais), cuja flexibilidade, para fins de compensação de horários ou redução de jornada, é facultada por meio de acordo ou convenção coletiva de trabalho (art. 7º, XIII, da Carta da República).

Na linha apresentada por Cassar (2017)1, a expressão “acordo ou convenção coletiva de trabalho” comporta duas interpretações: a) apenas acordos coletivos de trabalho e convenções coletivas de trabalho poderiam ajustar/alterar os referidos parâmetros constitucionais; e b) acordos individuais entre trabalhador e empregador, acordos coletivos de trabalho e convenções coletivas de trabalho poderiam flexibilizar as suscitadas normas constitucionais sobre jornada.

Sem levar em conta eventuais reflexos da Lei 13.467/2017, salienta-se que a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho adotava como regra a interpretação exposta no item “b” - vide Súmula 85, I, do TST2 -, porém, a depender da “dureza” do sistema de compensação (cita-se como exemplos a jornada de 12 horas laboradas por 36 de repouso e o banco de horas), temperava seu entendimento e exigia a negociação coletiva como requisito para estabelecer validamente determinado regime compensatório – vide Súmulas 85, V3, e 4444, do TST.

Seguindo a trilha da doutrina de Silva (2017a)5, é importante destacar, no que diz respeito à jornada de 12 por 36, que esta apresenta uma série de pontos positivos – que, inclusive, fizeram com que referida modalidade fosse encampada pelos usos e costumes trabalhistas mesmo antes da positivação de uma disciplina geral a respeito da matéria por meio da Lei 13.467/2017:

 

a) menor deslocamento do trabalhador para a empresa, porquanto no lugar de uma média de 20 a 26 dias de trabalho por mês, ativa-se em apenas 15 dias, pois o expediente ocorrerá somente na metade dos dias existentes no período;

 

b) possibilidade de exercício de outra atividade, remunerada ou não, nos dias de folga;

 

c) média de 42 horas na quinzena, pois a cada semana de 48 horas (quatro expedientes de 12 horas cada um) segue-se necessariamente uma semana de 36 horas (três expedientes de 12 horas), dentro do conceito de semana com sete dias, de segunda-feira a domingo;

 

d) proporcional, a média mensal fica abaixo das 220 horas padronizadas pela Constituição Federal, mesmo inserindo-se os descansos semanais remunerados, algo como 180 horas de trabalho efetivo para esse regime e 192 horas de trabalho efetivo para o sistema normal;

 

e) tendência a que a jornada efetivamente laborada seja de apenas 11 ou 11 horas e meia, porque habitualmente o empregador deixa de deduzir o tempo gasto para intervalo para refeição e descanso, a fim de que dois turnos de 12 horas caibam perfeitamente dentro das 24 horas do dia, como em hospitais e estabelecimentos de serviço contínuo, pois, do contrário, o empregador teria turnos de 13 horas;

 

f) e, por fim, tendência verificada na maioria das normas coletivas de se concederem folgas adicionais, à razão de uma ou duas por mês, além das “36 horas”, para os empregados submetidos a esse sistema, como uma forma velada de se compensarem os feriados acaso coincidentes com o dia de plantão.

 

Silva (2017a)6, por outro lado, aponta as razões que fazem com que o regime de 12 por 36 mereça receber um tratamento mais cuidadoso pela legislação e jurisprudência – os fundamentos indicados, inclusive, ajudam a compreender a exigência, realizada pelo Tribunal Superior Superior do Trabalho (Súmula 444) ao menos até a vigência da Lei 13.467/2017, de que apenas a negociação coletiva pudesse estipular essa modalidade compensatória:

 

a) a jornada de 12 horas é necessariamente extenuante, no trabalho braçal ou na atividade intelectual, e jamais foi tolerada pela Consolidação das Leis do Trabalho ou pela Constituição Federal, a não ser em casos muito específicos como a força maior ou o serviço inadiável, de que trata o art. 59, e certamente sua adoção de forma generalizada não corresponde a esses conceitos de excepcionalidade;

b) a produtividade do trabalhador decai de forma acentuada, sobretudo na 11.a e na 12.ª horas de trabalho, aumentando potencialmente os riscos de acidentes de trabalho por fadiga ou por desatenção, além de desatender aos anseios de bom desempenho profissional;

c) a busca por outra atividade remunerada nos dias de folga, o que se nota muito nas áreas de saúde, como serviços de enfermagem e auxiliares, pode parecer vantajosa à primeira vista, mas logo cobra seu preço pela ausência completa do repouso, privação do sono e aumento da pressão por dois trabalhos concomitantes e desgastantes, provocando, na verdade, expediente 12x12 e não 12x36, muito embora um empregador nada tenha que ver com o outro empregador;

d) existe expressa vedação a que acordos de compensação excedam de “dez horas diárias”, como já visto anteriormente, pela dicção do art. 59, § 2.º; e

e) a anuência da jornada 12x36 estabelece precedente perigoso em torno de outras variações, como a infame jornada 24x72 (24 horas consecutivas de atividade, por três dias de repouso), ainda hoje verificada em estabelecimentos de saúde e de segurança.

 

Realizada essa breve contextualização, ressalte-se que a Lei 13.467/2017 alterou significamente o núcleo jurídico do tema, consoante será visto a seguir.

Prossegue-se.

 

3. A REFORMA TRABALHISTA E O REGIME DE TRABALHO DE 12 POR 36

 

A “Reforma Trabalhista” (Lei 13.467/2017) visou retirar a maior parte dos limites impostos à jornada de 12 por 36 da alçada jurisprudencial por meio da estipulação de disciplina genérica e menos rigorosa sobre o tema, nos termos do artigo 59-A, incluído na Consolidação das Leis do Trabalho:

 

Art. 59-A. Em exceção ao disposto no art. 59 desta Consolidação, é facultado às partes, mediante acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, estabelecer horário de trabalho de doze horas seguidas por trinta e seis horas ininterruptas de descanso, observados ou indenizados os intervalos para repouso e alimentação.

Parágrafo único. A remuneração mensal pactuada pelo horário previsto no caput deste artigo abrange os pagamentos devidos pelo descanso semanal remunerado e pelo descanso em feriados, e serão considerados compensados os feriados e as prorrogações de trabalho noturno, quando houver, de que tratam o art. 70 e o § 5º do art. 73 desta Consolidação.

 

Da redação apresentada, constata-se um significativo esvaziamento da proteção pretoriana outorgada ao regime de 12 por 36, uma vez que a Lei 13.467/2017 (serão destacados os pontos em que houve mudança):

I)Autorizou que a adoção da jornada de 12 por 36 se desse por simples acordo individual escrito (em contrariedade ao entendimento consagrado na Súmula 444 do TST);

II)Legalizou a supressão do intervalo intrajornada do trabalhador sujeito ao referido regime, uma vez que deu uma opção ao empregador (observar ou indenizar os intervalos para repouso e alimentação), em violação a todo o ordenamento jurídico e entendimentos pretorianos – que nunca acataram a juridicidade da inobservância do intervalo intrajornada, ainda que este viesse a ser indenizado;

III)Excluiu, mediante a inclusão ficta da parcela no salário ordinário do laborista (espécie de salário complessivo legalmente determinado), a remuneração dobrada ou a possibilidade de compensação dos feriados trabalhados (em contrariedade ao entendimento consagrado na Súmula 444 do TST);

IV)Retirou, aparentemente, o direito à hora noturna reduzida para a jornada laborada em prorrogação ao trabalho noturno. Sobre este ponto em particular, transcre-ve o comentário formulado por Silva (2017b)7:

 

3. O dispositivo quer ser o mais abrangente possível, prevendo a supressão da hora noturna reduzida e, ainda, a supressão do intervalo para refeição, tudo para que as 12h sejam mantidas intactas e o turno seguinte entre na sequência, sem a mínima oscilação. Neste particular, a pausa para a refeição e a redução ficta dos serviços noturnos “atrapalham” os cálculos. Dado que o art. 7º da CF determina remuneração da hora noturna superior à hora diurna e dado que o TST possui sólida jurisprudência no sentido de que a majoração noturna é feita simultaneamente e cumulativamente pelo adicional noturno e pela hora noturna reduzida, será inconstitucional a interpretação de que a jornada 12x36 noturna pode ser pactuada sem nenhuma compensação da redução noturna.

 

Em meio a tantas mudanças controvertidas e prejudiciais, pinçou-se a legalização da supressão do intervalo intrajornada do trabalhador no regime de doze horas laboradas por trinta e seis de descanso para a realização de uma análise de compatibilidade constitucional. Esclarece-se que a análise também parte do pressuposto, em certa medida contestável (ainda mais para algumas atividades laborais), de que o regime de 12 por 36 seria compatível com os ditames constitucionais.

O art. 7º, XXII, da Constituição Federal, garantiu a “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”. Por mais que se possa enquadrar a referida norma, a partir da classificação clássica de José Afonso da Silva8, como sendo de “eficácia limitada”, é muito claro que a aludida disciplina constitucional tem o condão lógico de impossibilitar que o legislador, ao invés de editar normas visando reduzir os riscos inerentes ao trabalho, promulgue normas que aumentem os riscos inerentes ao trabalho. Conforme detalhadamente explanado por Fernandes (2017)9, seria esta a eficácia negativa que qualquer norma constitucional ostentaria (vedação de que o legislador ordinário contrarie determinada disposição encampada pela Carta da República).

Nesse sentido, considerando que, por mais que se possa divergir sob o ponto de vista científico a respeito do tempo ideal do intervalo intrajornada para fins de preservação da sáude física e mental do trabalhador, fato é que é notoriamente necessário o efetivo gozo de intervalo para repouso e alimentação por todo e qualquer trabalhador sujeito a uma jornada de trabalho de determinada magnitude (no caso, a CLT, no art. 71, caput, estabeleceu exigência progressiva de intervalo a partir da jornada de quatro horas diárias).

Especificamente no caso do regime de 12 por 36, é completamente impensável que trabalhar doze horas consecutivas sem qualquer descanso seja seguro, de alguma forma, para a saúde do obreiro. O intervalo interjornada maior de modo nenhum tem o condão de compensar física e mentalmente esse tipo de praxe severamente desgastante. Em tal caso, a observância do intervalo mínimo de uma hora previsto no art. 71, caput, da CLT, seria um piso intransponível (a rigor, a CLT sequer foi pensada para disciplinar jornadas normais tão longas como as de doze horas de trabalho, de modo que é até mesmo possível se cogitar que, caso esse tema fosse enfrentado com seriedade pelo legislador a partir de uma análise técnica, possivelmente viesse a ser considerado obrigatório um intervalo superior a uma hora).

Assim, a Lei 13.467/2017 não poderia simplesmente autorizar a supressão do intervalo intrajornada do trabalhador sujeito ao regime de 12 por 36, pois, agindo de tal forma, terminou por aumentar os riscos inerentes ao trabalho, em contrariedade ao que a Carta da República mandou que fosse feito em seu art. 7º, XXII (editar normas no sentido de reduzir os riscos inerentes ao trabalho).

Ademais, observa-se que o trabalhador sujeito a uma jornada mais extenuante (doze horas) passou a receber um tratamento legal inferior àquele outorgado aos laboristas comuns (que remanescem tendo direito ao efetivo gozo do intervalo intrarjornada, nos termos do art. 71 da CLT), em total afronta ao Princípio da Isonomia (art. 5º, caput, da Constituição Federal).

Por fim, destaca-se que a estipulação legal da consequência jurídica da supressão do intervalo intrajornada (pagamento do tempo suprimido ou do total do intervalo intrajornada que deveria ter sido integralmente gozado, com natureza salarial ou indenizatória, a depender da opção legislativa) – como feito feito no art. 71, §4º, da CLT10, com redação dada pela Lei 13.467/2017 -, não se confunde com a legalização do intervalo intrajornada (como foi feito para o regime de 12 por 36, nos termos do art. 59-A, caput, da CLT). Isso porque a legalização do intervalo configura diminuição concretamente a proteção conferida ao trabalhador (este deixa de ter o direito ao gozo do intervalo) e faz com que o empregador que não observe o intervalo para repouso e alimentação de seus empregados não possa ser nem mesmo punido pela fiscalização do trabalho (cujas penalidades aplicadas ao caso seriam aquelas dispostas no art. 75 da CLT).

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Não há dúvidas, assim, que é inconstitucional a legalização, promovida pelo art. 59-A, caput, da CLT, com redação dada pela Lei 13.467/2017, da supressão do intervalo intrajornada do trabalhador no regime de doze horas laboradas por trinta e seis de descanso.

Pelo exposto, avança-se para as conclusões.

 

4. CONCLUSÕES

 

Diante de tudo que foi dito, podemos concluir que é inconstitucional a legalização, promovida pelo art. 59-A, caput, da CLT, com redação dada pela Lei 13.467/2017, da supressão do intervalo intrajornada do trabalhador no regime de doze horas laboradas por trinta e seis de descanso, uma vez que tal estipulação atentou contra a determinação superior de redução dos riscos inerentes ao trabalho (art. 7º, XXII, da Carta Magna) e violou, nos termos do art. 5º, caput, da Constituição da República, o Princípio da Isonomia (submeteu o trabalhador sujeito a uma jornada mais extenuante a um tratamento legal inferior àquele outorgado aos laboristas comuns).

 


Notas de Referência e Rodapé

1CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho. 14 ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017.

2“A compensação de jornada de trabalho deve ser ajustada por acordo individual escrito, acordo coletivo ou convenção coletiva.” (ex-Súmula nº 85 - primeira parte - alterada pela Res. 121/2003, DJ 21.11.2003)

3“As disposições contidas nesta súmula não se aplicam ao regime compensatório na modalidade “banco de horas”, que somente pode ser instituído por negociação coletiva.”

4“É valida, em caráter excepcional, a jornada de doze horas de trabalho por trinta e seis de descanso, prevista em lei ou ajustada exclusivamente mediante acordo coletivo de trabalho ou convenção coletiva de trabalho, assegurada a remuneração em dobro dos feriados trabalhados. O empregado não tem direito ao pagamento de adicional referente ao labor prestado na décima primeira e décima segunda horas.”

5SILVA, Homero Batista Mateus da. Curso de direito do trabalho aplicado: jornadas e pausas. 2 ed. em e-book baseada na 4 ed. impressa. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017a.

6Ibidem.

7SILVA, Homero Batista Mateus da. Comentários à reforma trabalhista. 2 ed. em e-book baseada na 2 ed. impressa. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017b.

8Adota-se referida classificação em virtude de se tratar de abordagem notoriamente conhecida no meio jurídico e que, ao mesmo tempo, ajuda a entender e a resolver com precisão o problema posto. Não se ignora, entretanto, as modernas teorias acerca do tema, dentre as quais as defendidas por Virgílio Afonso da Silva, a partir de Robert Alexy.

9FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional. 9 ed. Salvador: JudPODIVM, 2017.

10“A não concessão ou a concessão parcial do intervalo intrajornada mínimo, para repouso e alimentação, a empregados urbanos e rurais, implica o pagamento, de natureza indenizatória, apenas do período suprimido, com acréscimo de 50% (cinquenta por cento) sobre o valor da remuneração da hora normal de trabalho.”

Sobre o autor
Charles da Costa Bruxel

Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Mestre em Direito na área de concentração de Constituição, Sociedade e Pensamento Jurídico pela Universidade Federal do Ceará (2021). Especialista em Direito Processual Civil pela Damásio Educacional (2018). Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Gama Filho (2013). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará (2016). Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Ceará (2011). Analista Judiciário - Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região (CE), exercendo atualmente a função de Assistente em Gabinete de Desembargador. Explora pesquisas principalmente o Direito Processual do Trabalho, Direito do Trabalho, Direito Processual Civil e Direito Constitucional.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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