NA CONTRAMÃO DAS MEDIDAS SANITÁRIAS

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12/04/2020 às 10:18
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NA CONTRAMÃO DAS MEDIDAS SANITÁRIAS

Rogério Tadeu Romano

I – O ARQUIVAMENTO

O vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) o arquivamento da notícia-crime apresentada pelo deputado federal Reginaldo Lopes (PT-MG) contra o presidente Jair Bolsonaro. O parlamentar pretende enquadrar o presidente no artigo 268 do Código Penal, que consiste em infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa. O crime tem pena de um mês a um ano e se trata de um delito de menor potencial ofensivo sobre o qual cabe a transação penal.

Segundo o vice-procurador-geral da República, não há como imputar a Bolsonaro o crime de descumprimento de medida sanitária preventiva porque não havia uma ordem dessa natureza vigorando. Medeiros considerou que, em primeiro lugar, ‘não há notícia de prescrição, por ato médico, de medida de isolamento para o presidente da República’.

Em segundo lugar, de acordo com a PGR, ‘à data dos fatos não havia restrição imposta pelas autoridades sanitárias federais a eventos e atividades a fim de evitar a propagação do coronavírus’. “Já o decreto editado pelo governo do Distrito Federal (40.520/2020), onde foi realizado o ato de 15 de março, não abrange manifestações políticas como a havida daquela data, mas somente eventos – ‘atividades recreativas, sociais, culturais, religiosas, esportivas, institucionais ou promocionais’ – que ‘exijam licença do Poder Público’.

“Essas circunstâncias afastam a incidência do crime de infração de medida sanitária preventiva aos eventos narrados nessa representação, bem como a subsunção destes mesmos fatos ao delito de perigo para a vida ou saúde de outrem, previsto no art. 132 do Código Penal. É que descartada a suspeita de contaminação do representado, seu comportamento não poderia causar perigo de lesão ao bem jurídico protegido, na medida em que a realização do tipo penal depende fundamentalmente da prova de que o autor do fato está infectado”, afirmou Medeiros. Por essas razões, o vice-procurador-geral da República comunicou ao ministro Marco Aurélio que a PGR arquivou as representações.

Caberá ao STF, diante da manifestação do titular da ação penal pública, homologar o pedido de arquivamento.

Questiona-se se a decisão que determina o arquivamento do inquérito tem a natureza de coisa julgada material, ou seja, se tem eficácia pan-processual com relação aos demais feitos: Vislumbro dois casos: a) arquivamento com fundamento na atipicidade de conduta: é possível gerar coisa julgada material. Veja-se o decidido no HC 83.346 – SP, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, Informativo 388; b) arquivamento com base em excludente de ilicitude ou de culpabilidade: a única exclusão, para o caso de exclusão de culpabilidade, é por doença mental, tendo em vista a possibilidade de aplicação de medida de segurança.

No caso de atipicidade de conduta caberá falar em coisa julgada material.

Não se revela cabível a reabertura das investigações penais, quando o arquivamento do respectivo inquérito policial tenha sido determinado por magistrado competente, a pedido do Ministério Público, em virtude da atipicidade penal do fato sob apuração, hipótese em que a decisão judicial - porque definitiva - revestir-se-á de eficácia preclusiva e obstativa de ulterior instauração da "persecutio criminis", mesmo que a peça acusatória busque apoiar-se em novos elementos probatórios. Inaplicabilidade, em tal situação, do art. 18 do CPP e da Súmula 524/STF. Doutrina. Precedentes.

[HC 84.156, rel. min. Celso de Mello, 2ª T, j. 26-10-2004, DJ de 11-2-2005.]

No entanto, se a questão é, como parece, por falta de provas, poderá ser o inquérito ser reiniciado, a teor da súmula 524:

Súmula 524

Arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do promotor de justiça, não pode a ação penal ser iniciada, sem novas provas.

Existe, em casos tais, a coisa julgada material, ou seja, um grau de imutabilidade da decisão de arquivamento que impede nova persecução penal pelo mesmo fato. Isso se verifica, conforme ensina Gustavo Henrique Badaró, nas hipóteses em que o arquivamento se opera não em razão de uma mera constatação de insuficiência de elementos de informação sobre a existência material do fato ou de sua autoria, já que nesses casos há apenas a coisa julgada formal (rebus sic stantibus). A coisa julgada material seria formada quando, a partir de reconstrução fática segura, houver o reconhecimento de (i) atipicidade dos fatos investigados, (ii) extinção da punibilidade ou ainda (iii) EXCLUDENTE DA ILICITUDE.

Quando arquiva-se pro dúvida, pode haver o desarquivamento. Prova nova seria o conteúdo material, e não a fonte, conteúdo que pode mudar a dinâmica do processo.

Assim se surgir nova prova diante do caso vertente, poderá haver novo pronunciamento do Parquet.

Para que ocorra o desarquivamento de inquérito, basta que haja notícia de novas provas, nos termos do art. 18 do Código de Processo Penal, enquanto não se extinguir a punibilidade pela prescrição. De fato, diante da notícia de novos elementos de convicção veiculada pelo Parquet, afigura-se admissível a reabertura das investigações nos termos da parte final do citado dispositivo do CPP, mesmo porque o arquivamento de inquérito policial não faz coisa julgada nem acarreta a preclusão, por cuidar-se de decisão tomada rebus sic stantibus.

Com o devido respeito, como pode estar descartado o fato de que o representado está ou não infectado? Caberia ao Parquet como titular da ação penal pública incondicionada proceder a requisição ao estabelecimento médico onde o atual presidente teria se submetido a exames para se saber se estava ou não infectado. Esse o seu papel diante do princípio da obrigatoriedade que rege a missão ministerial.

Descartar, pura e simplesmente, em um despacho, não é a melhor técnica, data vênia.

Aliás, é de boa técnica que o pedido de arquivamento apresentado pelo Parquet seja devidamente fundamentado de forma exauriente.

Afinal, em sede de ação penal aplica-se in dubio pro societate

Ademais, mesmo que o sujeito não tenha certeza de estar contaminado, mas aceita a hipótese, e transita normalmente por locais públicos, assumindo o risco de transmitir a doença, cometerá o ilícito com dolo eventual.

Está aí esse perigoso contagioso que exige para os casos concretos aplicação da norma penal específica.

Para tanto, seria necessário que o Parquet diligenciasse no sentido de procurar saber se o atual presidente sabia ou não se estava infectado.

II – O CORONAVÍRUS E AS MEDIDAS NORMATIVAS ADOTADAS

Os coronavírus (CoV) são uma grande família viral, conhecidos desde meados dos anos 1960, que causam infecções respiratórias em seres humanos e em animais. Geralmente, infecções por coronavírus causam doenças respiratórias leves a moderada, semelhantes a um resfriado comum. A maioria das pessoas se infecta com os coronavírus comuns ao longo da vida, sendo as crianças pequenas mais propensas a se infectarem. Os coronavírus comuns que infectam humanos são alpha coronavírus 229E e NL63 e beta coronavírus OC43, HKU1.

Alguns coronavírus podem causar síndromes respiratórias graves, como a síndrome respiratória aguda grave que ficou conhecida pela sigla SARS da síndrome em inglês “Severe Acute Respiratory Syndrome”. SARS é causada pelo coronavírus associado à SARS (SARS-CoV), sendo os primeiros relatos na China em 2002. O SARS-CoV se disseminou rapidamente para mais de doze países na América do Norte, América do Sul, Europa e Asia, infectando mais de 8.000 pessoas e causando entorno de 800 mortes, antes da epidemia global de SARS ser controlada em 2003. Desde 2004, nenhum caso de SARS tem sido relatado mundialmente.

Para o caso a Lei nº 13.979/2020, que prevê várias medidas para evitar a contaminação ou a propagação da doença, destacando-se o isolamento, a quarentena e a realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, vacinação e tratamentos médicos específicos, é a fonte normativa para a matéria. Desobedecida pode gerar conduta criminal inscrita no artigo 268 do Código Penal.

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O Ministério da Saúde tem determinado uma série de medidas todas essas em consonância ao que dispõe a Organização Mundial de Saúde.

O Ministério da Saúde editou uma portaria que regulamenta medidas para o combate ao coronavírus, como isolamento e quarentena. O texto foi publicado no dia 12 de março no Diário Oficial da União (DOU). De acordo com o texto, a medida prevê “separação de pessoas sintomáticas ou assintomáticas, em investigação clínica e laboratorial, de maneira a evitar a propagação da infecção e transmissão local”. O isolamento vale por 14 dias e a quarentena por 40 dias."

Como consequências os Estados, Municípios e Distrito Federal determinaram, por decreto, no sentido de evitar aglomerações, a suspensão de funcionamento de comércio, a exceção de serviços essenciais, como hospitais, supermercados, por exemplo.

III – UM CRIME DE RESPONSABILIDADE?

Mas isso não para aí.

Observo a reportagem da Folha, no dia 10 de abril:

“O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ouviu gritos de apoio e também panelaço em novo passeio por Brasília, nesta Sexta-Feira Santa (10), em meio ao isolamento social em vigência no Distrito Federal devido à pandemia de coronavírus.

Em um dos momentos, Bolsonaro foi cercado por moradores e, antes de entrar no carro, ignorou orientações sanitárias e, sem demonstrar nenhuma preocupação com a crise do coronavírus, primeiro coçou o nariz com o dorso da mão direita e, segundos depois, passou a cumprimentar uma idosa e outros apoiadores.

O presidente Jair Bolsonaro passa o braço no nariz e depois cumprimenta apoiadores em Brasília - Reprodução/TV Globo

Essa não foi a primeira vez que Bolsonaro ignorou a pandemia. No mês passado, por exemplo, em meio a um protesto pró-governo, ele participou dos atos, tocou simpatizantes e manuseou o celular de alguns apoiadores para fazer selfies."Isso não tem preço", disse, à época, em suas redes sociais.

Em outra ocasião, fez um tour por diferentes pontos do comércio de Brasília, o que gerou aglomeração de pessoas no momento em que a OMS (Organização Mundial da Saúde) e o próprio Ministério da Saúde recomendam isolamento social para evitar o contágio do novo coronavírus. Bolsonaro naquele dia falou com funcionários de supermercados e padarias e com vendedores autônomos.

Nesta sexta-feira, Bolsonaro deixou o Palácio da Alvorada por volta das 9h15 e, acompanhado pelo ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, foi ao HFA (Hospital das Forças Armadas) para uma visita ao corpo clínico da unidade.

Em seguida, o presidente foi a uma farmácia no Sudoeste, bairro de classe média alta de Brasília. Não foi possível identificar o produto comprado por Bolsonaro, que fez fotos com algumas pessoas e acenou para moradores dos apartamentos que ficam em cima do comércio.”

Trata-se de uma desmoralização à população e às determinações emanadas pelas autoridades públicas no Brasil no sentido de evitar a propagação desse triste mal, a covid-19, que já matou mais de mil pessoas no Brasil e assolou mais de 1,5 milhões de pessoas no mundo, numa pandemia que é o maior desafio de uma geração.

O comportamento do presidente Bolsonaro, ao sair às ruas em Brasília, é acintoso, atitude que não pode ser vista como normal. Por causa desse comportamento, nossa política de isolamento social está começando a afrouxar, a ser rompida por grupos incentivados pelo presidente.

O presidente passa para a população brasileira a ideia de que todo esse esforço que está sendo feito a partir do próprio Ministério da Saúde não é um esforço que deva ser levado com tanta seriedade.

No momento em que ele participa desses eventos, interage com outras pessoas, e se há uma determinação de isolamento dele, e, portanto, se ele está ali dentro daquelas hipóteses da recente lei que foi aprovada com as medidas para o coronavírus, salvo melhor juízo, no artigo 3º da lei, em tese, ele não poderia de forma alguma ter essa interação.

Dir-se-á que o presidente da República, assim como qualquer cidadão tem o ir e vir. Ora, diante de uma pandemia e de determinações emanadas de autoridades, por decreto, o que se aplica é o princípio do superior interesse público. A saúde da população, sua vida, está em primeiro lugar.

O presidente da República será responsabilizado pessoalmente pelo aumento das mortes. Não é possível ter um presidente que estimula a população a se arriscar numa pandemia.

Para o caso deve ser investigado se há crime de responsabilidade contra a probidade na administração.

Para tanto, tem-se o artigo 9º, inciso 7 da lei de crimes de responsabilidade, que trata de um tipo misto de delitos, de cunho político-criminal:

7 - proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo.

Caberá à classe política, ouvida a sociedade, a solução para o caso apontado.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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