A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA EM SOCIEDADES PUNITIVISTAS

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Breves considerações a respeito da influência do punitivismo na efetivação da presunção de inocência

É uníssono entre os estudiosos do direito penal que as regras processuais penais são o termômetro da democracia de um estado. Não pode haver estado democrático com um processo penal inquisitorial, de mesma sorte, não é possível que haja um estado ditatorial com um processo penal democrático. No Brasil pós 88, consagrou-se um processo penal estritamente democrático, cujas regras vem se adequando às exigências constitucionais nos últimos 30 anos, todavia, as normas democráticas vem sendo mitigadas frente a um falacioso discurso de busca por justiça.

 

Em nosso país, nos últimos anos, o clamor popular para que o poder judiciário “faça justiça” tem culminado no recrudescimento de nossas normas processuais, sempre no sentido de mitigar os direitos do réu. A população passou a acreditar que uma sociedade segura se faz com prisões lotadas, condenações a penas longevas e réus respondendo processos em ergástulo. Todavia, numa sociedade democrática é necessário seguir pelo caminho contrário, defendendo, antes de mais nada e acima de tudo, a liberdade, que não deve ser extirpada sem justo motivo.

 

Compreendida a relação entre democracia e processo penal, observa-se que os pilares do processo penal democrático são a presunção de inocência e a ampla defesa. A presunção de inocência é um constructo relativamente novo pelo mundo, tendo sido positivada em grande parte em constituições pós ditatoriais. Foi o que aconteceu no Brasil, onde tal instituto foi trazido pela primeira vez em 1988, após a ditadura militar (em tempos de negacionismo epistêmico é necessário reforçar que houve uma ditadura em nosso país).

 

A consagração da presunção de inocência na Constituição Federal veio através do artigo 5º inciso LVII que preceitua: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Ocorre que a presunção vai muito além destas simples 13 palavras, as quais já se tenta negar efetividade. A presunção de inocência é um instituto jurídico tridimensional, se consubstanciando em três regras, sendo elas: regra de juízo, regra de prova e regra de tratamento. As quais passaremos a análise.

 

A regra de juízo que decorre da presunção de inocência é o famoso princípio in dubio pro reu, ou seja, o julgador, por presumir inocente o réu, só pode julgar em seu desfavor frente a comprovação inequívoca de sua culpa.

 

Impossível falar deste tema sem abordar o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, do qual o Brasil se tornou signatário em 2002, por meio do decreto 4.388. O artigo 66 do referido estatuto trata exclusivamente da presunção de inocência, e em seu tópico 3 determina que o juízo ao condenar deve formar sua convicção de culpa para além de qualquer dúvida razoável.

 

Tal regramento é a base da regra de juízo do processo penal democrático, não podendo qualquer órgão julgador condenar um réu sobre o qual paire dúvida de sua culpa. Neste ponto, reside crítica ao tribunal do júri, onde o réu pode ser condenado por 4 votos contra 3, estando evidente a dúvida do conselho de sentença a respeito da culpa ou inocência do réu. Infelizmente, não apenas nos juris populares se presencia condenações duvidosas.

 

O segundo regramento da presunção de inocência diz respeito à distribuição do ônus da prova, não podendo se admitir num processo penal democrático a simples regra de que ônus probatório incumbirá a quem fizer a alegação. Não se pode exigir do réu que comprove sua inocência, bastando para sua absolvição que padeça de comprovação a culpa.

 

Este é um dos grandes problemas do processo penal brasileiro, a investigação mais do que a elucidação do fato busca a formação de um juízo de culpa. Inverte-se o procedimento, não se partindo do crime para o criminoso, mas o contrário, primeiro se elege o criminoso e se faz uma investigação com vistas a instruir uma futura acusação.

 

Outro fato teratológico é que por diversas vezes para que seja condenado o réu basta que o órgão acusador demonstre a tipicidade, olvidando-se de provar os demais elementos do crime (ilicitude e culpabilidade).

 

Por fim, e em minha opinião onde reside a maior disparidade entre a realidade e o ideal, está a regra de tratamento, a presunção de inocência garante a todo aquele que se vê acusado de um fato criminoso o direito de ser tratado como inocente até que haja contra ele sentença condenatória irrecorrível.

 

Tal regra tem de ser respeitada de forma endoprocessual e exoprocessual, ou seja, não pode haver juízo prévio de condenação no curso do processo assim como não pode haver na sociedade como um todo. A regra de tratamento endoprocessual garante ao réu o direito de ser tratado respeitosamente e não ter limitados seus direitos ou extirpada a sua liberdade sem justo motivo.

 

Neste ponto reside a necessidade de não se decretar de forma indiscriminada a prisão preventiva, esta não pode ser utilizada como antecipação da penal, afinal, a constituição garante que culpa só se concretiza com o trânsito em julgado da sentença condenatória. Com a simples leitura deste preceito percebe-se a aberração jurídica que é a prisão após o julgamento de segunda instância como se pretendeu fazer no Brasil, mais um produto nefasto do punitivismo propagado em nosso país.

 

Chegou-se a um ponto de tal forma preocupante que foi debatido um projeto de lei para alterar o significado do trânsito em julgado no processo penal, para possibilitar o cumprimento antecipado da pena.

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No mesmo sentido, há ainda a regra de tratamento exoprocessual, cuja efetivação é bastante complexa. A sociedade civil, e em especial os veículos de mídia, não podem tratar aquele que se vê processado como se condenado fosse, a marginalização e o linchamento moral são resultados ipso facto da ação penal.

 

É preciso uma alteração cultural para alterar a compreensão de que aquele que é processado criminalmente é culpado, o processo é o momento da aferição da culpa, não sendo a denúncia um corolário da culpa inquestionável. E mais, uma absolvição judicial sucedida por uma condenação midiática e da opinião popular ainda representa um dano quase irreparável ao réu.

 

Isto posto, além de combater os ataques desnecessários a pessoa do indiciado e do réu, é preciso que haja responsabilidade do órgão acusatório ao proceder a denúncia ou queixa, se verificando de forma séria a existência de justa causa para instauração do processo, de modo a evitar constrangimentos desnecessários aquele que não tenha parte no fato criminoso.

 

Neste ínterim, é necessário também que haja um juízo efetivo de recebimento da denúncia, não podendo ser este, apenas um ato pró-forma, como defende o Supremo Tribunal Federal ao dizer que o recebimento da exordial acusatória pode prescindir de fundamentação detalhada.

 

Compreendida a dimensão normativa da presunção de inocência resta o ensinamento de que a relativização das regras do processo democrático é a relativização da própria democracia. Defender que sejam extirpadas do réu as garantias do devido processo legal é, consequentemente, abrir mão destas, direitos e garantias fundamentais não possui destinatário determinado, devem servir a todos.

 

Quando a sociedade, movida pelo desejo de ver punidos certos criminosos admite um processo penal eivado de nulidades, ilicitudes e com inobservância dos aspectos mais básicos como a presunção de inocência abrem-se as portas para a instauração de condutas ditatoriais.

Sobre o autor
Vinícius Lima Diniz Barbosa Romero

Advogado, graduado pela Universidade Federal do Maranhão, atuante na comarca de São Domingos e adjacências.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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