O presente artigo nasce de uma preocupação efetiva diante do imobilismo do Estado Brasileiro quando do início da disseminação do vírus SARS-COV-2 e da doença COVID-19 em todo o globo. Como é de conhecimento geral, o princípio da precaução tem origem na política ambiental, em especial é formalizado juridicamente na Constituição Federal de 1988 e na Carta resultante da Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, realizada no município do Rio de Janeiro de 1992.
Ainda pouco respeitado em nosso país, tal princípio impõe a adoção de medidas de controle em benefício da sociedade quando da existência de rico ambiental e à vida em face da incerteza de fenômenos e ações que afetam o meio ambiente. Embora em a regra seja comumente associada às ameaças resultantes de novas tecnologias, a sua aplicação deve ser observada em toda a situação de risco e de incerteza social, o que inclui, inclusive, epidemias e pandemias.
O uso do princípio da precaução diante de situações de comoção social global também é uma garantia ao Estado de Direito e à democracia, impondo ao Governos agirem de forma eficiente evitando medidas extremas que possam resultar em grave violação de direitos fundamentais, como ocorre nos exemplos do “estado de defesa” e “estado de sítio”, instrumentos jurídicos estes que incompatíveis com o enfrentamento de crise ambientais agudas ou pandemias.
O presente trabalho será dividido em duas partes. No primeiro capítulo é realizada uma discussão sobre a sociedade de risco, apresentado o cenário atual da grave crise global resultante da pandemia de COVID-19 e a caracterização desta pandemia como uma crise ambiental. Na segunda é apresentada uma discussão sobre o princípio da precaução, sua origem, abrangência, a sua vinculação aos fenômenos sanitários, bem como a sua imperatividade em situações de comoção ou de grave risco social e à vida.
1 A Sociedade de Risco e a Natureza Ambiental das Pandemias
De acordo com Ulrich Beck (2010, p. 98), no final do século XX a humanidade acompanhou uma alteração nas relações entre a sociedade e a natureza sem precedentes na história. Adverte para o “fim da contraposição entre natureza e sociedade”, algo que havia orientado toda a dinâmica evolutivo da modernidade instruída pelo pensamento filosófico cartesiano. No seu entendimento, as teorias sociais do século XIX conceberam a natureza como algo predeterminado, que poderia ser subjugado diante da nova racionalidade erigida com o Iluminismo. Entretanto, a evolução desencadeada com o aumento dos processos produtivos e do industrialismo demonstrou a fragilidade desta tese.
A “Sociedade de Risco”, desta forma, na qual a vida como um todo se apresenta ameaçada pelo modelo produtivo vigente é um efeito colateral da racionalidade moderna, uma consequência não intencional, na qual “danos às condições naturais da vida convertem-se em ameaças globais para as pessoas, em termos medicinais, sociais e econômicos – com desafios inteiramente novos para as instituições sociais e políticas da altamente industrializada sociedade global” (BECK, 2010, p. 98-99).
De acordo com Goldim (1997), a utilização do conceito de risco já estava presente no Talmud judaico entre 200 e 550 dC, mas a moderna compreensão foi introduzida por Blaise Pascal, no século XVII, quando a potencialidade de dano passou a ser categorizada para objetos coletivos, em especial para situações incertas e desconhecidas.
Por outro lado, como bem adverte Ulrich Beck (2010, p. 99), tal definição ainda estava alicerçada na contraposição entre sociedade humana e natureza, uma das características próprias da modernidade industrial que acompanhou a revolução científica. O risco era visto como algo alheio ao processo de desenvolvimento humano, como uma consequência do mundo natural que poderia ser dominada pelo simples avanço do conhecimento científico. No entanto, como o próprio o próprio autor ressalta, trata-se de uma concepção equivocada, na medida em que o natural e o social estão profundamente imbricados, entrelaçados ou, nas palavras de Beck, “natureza é sociedade, sociedade (também) é natureza”.
Desta forma, os problemas ambientais não apenas são o resultado de processos naturais alheios à ação humana, seja na sua origem ou no seu resultado. São problemas do ser humano, “de sua história, de suas condições de vida, de sua relação com o mundo e com a realidade, de sua constituição econômica, social e política” (BECK, 2010, P. 99). Muito dos problemas que hoje se apresentam como incontroláveis ou de difícil controle, como as mudanças climáticas, por exemplo, são resultados diretos das escolhas processadas pelos indivíduos nas suas mais diversas microesferas de relação.
Um exemplo claro do impacto da ação humana na natureza é o crescimento substancial das epidemias com potencial pandêmico. O Ebola (ebolavírus), por exemplo, foi identificado em 1976, na região do Rio Congo. Apresentou outros surtos intermediários, mas entre 2013 e 2016 atingiu vários países da África Ocidental (Guiné, Serra da Leoa e Libéria), resultando em cerca de 28 mil casos confirmados e mais de 11 mil óbitos. As suas cinco espécies apresentam elevado índice de mortalidade, variando entre 25 e 80% dos infectados. Antes disto dois tipos de doenças causadas por coronavírus, a síndrome respiratória aguda – SARS (Sars-COV, 2002-2004) e síndrome respiratória do Oriente Médio – MERS (Mers-Cov, 2011-2014), também se apresentaram com elevado potencial de contaminação e mortalidade. No caso da SARS, que atingiu diversos países, estimam-se 8 mil registros e 800 mortes (taxa de mortalidade de 10%). Já a MERS ficou restrita aos países do norte da África e do Oriente Médio, relatando cerca de 2 mil infectados e mortalidade de 36%. Além destes casos, o mundo enfrentou a primeira pandemia no século XXI no ano de 2009, com a disseminação do vírus influenza H1N1 que, apesar da facilidade de contaminação, apresenta uma taxa de mortalidade muito inferior à 1% (0,002%, para ser exato)i e, diferente da COVID-19, teve o seu combate facilitado por encontrar um grupo de sobreviventes de um surto anterior, em 1968, e de vacinas conhecidas para o combate do vírus influenza.
Além das doenças acima, há um reservatório latente de doenças com elevado potencial de contaminação que ainda não ultrapassaram fronteiras regionais, como a Zika (que está associada a um vetor, diferente das doenças acima), a Febre do Vale Rift, a Febre do Nilo Ocidental, a Febre de Lassa, além das variações aviárias do influenza (que deu origem à pandemia de Gripe Espanhola). O que demonstra a necessidade da adoção de mecanismos adequados de controle de doenças. Somam-se a estas vírus que foram por anos congelados em regiões remotas do globo, como a varíola na Sibéria e no Alasca e que em razão das mudanças climáticas podem encontrar ambiente adequado para o seu retorno.
Um elemento que deve ser considerado para análise do crescimento de doenças com elevada mortalidade e potencial pandêmico é a sua relação direta com o modelo de desenvolvimento e a destruição da natureza. De acordo com Osterhaus (2016), até meados de 1900, mais da metade das doenças que afetavam a humanidade eram originadas em doenças infeccionais, quadro que mudou com a implementação de programas de saúde pública e a introdução das vacinas, dentre outros medicamentos de uso clínico desenvolvidos pela ciência. Foi arguida, inclusive, a possibilidade de controle definitivo destas doenças, o que se mostrou inverídico mais adiante.
Ocorre que uma mistura complexa de fatores ambientais permitiu a migração de doenças cujos patógenas eram “hospedados” em animais que sofreram mutações e passaram a contaminar em outras espécies animais, inclusive humanos, e “isso abriu caminho para a disseminação sem precedentes de infecções em humanos e animais, com consequências dramáticas para a saúde pública e animal, bem-estar animal, suprimento de alimentos, economias e biodiversidade” (OSTERHAUS, 2016, p.4, tradução livre).
De acordo com o Relatório da FAO “World Livestock 2013 – Changing disease landscapes”, cerca de 70% das novas doenças que infectaram a humanidade nas últimas décadas têm origem animal, assim como se observa nos casos de coronavirus relatados acima. As doenças se espalham por meio das cadeias de produção e comercialização de produtos e insumos da agricultura e de abastecimento de alimentos.
Alguns fatores, dentre outros, podem ser indicados como impulsionadores deste processo:
a) a destruição de habitats, por meio da expansão contínua das fronteiras agrícolas em áreas que antes eram ocupadas por florestas e vegetação nativa.
b) o crescimento gigantesco das atividades pecuárias e a expansão de pastagens sobre áreas de florestas, permitindo a aproximação do gado com animais selvagens e em consequência a troca de doenças doenças e outras formas de contaminação.
c) o aumento no número de animais criando em confinamento para acelerar a produção, além da utilização de antibióticos, alimentos e insumos químicos, permitindo que os patógenos aumentem a resistência aos medicamentos diretamente nos seus “hospedeiros naturais”, antes de migrarem para o “corpo humano”.
d) o uso intensivo de agrotóxicos na produção agrícola, o que promove a destruição da biodiversidade, o desequilíbrio ambiental, a quebra das cadeias naturais de controle populacional de espécies e a migração de patógenos para novos hospedeiros.
e) a disseminação de produtos químicos, medicamentos, antibióticos e novos patógenos nos efluentes agropecuários diretamente no ambiente, especialmente nos recursos hídricos.
O biólogo e fisiologista estadunidense Jared Diamond (2012) destaca que a humanidade passou a conviver com patógenos com maior intensidade desde o momento em que os seres humanos abandonaram a condição de caçadores e coletores convertendo-se em agricultores e pecuaristas. As doenças virais, especialmente, são o resultado do processo de criação em escala de animais em ambientes confinados, o que permitiu a mutação e a migração de doenças dos seus antigos hospedeiros animais para os humanos. Com o afastamento das populações em territórios distintos, aquelas que tiveram maior contato com os patógenos adquiriram maior resistência ao longo do tempo. Entretanto, quando ocorreu a aproximação entre populações não resistentes com aquelas que carregavam patógenos para os quais desenvolveram resistência adquirida ao longo da história, o resultado prático foi uma tragédia, como no genocídio de indígenas durante a colonização das Américas pela Europa em face da disseminação de doenças como a varíola.
Atualmente, embora exista uma maior produção de medicamentos, sistemas de saúde pública em diversos países e sistemas de compilação científica de dados, os mecanismos de transmissão de doenças são muito mais céleres. O vírus da varíola levou milhares de anos para migrar da Eurásia para as Américas, o que só ocorreu em virtude das grandes navegações. A sua disseminação foi rápida para os parâmetros dos séculos XV e XVI, ou seja, alguns anos ou décadas. No momento atual, China e Estados Unidos, com grande distância geográfica, manifestaram registros do vírus SARS-Cov-2, responsável pela doença COVID-19, praticamente na mesma época, com diferença de alguns dias entre os meses de dezembro de 2019 e janeiro de 2020. Isto ocorreu por quais motivos? Maior tráfego de pessoas em viagens intercontinentais, circulação mais constante de mercadorias, ou a simples troca de dinheiro em moeda ou papel. Lembrar que o SARS-Cov-2 pode sobreviver, conforme divulgado pela OMS, até 9 dias no ambiente atmosférico em contato com o papel. É por esta razão que as medidas de controle para a disseminação de doenças devem garantir regras de prevenção mais eficientes, sendo a observância do princípio da precaução uma medida imperativa.
2 A Imperatividade do Princípio da Precaução Em Crises Sanitárias
O princípio da precaução encontra-se presente de forma direta ou subentendida em diversos diplomas do sistema jurídico brasileiro. Todavia, o seu alicerce principal está inscrito no Princípio 15 da Declaração do Rio de Janeiro, assinada na Conferência das Nações sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada na referida cidade brasileira em 1992: De acordo com a esta norma:
Princípio 15
De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com as suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental. (grifamos)
Embora inscrito em documentos internacionais, conforme destaca José Rubens Morato Leite (2011, p. 196), a origem do princípio encontra-se na jurisprudência alemã, em meados da década de 1970, sendo posteriormente positivado em normas legais. Também é com base no estdo desta jurisprudencia que o mesmo autor ressalta que o princípio possui duas funções, uma “material”, quando permite conservar bens socialmente relevantes diante de situações “aparentemente distantes”, e outra “instrumental”, que instrui “o arsenal de medidas técnicas e jurídicas pertinentes”.
Apesar da sua relevância como instrumento estrutural do direto ambiental, alguns autores como Celso Antônio Pacheco Fiorillo (2012), atribuem ao princípio da precaução o caráter de soft law, meramente programática, generalista e consuetudinária. Tal perspectiva, entretanto, não é majoritária, nem uniforme. A maioria dos autores, como José Joaquim Gomes Canotilho (2011), Antônio Herman Benjamin (2011) e o próprio Morato Leite, respeitadas as matrizes jurídicas e a devida ponderação entre os diversos princípios, sustentam a imperatividade do princípio da precaução. Benjamin vai mais longe e ressalta que o princípio da precaução engloba todo o sistema jurídico e não apenas o Capítulo da Constituição Federal de 1988 destinado à tutela ambiental e o seu art. 225.
Esta polêmica, entretanto, não se sustenta no mundo prático do direito exatamente porque parte de um erro substancial que é a confusão entre norma e enunciado normativo. Como bem adverte Humberto Ávila (2012, p. 33), “normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática do texto normativo”. Tal compreensão aproxima-se do entendimento exarado por Robert Alexy (2012, p. 54), segundo a qual “a mesma norma pode ser expressa por diferentes enunciados normativos”. Desta forma, é possível concluir como Ávila (2012, p. 33) que “os dispositivos se constituem no objeto da interpretação, e as normas nos seus resultados”.
Na verdade, a grande dificuldade observada na interpretação do princípio da precaução é o fato deste não se apresentar de forma expressa no texto constitucional brasileiro, o que se soma à redação aparentemente aberta do dispositivo da Declaração do Rio de Janeiro e de outras normas internacionais, o que limite uma leitura meramente exegética da norma. Ademais, o princípio da precaução não é uma disposição constitutiva de direitos fundamentais, mas um instrumento operativo para que estes direitos, em especial à vida, à saúde, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, sejam protegidos. Também não protege apenas direitos imediatos dos cidadãos contemporâneos, mas é uma norma que visa a proteção intergeracional, ou seja, muitas medidas de precaução visam evitar que as futuras gerações sofram os impactos de ação humanas que degradem o ambiente ou coloquem em risco à vida e saúde, como no exemplo do lançamento e depósito inadequado de resíduos tóxicos/nucleares.
Desta forma, o princípio da precaução garante a efetividade de direitos e garantias constitucionais expressas, como a “preservação dos processos ecológicos essenciais, de espécies e ecossistemas” (art. 225, § 1º, I, CF/1988), a “diversidade e a integridade do patrimônio genético” (idem, inciso II), o “controle de métodos e técnicas que coloquem em risco a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente” (inciso V), a “proteção da fauna e da flora” (idem, VII) e o próprio direito ao “meio ambiente ecologicamente equilibrado” inscrito no caput do art. 225 da CF/1988. A educação ambiental e o estudo de impacto ambiental, que também fazem parte das disposições do mesmo parágrafo do art. 225, são regras que disciplinam instrumentos para a efetivação das demais garantias constitucionais. É por este motivo que o princípio da precaução, além de instrumental, também possui uma dimensão material, como constitutivo de direitos e garantias.
A atribuição de característica instrumental ao princípio da precaução, não afasta a compreensão de Morato Leite (2011, p. 176) sobre o papel estruturante que esta norma exerce no campo do direito ambiental, compondo aquilo que ele chama de “núcleo essencial” deste ramo jurídico, em conjunto com os princípios da responsabilidade, da prevenção e do poluidor-pagador.
Para melhor compreender o núcleo normativo do princípio da precaução é necessário analisar cada uma das disposições presentes no princípio 15 da Declaração do Rio de Janeiro:
a) o princípio “deve ser amplamente observado pelos Estados”, ou seja, não é uma determinação condicional ou uma faculdade, mas uma regra imperativa, de observância obrigatória.
b) quando a norma coloca esta imperatividade com a condição “de acordo com as suas capacidades” não está dizendo que a observância do princípio é algo facultativo, mas reconhecendo que muitos países na época, 1992, não possuíam estrutura jurídica ou técnica capaz de aplicar o princípio da precaução de forma adequada. Aqui, de fato, existe um aspecto programático que é a determinação que os estados-membros das Nações Unidas buscassem a organização dos seus mecanismos de gestão de forma que estes permitissem a correta aplicação do princípio.
c) “ameaça de danos sérios e irreversíveis”, consiste na compreensão de que não observância do princípio poderá implicar em problemas drásticos cuja reparação se tornará impossível caso não existe precaução, como a perda de vidas humanas, a destruição da biodiversidade ou até a destruição de sistemas produtivos que alimentam populações inteiras (ver a regra da letra “d”, do art. 14, da Convenção da Diversidade Biológica).
d) “ausência de absolta certeza científica” - neste ponto o princípio da precaução se diferencia da mera prevenção. Para que esta se efetive de forma controlada, é necessário conhecimento dos fatos e danos potenciais, o que permite a implementação de medidas de controle. A precaução, por outro lado, trabalha exatamente com a incapacidade da própria ciência oferecer medidas de segurança para a sociedade, seja em face do desconhecimento real das potencialidades de dano de eventual fato ou medida, seja em virtude do desconhecimento do impacto da introdução de determinado elemento em novos ambientes. Neste caso, a COVID-19 é um exemplo típico de problema socioambiental onde ainda existe elevada incerteza sobre os seus impactos potenciais ou definitivos. Em alguns locais, mesmo com medidas de controle, o vírus tem apresentado maior letalidade, além disto, nos estudos iniciais indicavam que a sua capacidade média de disseminação do vírus por pessoas contaminada era 2,7 pessoas por infectado, hoje sabe-se que este índice é bem maior, podendo chegar a 6 pessoas por infectado, o que permitiria a dobra do número de vítimas em apenas 2 ou 3 dias (SOBRINHO, 2020).
e) “não deve postegar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação” – o princípio da precaução exige ação imediata dos agentes públicos e privados para conter os danos reais ou potenciais. Esta é uma das características principais do princípio que consiste em evitar os danos, sendo a demora um fator que pode resultar em graves prejuízos para a sociedade ou para a natureza como um todo. A exigência de medidas economicamente viáveis é uma regra de ponderação, na medida em que um surto localizado de uma doença, por exemplo, não pode ser tratado da mesma forma do que uma pandemia. Além de doenças, esta regra vale para projetos econômicos, tecnologias e qualquer ação humana ou fato derivado de ação humana cujos resultados potenciais podem promover danos graves e irreversíveis, como a morte de milhares de pessoas ou de espéciesii.
Ulrich Beck (2010) apresenta duas tipologias de risco, a concreta ou potencial, previsível, que compreende os riscos induzidos pela sociedade industrial moderna e os riscos abstratos, imprevisíveis, típicos da contemporaneidade, chamada por ele de “sociedade de risco”. Aos riscos concretos, que são enfrentáveis por meio de ações planejadas e pela repetição de estratégias de controle já conhecidas, aplica-se o chamado princípio da prevenção. O princípio da precaução, por seu turno, é aplicável às situações de difícil visualização ou previsão, derivadas de incertezas, exercendo uma função inibitória, antecipatória, cautelar, antes da ocorrência dos danos potencialmente irreparáveis e irreversíveis (LEITE, 2011, p. 194), como no caso recente da pandemia de COVID-19, uma doença cujos instrumentos de controle efetivo ainda são desconhecidos.
Além disto, o princípio da precaução, pela sua amplitude, também fundamenta ações de prevenção, derivadas da repetição de medidas de controle que já apresentaram resultados em outras oportunidades, como o distanciamento social, que foi estratégia utilizada com resultados positivos para reduzir a mortalidade da pandemia de influenza no início do XX e replicada para enfrentamento da COVID19, de forma a reduzir o colapso dos sistemas de saúde pública dos países e um caos ainda maior na atividade econômica. Aliás, como bem adverte eu economista Vasco Gonçalves (2013, p. 123), “as situações de precaução correspondem geralmente a cenários de risco nos quais um elemento da cadeia causal que vai do perigo aos efeitos finais é incerto, no sentido em que a relação de causa-efeito sobre a qual se basearia esse elemento não pode ser estabelecida ou rejeitada”, ou seja, são situações que podem abrigar multicausalidades e que no conjunto resultam em incertezas e que colocam em risco o funcionamento da sociedade e a vida.
Um último aspecto a ser observado quanto à aplicação do princípio da precaução é a predominância da regra mais protetiva em favor do meio ambiente ou da vida. Desta forma, em sistemas federativos, onde vários entes subnacionais podem regrar a adoção de medidas de controle, jamais um Município ou Estado poderá adotar medida menos protetiva. Assim, se a União determina isolamento social como medida de controle para o combate a uma pandemia, por exemplo, não pode o Município ou o Estado permitir o livre funcionamento das atividades econômicas. Todavia, se a União ou o Estado fixarem um número maior de atividades que podem ser mantidas em situação de risco, com base na predominância do interesse local o Município pode suspender o funcionamento desta atividade para evitar a proliferação de danos à coletividade. Mesmo com a existência de um sistema de competências concorrentes, como o brasileiro, a pluralidade de entes com competência normativa não pode servir como justificativa para impedir a ação célere e eficiente pelos órgãos públicos.
Considerações Finais
A aplicação do princípio da precaução ainda é objeto de grandes controvérsias jurídicas desde que foi aprovado na Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento. Mas apesar da suposta vagueza da redação do item 15 do referido diploma, a sua aplicabilidade é imperativa, mediante análise sistemática do ordenamento jurídico pátrio e do internacional, não havendo justificativa para a sua negação para situações onde o risco para a vida ou o meio ambiente seja iminente.
Embora o princípio da precaução tenha por origem a doutrina, jurisprudência e normativos da esfera ambiental, a sua aplicação compreende o campo de domínio da saúde pública, que é parte integrante dos sistemas de proteção do meio ambiente. As crises resultantes de pandemias, dada a sua complexidade e elevado grau de incerteza que lhes segue, são situações típicas onde este princípio deve ser utilizado, de forma a evitar danos irreparáveis, como a morte de milhares de pessoas, ou de difícil reparação, como um elevado número de doentes colapsando os sistemas públicos de saúde e a própria atividade econômica.
Por ser um princípio “estruturante” e “operativo” para a proteção de direitos fundamentais, como o direito à vida, à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a sua aplicação deve ser observada sempre que um destes bens se demonstrar ameaçado, respeitadas as orientações predominantes e validas pelo mundo científico. Logo, não é um princípio cuja aplicação esteja limitada por meras opiniões políticas e pessoais de governantes, a base da sua utilização é o referencial técnico e científico dominante, em face dos riscos decorrentes das incertezas quanto as consequências possíveis.
O princípio da precaução também não admite comportamento desidioso ou omisso. A ausência de capacidade operacional ou normativa não é motivação suficiente para deixar de aplicá-lo. Aliás, o próprio princípio é uma proteção para eventuais fragilidades técnicas dos órgãos públicos. Para tanto deve ser observada a lógica da ponderação, respeitado o grau de evolução científica da sociedade e, principalmente, a importância dos valores que estão sendo protegidos, especialmente do bem maior que é a vida.
Em situações de conflito de competências, quando mais de um órgão de diferentes esferas de poder interfira sobre as medidas de precaução, deve sempre prevalecer a norma mais protetiva e os bens jurídicos de maior relevância e que fundamentaram a institucionalização do princípio.
REFERÊNCIAS
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iDe Acordo com o Centro Europeu de Controle de Doenças (CEPCD), a pandemia de H1N1, entre 2009 e 2010, relatou o registro de 6.724.149 casos da doença, resultando em 19.624 mortes confirmadas. Já a COVID-19, de forma comparativa, apenas entre janeiro e abril de 2020, já notificou 1.583.049 casos oficiais, com 94.573 mortos (ou seja, quase 5 vezes maior do que toda a pandemia da H1N1). A própria OMS entende que em face da subnotificação em vários países, como no Brasil, o número de vítimas da COVID19 seja de 10 à 14 vezes superior. Este volume de subnotificação também não existiu na pandemia de H1N1.
iiMuito tem se discutido no Brasil sobre a utilização do Distanciamento Social como estratégia de controle da doença em face dos riscos econômicos potenciais. Trata-se, na verdade, de uma polêmica eivada de equívocos. Primeiro, o distanciamento social é uma medida intermediária entre o distanciamento seletivo e o bloqueio total (lockdown), permitindo que determinados setores da indústria não essenciais continuem funcionando. No caso de bloqueio total somente os serviços de saúde e os serviços essenciais continuariam funcionando. Segundo, eventuais perdas econômicas, apesar dos apelos de determinadas categorias empresariais (especialmente do varejo), são recuperáveis a médio prazo. Entretanto, as vidas que se perdem com uma pandemia, que podem chegar às milhares em sistemas de controle mais brando, são irrecuperáveis. Durante a pandemia de influenza no início do século XX (Gripe Espanhola), as cidades que optaram por isolamento social se recuperaram das perdas econômicas mais rapidamente, já as cidades que mantiveram as suas atividades normais entraram em colapso. A perda econômica em situações de pandemia é inevitável, mas será maior quanto mais infectados e mortos forem contabilizados. Além disto, ao contrário da H1N1, o vírus da COVID-19 não possui nenhuma forma de vacina capaz de diminuir a sua incidência, nem medicamentos seguros que possam reduzir as perdas. Alguns medicamentos testados, como a hidroxidocloroquina, possuem resultados adversos que simplesmente substituem o tipo de danos, o que pode aumentar os prejuízos econômicos e sociais, elevando o número de óbitos e de pessoas com comorbidades permanentes não ocasionados pela COVID-19, mas pelo uso inadequado do medicamento, o que impactaria os sistemas de proteção social. Logo, a alternativa mais razoável dentro da lógica da ponderação, ainda é o distanciamento social como tem sido observado em diversos estados e cidades do Brasil e do mundo.