Tribunais Internacionais: o Tribunal de Nuremberg

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O Tribunal de Nuremberg será apresentado em sua relevância histórica para o desenvolvimento do conceito de "Tribunais Internacionais" e para a consolidação das bases do Direito Internacional Penal.

1. INTRODUÇÃO

O homem criou normas de conduta, para viabilizar a coexistência entre os grupos sociais e, a partir desse ponto, o Direito é descoberto, desenvolvido e imposto, tornando as relações humanas mais harmoniosas. No entanto, grandes guerras civis, econômicas e mundiais marcaram a história, tornando inevitável que o Direito ultrapassasse as fronteiras territoriais de cada sociedade, deixando de regular apenas questões internas e estabelecesse novas normas de convivência internacionais. Criaram-se, portanto, sistemas normativos que coordenassem os interesses dos Estados e que regulamentassem suas atividades. A título de exemplo, apresenta-se as Nações Unidas (ONU), fundada em 1945, pelos representantes de cinquenta países, cujos objetivos eram manter a segurança internacional e evitar uma nova guerra mundial. Os Tribunais Internacionais são importantes elementos que compõem as relações externas, desse modo, serão abordados, no presente artigo, por intermédio da análise do Tribunal Militar Internacional, que foi criado com a finalidade de julgar os membros nazistas da Segunda Guerra Mundial. O pós-guerra resultou em mudanças drásticas no cenário internacional, pois o receio de que os atos de crueldade praticados contra o povo judeu fossem novamente praticados, direcionou os Estados a se organizarem e instituírem princípios e regras que garantissem o Direito de cada indivíduo.

Devido ao resultado desumano da segunda guerra, muitos juristas analisavam uma forma de justificar tais atos, chegando até a se considerar o positivismo jurídico de Hans Kelsen como elemento legitimador do Nazismo, isto é, de regimes totalitários. Logo, este texto se propõe a abordar a influência e a importância do positivismo jurídico em meio a guerra. Nesse sentido, o Tribunal de Nuremberg será apresentado em sua relevância histórica, assim como, serão apontados questionamentos sobre os procedimentos processuais escolhidos. Se objetivo de se propor julgamentos, no fim da guerra, era promover a justiça, sem, contudo, repetir os atos arbitrários e ilegais realizados pelos nazistas, é questionável se os Direitos dos acusados, na instalação do Tribunal de Nuremberg, foram, de fato, respeitados.

2. O POSITIVISMO JURÍDICO EM SUA FORMA MAIS PURA E OS CRIMES JULGADOS NO TRIBUNAL DE NUREMBERG

Teria sido o positivismo jurídico responsável por legitimar governos autoritários e normas injustas, sobretudo, no Nazismo alemão? Fato é que, na teoria elaborada por Hans Kelsen, o Positivismo surgiu para “purificar” a ciência do Direito, de forma a afastar interferências políticas e morais. Hans Kelsen objetivava que as normas jurídicas encontrassem validade, ou seja, se legitimassem, em uma norma fundamental, independentemente, do conteúdo que abarcassem. Após a Segunda Guerra, tal proposta foi bastante criticada, por ter validado leis que possibilitaram os horrores do sistema nazista.

Ao negar que o Direito tivesse conteúdos morais, o positivismo em sua forma mais pura, rechaça uma moral universalmente considerada, qual seja os Direitos Humanos. Nessa perspectiva, as normas nazistas não poderiam ser legitimadas, pois afrontavam os direitos mais fundamentais do ser humano e, portanto, esses direitos deveriam ser considerados mesmo que não estivessem presentes no ordenamento jurídico alemão (SILVA; MOREIRA, 2016). O Direito Penal Nazista foi elaborado e teorizado de uma forma racionalista muito perversa:

Quando adentramos nas racionalizações mais elaboradas de todas as versões do Direito Penal Inumano, surpreende a comprovação de que apelam a um recurso tão simples como perverso, que é a fabricação de inimigos. Talvez, esse simplismo justifique a afirmação freudiana de uma civilização neurótica, que se esvaziou de conteúdo antropológico ou, para dizer de outra maneira, criou subjetividades falsas, porque negando ao humano no outro também o nega em si mesmo. (ZAFFARONI, 2020, p. 97).

A formação do Tribunal de Nuremberg se justifica no reconhecimento dos Direitos Humanos e sua universalidade, ainda que não conferidos pelo ordenamento jurídico nazista. Dessa forma, em razão de sua injustiça extrema, tomou-se, por certo, que os oficiais nazistas não deveriam obedecer ou cumprir tais normas. A partir dessa premissa, vários países, após a Segunda Guerra, decidiram por instaurar um tribunal para julgar os oficiais alemães que teriam cometido crimes contra a humanidade.  O Tribunal instaurado era formado por França, Rússia, Inglaterra e EUA e sediado na cidade de Nuremberg, Alemanha, onde estava estabelecido o Palácio da Justiça. O julgamento, embora resguardando algumas ressalvas possíveis de fazer, somente, hoje, foi norteado por um justo e devido processo legal, de forma a respeitar a vida e os direitos dos acusados que ali estavam.

O julgamento demonstrou que os oficiais acreditavam nos ideias nazistas e, portanto, alegaram estarem, apenas, seguindo ordens de seus superiores. Ao final do julgamento, a depender de suas participações nos crimes dos quais foram acusados, alguns oficiais foram condenados à prisão e outros à morte, prevalecendo a ideia de que as normas legitimadoras não deveriam ter sido obedecidas por nenhum alemão em razão de seu conteúdo arbitrário e contrário aos direitos humanos. A conexão, que liga Direito e moral, se distanciou da pureza desejada por Kelsen, mas possibilitou o reconhecimento de direitos universalmente pertencentes à humanidade. Tais direitos, ainda que fora da concepção de Direito no Positivismo, deveriam ser respeitados pelos Estados, possibilitando uma consciência a nível global de sua aplicação e os males, que sua não observância, poderiam causar. Ainda, observa-se que:

Finda a 2ª Guerra Mundial, iniciou-se um processo de modificação das teorias constitucionais, que refletiu diretamente nos próprios textos constitucionais, haja vista as constituições posteriores a 1945 deixarem de ser meros instrumentos de normas para a regulação do estado e passarem a ter normas garantidoras de direitos fundamentais. Isso se deu principalmente porque o mundo não aceitava mais governos que desrespeitassem um mínimo ético tolerável” (SILVA; MOREIRA, 2016).

O Tribunal de Nuremberg proporcionou a responsabilização dos indivíduos que agiram em nome do Estado e cometeram graves violações aos Direitos Humanos, adentrando à esfera do Direito Internacional e a soberania dos países. A partir desse Tribunal, consolidou-se o Tribunal Penal Internacional, um tribunal permanente, de cárter excepcional e que fica condicionado à incapacidade ou omissão do sistema judicial interno. Além disso, teve significativa importância no desenvolvimento do conceito de “tribunais internacionais” ao consolidar as bases do Direito Internacional Penal (ALVARENGA; OLIVEIRA, 2021). Embora criticado por ter sido um Tribunal de exceção, criado post facto, afrontando o princípio da anterioridade da lei penal e por impor sanções como a pena de morte, apresentou-se como um marco para as relações de Direito Internacional.

3. DO DISCURSO DE ABERTURA DO PROMOTOR DE JUSTIÇA ROBERT H. JACKSON E A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NO TRIBUNAL DE NUREMBERG

Se, hoje, o Tribunal Penal Internacional (TPI)[1], à égide do Estatuto de Roma, propõe-se a participar de uma luta global para acabar com a impunidade e, por meio da justiça criminal internacional, tem como objetivo responsabilizar os condenados ​​por seus crimes, a fim de que esses mesmos crimes não voltem a acontecer, o TPI, embora sendo permanente, constitui-se na última instância, que complementa, e não substitui, os tribunais nacionais. Por outro lado, falar do Tribunal Penal Internacional (TPI) é, de muitas formas, falar da história humana coletiva e das inúmeras violações de direitos ocorridas no período da Segunda Guerra Mundial, sobretudo, em relação à dignidade da pessoa humana, sendo indiscutível os desdobramentos políticos e normativos que o Tribunal de Nuremberg imprimiu ao julgamento das violações de direitos contra o povo judeu: a morte nos campos nazistas de concentração, os crimes de guerra.

Conforme Valerio de Oliveira Mazzuoli (2004, p. 158), o Holocausto foi o alerta para a internacionalização dos direitos humanos, isto é, o resgaste da cidadania mundial, cuja preocupação se acercou da proteção de direitos, objetivando impedir que novas barbáries e atrocidades ocorressem novamente, porque, a bem da verdade, a elaboração de grandes tratados internacionais de proteção dos direitos humanos partiu do princípio de que essas violações poderiam ter sido evitadas, se um efetivo sistema de proteção internacional de direitos existisse. Se, como já dito, no Pós-Segunda Guerra, os representantes dos governos dos Estados Unidos, França, Inglaterra e Rússia acordaram em julgar os atos praticados pelos maiores acusados de liderar o Partido Nazista alemão, Martin Bormann, Rudolf Hess e Wilhelm Frick, o Tribunal de Nuremberg foi um tribunal de exceção, temporário, mas que que significou um poderoso impulso ao movimento de internacionalização dos direitos humanos. Vale dizer que, nos termos do Acordo de Londres de 08 de agosto de 1945, o Tribunal Militar Internacional, na dicção do seu artigo 6º, traz a seguinte normatização:

o Artigo 6º do Ato Constitutivo do IMT pelos seguintes crimes: (1) Conspiração para cometer os atos constantes nas acusações 2, 3 e 4 definidas a seguir; (2) Crimes contra a paz – definidos como a participação no planejamento e provocação de guerra em violação a vários tratados internacionais; (3) Crimes de guerra – definidos como violações das leis e das regras internacionais acordadas para a deflagração de uma guerra; e (4) Crimes contra a humanidade – "ou seja, assassinato, extermínio, escravização, deportação e qualquer outro ato desumano cometido contra quaisquer populações civis, antes ou durante a guerra; ou perseguição baseada em questões políticas, raciais ou religiosas, na execução de ou em conexão com qualquer crime sob a alçada deste Tribunal, estejam ou não violando as leis dos países onde sejam perpetrados"[2].

Se, em 1907, a Quarta Convenção de Haia, Holanda, foi o primeiro acordo internacional a definir as regras básicas para a guerra terrestre, como as proibições de maltratar prisioneiros e proteger a vida e a propriedade de civis, em 1945, no fim da Segunda Guerra Mundial, os aliados vitoriosos instituíram o Tribunal Militar Internacional, para julgar os líderes alemães nazistas por crimes de guerra, em Nuremberg. Logo, é nesse contexto, portanto, que se posta o discurso de abertura do Promotor-Chefe Robert H. Jackson, ou melhor, Procurador-Geral e Juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, como bem retrata o fragmento a seguir:

O privilégio de abrir o primeiro julgamento da história por crimes contra a paz no mundo implica uma grande responsabilidade. Os erros que buscamos condenar e punir foram tão calculados, tão malignos e tão devastadores, que a civilização não pode tolerar que sejam ignorados, porque não pode sobreviver à sua repetição. Essas quatro grandes nações, resplandecendo com a vitória e feridas pela injúria, detêm a mão da vingança e submetem, voluntariamente, seus inimigos cativos ao julgamento da lei, isso é um dos tributos mais significativos que o Poder já pagou à Razão. [...] Se esses homens, os primeiros líderes de guerra de uma nação derrotada, são processados, ​​em nome da lei, eles também são os primeiros a ter a chance de pleitear por suas vidas em nome da lei. Realisticamente, a Carta deste Tribunal, que lhes dá uma audiência, é também a fonte de sua única esperança. Pode ser que esses homens de consciência atribulada, cujo único desejo é que o mundo os esqueça, não considerem uma prova, um favor. Mas eles têm uma oportunidade justa de se defender, um favor que esses homens, quando no poder, raramente, estendiam a seus compatriotas. Apesar de a opinião pública já condenar seus atos, concordamos que, aqui, eles devem ter a presunção de inocência, e aceitamos o ônus de provar atos criminosos e a responsabilidade desses réus por sua prática. […] Gostaríamos também de deixar claro que não temos nenhum propósito de incriminar todo o povo alemão. Sabemos que o Partido Nazista não foi colocado no poder pela maioria dos votos alemães. Sabemos que chegou ao poder por uma aliança maligna entre o mais radical dos revolucionários nazistas, o mais desenfreado dos reacionários alemães e o mais agressivo dos militaristas alemães. [...] O que torna este inquérito significativo é que esses prisioneiros representam influências sinistras que estarão à espreita no mundo muito depois de seus corpos terem voltado ao pó. Mostraremos que são símbolos vivos do ódio racial, do terrorismo e da violência, e da arrogância e crueldade do poder. Eles são símbolos de nacionalismos ferozes e de militarismo, de intrigas e guerras que envolveram a Europa geração após geração, esmagando sua humanidade, destruindo suas casas e empobrecendo sua vida. [...] A civilização pergunta se a lei é tão atrasada a ponto de ser totalmente impotente para lidar com crimes dessa magnitude cometidos por criminosos dessa ordem de importância. Além disso, não espera que se torne a guerra impossível, mas se espera que a ação jurídica coloque as forças do direito internacional, seus preceitos, suas proibições e, principalmente, suas sanções, do lado da paz, para que homens e mulheres de boa vontade, em todos os países, possam ter “Licença para viver por licença de ninguém, nos termos da lei[3]. [Tradução livre].

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Nas palavras do Promotor de Justiça, Robert H. Jackson, fica evidente o princípio da presunção de inocência ou o princípio da não-culpabilidade, que, desde a Revolução Francesa, em 1789, tornou-se garantia expressa por meio da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, vale dizer, todo acusado deve ser presumido inocente, até que seja declarado culpado, conforme a dicção do artigo 9º. Além disso, após o julgamento em Nuremberg, já no período após a Segunda Guerra, a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948) consagrou o princípio da presunção de inocência, normatizando que toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. Além disso, ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional, sendo que não será imposta pena mais forte de que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso. Nesse sentido, com o marco do Tribunal de Nuremberg, o sujeito para a ser sujeito de direitos, tanto no âmbito nacional quanto internacional, podendo ter sua conduta tipificada por crimes de guerra. Como bem ilustram as palavras de Flavia Piovesan:

A inexistência de qualquer questionamento ou reserva feita pelos Estados aos seus preceitos e a inexistência de qualquer voto contrário às suas disposições, confere a Declaração Universal o significado de um código e plataforma comum a serem seguidos pelos Estados. A Declaração Universal reflete os parâmetros protetivos mínimos para a salvaguarda da dignidade humana, ou seja, o mínimo ético irredutível a ser observado pela comunidade internacional. (PIOVESAN, 2008, p. 19).

Por outro lado, importante é a reflexão suscitada, até aqui, acerca do julgamento em Nuremberg e do próprio Direito Internacional: se, no Tribunal de Nuremberg, a violação do princípio da anterioridade da lei penal foi apontada como ilegalidade grave, não teria, pelo menos, com base no discurso do Promotor de Justiça, Robert H. Jackson, o mesmo Tribunal procurado resguardar o princípio da presunção de inocência ou da não-culpabilidade?

4. O JULGAMENTO DE NUREMBERG E O DIREITO INTERNACIONAL

Tribunais ad hoc, como foi o caso do Julgamento de Nuremberg, foi um marco para o Direito Internacional Público. Se, por um lado, é possível arguir que foi de suma importância fazer com que, na época, os nazistas fossem de alguma forma punidos, pode-se afirmar, também, que os tribunais de exceção ferem a legalidade, já que não há norma contrária, anterior ao fato. Dessa forma, entender as contribuições, que essa primeira tentativa de se punir crimes semelhantes ao cometido pelos nazistas, é relevante para se entender, hoje, a constituição e a importância do atual Tribunal Penal Internacional, bem como as melhorias que foram feitas [e possíveis falhas], a fim de se tornarem inaptas em outros julgamentos de nível internacional é uma proposta política e humana a ser sempre considerada. Importantes as palavras de Paula Rocha, ao parafrasear o professor Fabrício Felamingo:

Nuremberg foi a base do atual Tribunal Penal Internacional, órgão capaz de julgar pessoas que cometem crimes contra a humanidade, crimes contra a paz e genocídio. Ele representou o primeiro passo na tentativa de preservação dos direitos humanos (ROCHA, 2012, s/p).

Por outro lado, no início deste século, por exemplo, aconteceu um grande crime em Ruanda, onde o Ministro do governo provisório foi acusado de matar mais de um milhão. O crime foi julgado pelo Tribunal Penal Internacional permanente, que criou suas bases no Tribunal de Nuremberg, mas o reformou de maneira a atender os critérios legais e com intenção de não infringir os direitos fundamentais e as garantias processuais. Foi somente em julho de 1998 que representantes de cento e vinte nações reuniram-se em uma conferência na cidade de Roma e aprovaram o projeto que pretendia criar um Tribunal Penal Internacional Permanente, um foro que até então existia somente enquanto ideal. O resultado foi a elaboração do Tratado de Roma do Tribunal Penal Internacional, também chamado de O Tribunal de Haia, na Holanda. É uma Corte com jurisdição sobre mais de 120 países, dentre eles o Brasil, e é responsável por julgar indivíduos acusados de crimes contra a humanidade, crimes de guerra, genocídios e crimes ambientais em larga escala. A diferença entre os tribunais precedentes, já mencionados, e o Tribunal Penal Internacional é seu caráter permanente, enquanto os outros foram organizados para resolverem apenas questões pontuais, este existe até a atualidade. Muitos autores têm suas definições e opiniões sobre o Direito Internacional Público, Paulo Dourado de Gusmão traz em uma de suas obras que

o direito internacional é o complexo de regras consuetudinárias e convencionais que rege as relações entre Estados Soberanos, e protege os direitos humanos e o meio ambiente” (GUSMÃO, 1998, p.149).

Já Danilo Cezar Cabral diz que o tribunal de Nuremberg serviu de base para a criação de leis militares e internacionais válidas até hoje, além de inspirar a Convenção de Genebra e contribuir para a Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948. Ascleide Ferreira dos Santos diz que o tribunal de Nuremberg: se impõe como um marco de evolução do Direito Internacional a ser atualizado, aperfeiçoado e ampliando com um caráter permanente e de ainda maior representação mundial.” (SANTOS, 2012, s/p).

5. O JULGAMENTO DE ADOLF EICHMANN

Adolf Eichmann fez parte do Partido Nazista na Áustria, foi oficial da SS (Schutzstaffel) e rapidamente conquistou posições nas organizações nazistas, sendo reconhecido pela gestão no plano de extermínio “Solução Final”, no qual foi responsável pela organização e deportação dos judeus para os campos de extermínio. Foi um grande personagem do período nazista, cumpria de forma exemplar suas atividades e se orgulhava pelo êxito do seu trabalho.

Ao final da segunda guerra, os aliados buscaram meios de julgar e responsabilizar membros da liderança militar, política e econômica da Alemanha nazista, garantindo aos acusados o acesso à ampla defesa. Eichmann foi capturado e mantido em custódia pelos Estados Unidos, mas conseguiu fugir em 1946. Ficou foragido por 15 anos, sendo capturado em 1960 por uma equipe de agentes do serviço secreto do Estado de Israel (Mossad), em Buenos Aires. Após abdução internacional de Eichmann, se estabeleceu um momento de tensão entre Israel e Argentina, devido a violação à soberania territorial dos Estados e o desejo de se deter a custódia do acusado. O caso foi apresentado ao Conselho de Segurança da ONU, o qual aprovou a Resolução 138 e solicitou ao governo de Israel a reparação apropriada de acordo com a Carta das Nações Unidas e as regras do Direito Internacional. É imprescindível destacar a mudança e evolução nas relações internacionais após a segunda guerra mundial. A criação do Tribunal Militar Internacional foi uma etapa importante de um processo de transformação moroso. O professor Mazzuoli destaca a importância dos julgamentos ocorridos em Nuremberg:

Como respostas às atrocidades cometidas pelos nazistas no Holocausto, cria-se, por meio do Acordo de Londres (1945/46), o conhecido Tribunal de Nuremberg, que significou um poderoso impulso ao movimento de internacionalização dos direitos humanos. Instituído pelos governos da França, Estados Unidos, Grã-Bretanha e da antiga União Soviética, o Tribunal representou a reação imediata da sociedade internacional às violências e barbáries perpetradas durante o Holocausto, especialmente por processar e julgar os “grandes criminosos de guerra” do Eixo europeu, acusados de colaboração direta para com o regime nazista. (MAZZUOLI, 2020, p.884).

Eichamnn foi encaminhado a Corte Distrital de Jerusalém para o início do seu julgamento. Durante todo o depoimento, manteve seu discurso indicando que não era responsável pelas mortes dos judeus, declarava-se inocente de todas as acusações, pois considerava que era apenas uma engrenagem de uma máquina. De forma apática e sem apresentar remorso, afirmava que, apenas, cumpria suas funções, recebia ordens e que não tivera papel direto no extermínio em massa que seus chefes realizavam. Hannah Arendt, enviada para fazer a cobertura do julgamento, analisou o depoimento do réu e com o intuito de interpretar suas alegações e não de defendê-lo, observou que “o que ele fizera era crime só retrospectivamente, e ele sempre fora um cidadão respeitador das leis, porque as ordens de Hitler, que sem dúvida executou o melhor que pôde, possuíam “força de lei” no Terceiro Reich.” (ARENDT, 1999, p.27). Após um julgamento de grande repercussão, Eichmann foi considerado culpado das acusações e sentenciado à forca.

Muitas críticas foram feitas aos julgamentos realizados em Nuremberg e em Jerusalém, perguntavam-se se, de fato, os acusados tiveram seus direitos resguardados durante o processo. A violação do princípio da anterioridade da lei penal foi apontada como uma das irregularidades mais graves, visto que os líderes nazistas e Eichmann foram julgados por crimes novos, uma vez que inexistia legislação que os previsse à época dos fatos. Acusaram os responsáveis de constituírem um tribunal de exceção, sob a justificativa de que seus participantes eram todos vitoriosos e o julgamento foi um instrumento de punição aos vencidos, assim como, alegaram que a responsabilidade no Direito Internacional recairia apenas sobre o Estado, não atingindo o indivíduo de forma específica. Em uma crítica singular ao julgamento de Adolf Eichmann, questionavam a competência da corte para julgá-lo, considerando a abdução internacional realizada e, de forma geral, questionavam o fato de que os Aliados também tinham cometido crimes de guerra, mas não foram submetidos a nenhum tipo de julgamento. Hanna Arendt aborda a questão da impunidade dos Aliados e menciona que

[..] o bombardeio intenso de cidades abertas e, acima de tudo, as bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki constituíam claramente crimes de guerra no sentido da Convenção de Haia. [...] Sem dúvida, a razão mais óbvia para que a violação da Convenção de Haia cometida pelos Aliados nunca tenha sido discutida em termos legais residia no fato de que os Tribunais Internacionais Militares eram internacionais apenas no nome, sendo de fato cortes dos vitoriosos [...]. (ARENDT, 1999)

É evidente a existência de inúmeras irregularidades nos julgamentos de Nuremberg e de Jerusalém, contudo, deve-se considerar que a criação dos citados tribunais foi um marco importante para as relações internacionais e para o reconhecimento dos direitos humanos nessa esfera. O professor Sidney Guerra elucida a respeito da relevância de tais criações:

A despeito das críticas apresentadas, a criação do Tribunal de Nuremberg foi importante, pois surgiram figuras que a sociedade internacional conhecia de fato, mas não conhecia de direito: o crime de lesa-humanidade, os crimes de guerra e o crime de agressão. Essas categorias não estavam legisladas nem reconhecidas efetivamente no âmbito do Direito Internacional e com a ideia de se criar um Tribunal Internacional começaram a prosperar de fato, e vários foram os trabalhos realizados pelas Nações Unidas. (GUERRA, 2021, p.244)

6. CONCLUSÃO

Como visto ao longo do texto, na teoria elaborada por Hans Kelsen, o Positivismo surgiu para “purificar” a ciência do Direito, de forma a afastar interferências políticas e morais, cuja proposta considerava que as normas jurídicas encontrassem validade, ou seja, se legitimassem, em uma norma fundamental, independentemente, do conteúdo que abarcassem. Com isso, após a Segunda Guerra, a teria de Kelsen foi bastante criticada, por ter validado leis que possibilitaram os horrores do sistema nazista. Tudo indicava que, ao negar que o Direito tivesse conteúdos morais, o positivismo em sua forma mais pura, rechaça uma moral universalmente considerada: os Direitos Humanos. Por outro lado, a formação do Tribunal de Nuremberg se justifica no reconhecimento dos Direitos Humanos e sua universalidade, ainda que não conferidos pelo ordenamento jurídico nazista. Dessa forma, em razão de sua injustiça extrema, tomou-se, por certo, que os oficiais nazistas não deveriam obedecer ou cumprir tais normas. A partir dessa premissa, vários países, após a Segunda Guerra, decidiram por instaurar um tribunal para julgar os oficiais alemães que teriam cometido crimes contra a humanidade.  O Tribunal instaurado era formado por França, Rússia, Inglaterra e EUA e sediado na cidade de Nuremberg, Alemanha, onde estava estabelecido o Palácio da Justiça. O julgamento, embora resguardando algumas ressalvas possíveis de fazer, somente, hoje, foi norteado por um justo e devido processo legal, de forma a respeitar a vida e os direitos dos acusados que ali estavam, sem deixar, contudo, a marca escura da história humana coletiva e das inúmeras violações de direitos ocorridas no período da Segunda Guerra Mundial: a violação da dignidade da pessoa humana, a crueldade das mortes ocorridas nos campos nazistas de concentração, vale dizer, os crimes de guerra.

Miais uma vez, vale retomar o caso da violação do princípio da anterioridade da lei penal, apontada como uma das irregularidades mais graves em caso de julgamento internacionais, visto que os líderes nazistas e Eichmann foram julgados por crimes novos, uma vez que inexistia legislação que os previsse à época dos fatos. Acusaram os responsáveis de constituírem um tribunal de exceção, sob a justificativa de que seus participantes eram todos vitoriosos e o julgamento foi um instrumento de punição aos vencidos, assim como, alegaram que a responsabilidade no Direito Internacional recairia apenas sobre o Estado, não atingindo o indivíduo de forma específica. Por fim, importante é a reflexão suscitada acerca do julgamento em Nuremberg e do próprio Direito Internacional: se, no Tribunal de Nuremberg, a violação do princípio da anterioridade da lei penal foi apontada como ilegalidade grave, não teria, pelo menos, com base no discurso do Promotor de Justiça, Robert H. Jackson, o mesmo Tribunal procurado resguardar o princípio da presunção de inocência ou da não-culpabilidade? Daí, vale dizer que se, atualmente, o Tribunal Penal Internacional propõe-se a participar de uma luta global para acabar com a impunidade e, por meio da justiça criminal internacional, tem como objetivo responsabilizar os condenados ​​por seus crimes, a fim de que esses mesmos crimes não voltem a acontecer, o TPI, embora sendo permanente, constitui-se na última instância, que complementa, e não substitui, os tribunais nacionais.

REFERÊNCIAS

ALVARENGA, Flavia Denadai; OLIVEIRA, Tarsis Barreto. O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E O TRIBUNAL DE NUREMBERG: Aspectos Históricos e Jurídicos. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, Rio de Janeiro: vol. 13, no 1, janeiro-abril, 2021, p. 72-104.

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris. 10 dez. 1948. Disponível em:  https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos Acesso em: 12 de out. 2021.

GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. 23. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O Tribunal Penal Internacional: Integração ao direito brasileiro e sua importância para a justiça penal internacional. In: Revista de Informação Legislativa, ano 41, n. 164 (2004), p. 157-178.

O JULGAMENTO de Nuremberg. Direção de Yves Simoneau. Youtube. 18 de jun. de 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qRw1gIp8J_s Acesso em: 11 de out. 2021.

PIOVESAN, Flavia. Direito internacional dos direitos humanos: Código anotado. São Paulo: Saraiva, 2008.

ROBERT H. JACKSON CENTER. Opening Statement before the International Military Tribunal. ©2021. Disponível em: https://www.roberthjackson.org/speech-and-writing/opening-statement-before-the-international-military-tribunal/ Acesso em: 11 de out. 2021.

SANTOS, Ascleide Ferreira dos. O Tribunal de Nuremberg e o Direito Internacional. https://egov.ufsc.br/portal/conteudo/o-tribunal-de-nuremberg-e-o-direito-internacional https://www.poder360.com.br/internacional/poder360-explica-saiba-como-funciona-o-tribunal-penal-internacional-em-haia/

SILVA, Tatiana Mareto; MOREIRA, Nelso Camatta. ANÁLISE CRÍTICA DO POSITIVISMO JURÍDICO EM FACE DOS DIREITOS HUMANOS NA PERSPECTIVA DO FILME “O JULGAMENTO DE NUREMBERG”. Derecho y Cambio Social, Vitória, maio, 2016.

THE NATIONAL WWII MUSEUM NEW ORLEANS. The Grave Responsibility of Justice: Justice Robert H. Jackson's Opening Statement at Nuremberg. ©2020. Disponível em: ationalww2museum.org/war/articles/robert-jackson-opening-statement-nuremberg Acesso em: 11 de out. 2021.

ROBERT H. JACKSON CENTER. Opening Statement before the International Military Tribunal. ©2021. Disponível em: https://www.roberthjackson.org/speech-and-writing/opening-statement-before-the-international-military-tribunal/ Acesso em: 11 de out. 2021.

UNITED STATES HOLOCAUST MEMORIAL MUSEUM. Nuremberg Trials. ©2018. Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/the-nuremberg-trials Acesso em: 11 de out. 2021.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Direito Penal Humano e Poder no século XXI. Tradução Ílison Dias dos Santos e Jhonatas Péricles Oliveira Melo. Salvador: EDUFBA, 2020.


[1] Veja-se: International Criminal Court. Disponível em: https://www.icc-cpi.int/ Acesso em: 11 de out. 2021

[2] Cf. UNITED STATES HOLOCAUST MEMORIAL MUSEUM. Nuremberg Trials. ©2018. Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/the-nuremberg-trials Acesso em: 11 de out. 2021.

[3] Cf.: “The privilege of opening the first trial in history for crimes against the peace of the world imposes a grave responsibility. The wrongs which we seek to condemn and punish have been so calculated, so malignant, and so devastating, that civilization cannot tolerate their being ignored, because it cannot survive their being repeated. That four great nations, flushed with victory and stung with injury stay the hand of vengeance and voluntarily submit their captive enemies to the judgment of the law is one of the most significant tributes that Power has ever paid to Reason […]. If these men are the first war leaders of a defeated nation to be prosecuted in the name of the law, they are also the first to be given a chance to plead for their lives in the name of the law. Realistically, the Charter of this Tribunal, which gives them a hearing, is also the source of their only hope. It may be that these men of troubled conscience, whose only wish is that the world forget them, do not regard a trial as a favor. But they do have a fair opportunity to defend themselves-a favor which these men, when in power, rarely extended to their fellow countrymen. Despite the fact that public opinion already condemns their acts, we agree that here they must be given a presumption of innocence, and we accept the burden of proving criminal acts and the responsibility of these defendants for their commission. […] We would also make clear that we have no purpose to incriminate the whole German people. We know that the Nazi Party was not put in power by a majority of the German vote. We know it came to power by an evil alliance between the most extreme of the Nazi revolutionists, the most unrestrained of the German reactionaries, and the most aggressive of the German militarists. […] What makes this inquest significant is that these prisoners represent sinister influences that will lurk in the world long after their bodies have returned to dust. We will show them to be living symbols of racial hatreds, of terrorism and violence, and of the arrogance and cruelty of power. They are symbols of fierce nationalisms and of militarism, of intrigue and war-making which have embroiled Europe generation after generation, crushing its manhood, destroying its homes, and impoverishing its life. […] Civilization asks whether law is so laggard as to be utterly helpless to deal with crimes of this magnitude by criminals of this order of importance. It does not expect that you can make war impossible. It does expect that your juridical action will put the forces of international law, its precepts, its prohibitions and, most of all, its sanctions, on the side of peace, so that men and women of good will, in all countries, may have “leave to live by no man’s leave, underneath the law”.

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