Imunidade tributária religiosa.

Uma análise à luz da separação entre Estado e Igreja

13/04/2020 às 13:18
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Análise da imunidade tributária religiosa com base na separação do Estado e Igreja, tendo como referência a laicidade garantida na Constituição Federal.

Introito

O Estado necessita de recursos financeiros para o desenvolvimento de suas atividades, por isso, é primordial a cobrança de tributos. A relação obrigacional tributária se inicia com a ocorrência do fato jurídico, conhecido como “fato gerador”, surgindo, como consequência, a obrigação tributária. Após, o crédito tributário deve ser constituído pelo lançamento.

Existem situações jurídicas nas quais a Constituição Federal (CF) proibiu o Estado de cobrar tributos, são as seguintes possibilidades: imunidade, isenção, anistia e remissão.

Nessa linha, pelo fenômeno da imunidade tributária, entende-se a não ocorrência do fato gerador, trata-se da não incidência. Qualquer possibilidade de fazer incidir tributo sobre pessoas ou bens neste campo, será considerada nula de pleno direito (BORBA, 2015).

O objetivo das imunidades tributárias é garantir direitos sociais e fundamentais a todos, seja através da liberdade religiosa, democracia política, liberdade de expressão, acesso à cultura, entre outros.

Vejamos o seguinte ensinamento de Ives Gandra Martins (1988, p. 32):

A imunidade constitui o instrumento que o constituinte considerou fundamental para, de um lado, manter a democracia, a liberdade de expressão e a ação dos cidadãos e, por outro lado, atrair os cidadãos nas suas atividades essenciais em que, muitas vezes, o próprio Estado atua mal ou insuficientemente, como na educação, na assistência social etc.

Sendo assim, a liberdade de expressão representa um dos pilares do Estado Democrático de Direito, visto que é direito fundamental e está inter-relacionada à dignidade do indivíduo. Ao garantir imunidade religiosa, o Estado visou garantir essa importante forma de manifestação.

A relação estabelecida aqui é resultado da separação entre o Estado e crenças (em sentido amplo), consequência da divisão do Estado-Igreja.


Da união e separação do Estado-Igreja no mundo

Em âmbito mundial, as práticas culturais (termo mais extensivo para “religião”) e o Estado constituíam uma instituição homogênea, o faraó egípcio, antes de ser chefe de Estado, era tratado como uma divindade, ele era a própria religião e Estado. Essas práticas dominavam o Estado, pois elas acabavam por afetar a escolha dos representantes.

Posteriormente, já na Europa medieval e início da Idade Moderna, a igreja era a representação do divino, havia uma singela separação entre igreja e Estado.

Em meio a diversas formas de professar a fé/crença, a Reforma Protestante do século XVI começou como um apelo à liberdade do regime medieval das "duas espadas" - liberdade da igreja da tirania do papa, liberdade da consciência individual, liberdade para funcionários do estado do poder e privilégio da igreja.

"Liberdade do cristão" foi o grito de guerra da Reforma, com a publicação de Martinho Lutero (1483-1546) das Noventa e Cinco Teses em 1517 e a queima dos livros de direito canônico em 1520, os primeiros protestantes denunciaram as leis da igreja e exigiram reformas radicais da igreja e do estado sobre a força da Bíblia.

Na França do Antigo Regime, a sociedade estava dividida em ordens, que contavam ou não com privilégios. Na frente, estava o clero, representado pela Igreja Católica, a única que tinha o direito de ensinar religião, sendo muito rica em terras e rendas.

No fim, estavam os camponeses que faziam parte do Terceiro Estado, basicamente responsáveis pelos tributos, mal repartidos e cobrados de forma injusta, incluindo a visão do dízimo, tributo distinto aplicado às colheitas para despesas com cultos pelo clero, com frequência era desviado e, às vezes, os padres não se beneficiavam dele (VOVELLE, 2007).

Após a Revolução Francesa, no século XVIII, existiram diversas demonstrações de descristianização, na verdade, há uma nova forma de praticar o cristianismo, por exemplo, em relação aos métodos contraceptivos, que resultou em uma baixa taxa de natalidade na segunda metade do século XVIII (SAYA, 2016).

Com isso, o homem passou a estar no centro de suas pesquisas e não mais priorizar o teocentrismo, filosofia utilizada na Idade Média.

Por teocentrismo, em linhas gerais, temos a uma visão hierárquica em que Deus é o centro e suas criaturas estão na periferia. O argumento teocêntrico sustenta a ideia de que um direito dado por Deus fornece uma base melhor para a ideia de direitos do que a ideia de criaturas individuais com direitos inerentes, como foi desenvolvido por Locke e outros no Iluminismo (FIALA, 2008).

Diferentemente, há o Renascimento. Ao dar mais enfoque no razão, temos uma representação do pensamento característico do Renascimento, aproximadamente entre o século XIV e o fim do século XVI. Com tal conceito, há um confronto de ideias entre o teocentrismo e o antropocentrismo, proposto pelo humanismo. O homem renascentista não espera por favores divinos, busca aperfeiçoar seu trabalho pessoal, usando suas habilidades e talentos com uma nova mentalidade.

Tais mudanças semeiam o caminho para alterações na política, costumes e hábitos. Encontramos o homem como o centro do universo (GOMES, 2014).


Da união e separação do Estado-Igreja no Brasil

No Brasil, a separação entre a Igreja e o Estado não ocorreu de forma abrupta, foi resultado de diversas mudanças históricas e políticas, propiciando a ideologia do Estado laico.

A ascensão do catolicismo no Brasil está relacionada à colonização, sobrepondo-se sobre as práticas culturais comuns (termo mais extensivo para “religião”) indígenas e africanas como sequela da dominação forçada e da catequização. Para os indígenas, a chegada dos portugueses representou uma verdadeira catástrofe, os padres andavam pelas aldeias como pajés, curando e profetizando (FAUSTO, 2006).

A preocupação em usar a língua para colonizar almas representou uma tentativa bem-sucedida de aproximar os jesuítas dos indígenas, que, além de ensinar a língua portuguesa, estariam salvando as suas almas através da religião.

Em momento posterior, na colonização holandesa, sob a regência de Maurício de Nassau, a liberdade religiosa era para todos. O período teve considerável atividade protestante no Nordeste, católicos eram livres para exercer seu culto e manter relações com a sede episcopal da Bahia, sinagogas e escolas hebraicas funcionavam no Recife e foram as primeiras da América (DEL PRIORE, 2010).

Posto isso, a separação entre Estado e igreja efetivada em 7 de janeiro de 1890, pelo Decreto nº 119-A, e constitucionalmente assegurada desde a Constituição de 1891. Até 1890, o catolicismo era a religião oficial do Estado e as demais religiões eram proibidas em decorrência do art. 5° da Constituição de 1824. O catolicismo era subvencionado pelo Estado e gozava de enormes privilégios (LIMA, 2001).


Da laicidade do Estado

Em todas as Constituições, nos respectivos preâmbulos, encontram-se menções invocando a proteção de Deus: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte [...] promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte [...]”. A explicação para tal é a religiosidade dos brasileiros, sendo um de seus traços característicos (HARADA, 2017), e, como visto, está presente desde a colonização.

Acerca do tema, a expressão “sob a proteção de Deus” foi alvo de discussão. Ateus, agnósticos e associações argumentaram, principalmente, pela laicidade do Estado e, assim, a "proteção de Deus" no preâmbulo da Constituição não estaria bem enquadrada.

Sobre a “proteção de Deus”, em 2002, o Supremo Tribunal Federal considerou improcedente a Ação Direita de Inconstitucionalidade - ADI 2076 do Partido Social Liberal – PSL, contra a Assembleia Legislativa do Acre, por omissão no preâmbulo da Constituição do Acre da expressão “sob a proteção de Deus”.

O partido alegou ofensa ao preâmbulo da Constituição Federal, que mantém a expressão. Para o PSL, a omissão na Constituição do Acre tornava o estado “o único no país privado de ficar sob a proteção de Deus”.

Entre os argumentos da decisão, o ministro Carlos Velloso explicitou que o preâmbulo constitucional não cria direitos e deveres e não contém norma jurídica, refletindo a posição ideológica do constituinte.

A discussão sobre a laicidade vai além, incluindo símbolos e objetos que retratam a presença do Cristianismo/Catolicismo no Brasil, especialmente, o Crucifixo exposto em repartições públicas, até mesmo em salas dos Tribunais.

Nessa perspectiva, em 2009, em sede de Ação Civil Pública nº 2009.61.00.017604-0, a Justiça Federal em São Paulo rejeitou o pedido do Ministério Público Federal - MPF para a retirada dos símbolos dos prédios públicos da União no Estado de São Paulo, entendendo que não ofendem a laicidade do estado nem de liberdade religiosa.

O MPF alegou, em apertada síntese, que quando o Estado exibe um símbolo religioso acaba por discriminar demais religiões professadas no Brasil, desrespeitando a Constituição Federal.

Na fundamentação do indeferimento, consta-se que a liberdade de crença, de culto e a tolerância religiosa foram aceitas graças ao Estado laico e não como oposição a ele. Em resumo, conforme a fundamentação, o Estado laico não deveria ser entendido como uma instituição anti-religiosa ou anti-clerical.

Posto isso, a liberdade religiosa não poderia ser causa de privilégios tributários, sendo assim, o conceito de estado laico exige o equilíbrio de duas concepções: o Estado não estabelece cultos ou igrejas ou embaraça seu funcionamento e o Estado não subvenciona cultos ou igrejas.


Da imunidade tributária religiosa

A priori, cabe-nos fazer um esclarecimento. A expressão constitucional “templos de qualquer culto” abrange não apenas o edifício onde se realiza a prática religiosa, mas também o próprio culto, sem qualquer diferença de ritos, e finalidades essenciais dos templos. Por essa razão, a expressão usada será “imunidade religiosa”, visto que é mais abrangente, para se referir a “imunidade tributária dos templos”.

É perceptível que, ao proibir os entes de instituir impostos sobre os templos de qualquer culto, o legislador constituinte originário expressou menos do que verdadeiramente deveria expressar, pois existe uma distinção entre o templo (prédio fisicamente considerado) e a entidade religiosa, que inclui as atividades suas inerentes.

Caso a imunidade fosse apenas referente ao templo, estaria impedida apenas a cobrança dos impostos que incidissem sobre a propriedade do imóvel, a saber, IPTU ou ITR. Contudo, seria permitida a cobrança, por exemplo, do imposto sobre renda de oferendas ou sobre serviços relativos à celebração de casamentos (ALEXANDRE, 2017).

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Dessa forma, a imunidade religiosa impossibilita que o Estado utilize o poder de tributar como meio de inibir o funcionamento de entidades religiosas. Destaca-se que o legislador constituinte originário proibiu apenas a instituição de impostos sobre os templos de qualquer culto (art. 150, VI, b, da CF), não abrangendo as demais espécies tributárias.

Sobre os impostos, o Supremo Tribunal entende que se um imóvel pertencente ao ente imune é alugado e está vinculado às finalidades essenciais, a imunidade não se perde.

Exige-se tão somente que os rendimentos obtidos com o aluguel do imóvel estejam revertidos para as finalidades essenciais da instituição. Sendo obedecida a regra, o imóvel está imune ao IPTU, assim como rendimentos advindos do aluguel em relação ao IR.

Nessa linha, é pacífico o entendimento do STF:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. IPTU. IMUNIDADE DE TEMPLOS. PRÉDIOS SEPARADOS DAQUELE EM QUE SE REALIZAM OS CULTOS. FUNCIONAMENTO E FINALIDADES ESSENCIAIS DA ENTIDADE. RECURSO PROTELATÓRIO. MULTA. AGRAVO IMPORVIDO. I - A imunidade prevista na Constituição que tem como destinatário os templos de qualquer culto deve abranger os imóveis relacionados com a finalidade e funcionamento da entidade religiosa. Precedentes. II - Recurso Protelatório. Aplicação de multa. III - Agravo regimental improvido.

(AI 690712 AgR, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 23/06/2009, DJe-152 DIVULG 13-08-2009 PUBLIC 14-08-2009 EMENT VOL-02369-13 PP-02739 RT v. 98, n. 890, 2009, p. 176-178) (Grifos nossos)

Tem-se aqui o mesmo raciocínio para qualquer instituição imune sujeita à necessidade de manutenção de patrimônio, renda e serviços vinculados a suas finalidades essenciais, por exemplo: assistência social sem fins lucrativos.

Por atividades essenciais, incluem-se os cemitérios, contanto que não sejam instituídos por particulares com clara finalidade lucrativa.

Posto isso, a imunidade religiosa está intimamente ligada ao direito de liberdade de culto (art. 5º, VI, da CF), visto que a imunidade é forma de manter tal direito, estando ambos garantidos por cláusula pétrea.


Conclusão

Separar a igreja do Estado, principalmente quanto à influência, exige extrema delicadeza, posto que, de alguma forma, a sociedade costumeiramente esteve ligada a algum tipo de pensamento religioso ou cultura religiosa.

Trata-se de formar um Estado que não ofenda ou reprima crenças, mas que, ao mesmo tempo, possa utilizar das práticas religiosas como fonte de princípios. Em outras palavras, temos o direito à vida claramente fundado em uma visão religiosa, provavelmente cristã, na qual a vida humana está acima.

Daí, na mesma linha, temos a criminalização do induzimento, instigação e auxílio ao suicídio (art. 122, CP) baseando-se, novamente, na religião. Ao passo que não é proibido o ato de se suicidar ou tentar se suicidar, pois o sujeito precisa estar vivo para ser punido e para quem não está com as faculdades mentais plenas, a prisão ou punição seria ainda mais degradante.

Posto isso, é notável a influência religiosa no Direito, até mesmo no Direito Tributário. A imunidade tributária é apenas mais uma constatação da união histórica da igreja com o Estado, estando presente no direito à liberdade de culto e, através da imunidade, na manutenção da instituição religiosa.

Ao não cobrar impostos, o Estado cria um pacto a fim de garantir a existência e evitar cobranças abusivas para que interesses divergentes não sejam alvo de repressão estatal, acabando por consolidar o “divórcio” entre religião e política.

A respeito do “divórcio”, é um ponto seriamente questionável, posto que existe apoio de líderes de igreja a candidatos a cargos políticos ou, inclusive, políticos eleitos, como Donald Trump, apenas para não citar casos brasileiros, e sem sequer falar sobre a bancada evangélica no Congresso Nacional.


Referências

ALEXANDRE, Ricardo. Direito tributário. 11. ed. rev. atual. e amp1. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017.

BORBA, Claudio. Direito tributário. 27° ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015.

DEL PRIORE, Mary. Uma breve história do Brasil / Mary del Priore, Renato Venancio. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. 12° ed., I. reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

FIALA, Andrew. Theocentrism and human rights: a critical argument. Disponível em: https://www.andrewfiala.com/wp-content/uploads/2013/03/RHRS_03_03_02-Fiala.pdf. Acesso em 08/04/2020.

GOMES, Adriana de Albuquerque. Freud e o humanismo renascentista: notas sobre as interpretações de Eric Fromm e Jacques Lacan. Revista Kínesis, ISSN: 2316-5464, Santa Maria, vol. VI, n° 11, jul. 2014. Disponível em: https://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/Kinesis/6_adrianagomes.pdf. Acesso em 10/04/2020.

HARADA, Kiyoshi. Direito financeiro e tributário. 26. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017.

LIMA, Fernando. Separação entre Igreja e Estado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/2320/separacao-entre-igreja-e-estado>. Acesso em: 08/04/2020.

MARTINS, Ives Gandra. Imunidades tributárias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.

Saya, Lara Scorsato. O CLIMA REVOLUCIONÁRIO NA FRANÇA DO SÉCULO XVIII: politização, descristianização e o impacto nas instituições sociais. Acessado em: 13/04/2020.

VOVELLE, Michel. A revolução francesa explicada à minha neta. Tradução: Fernando Santos. 1° ed. São Paulo: Editora UNESP, 2007.

Sobre a autora
Mirela Reis Caldas

Bacharel em Direito pela FICR/Pernambuco, pós-graduada em Direito Tributário Municipal pelo IAJUF. Advogada.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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