PODE A OPERADORA DE PLANO DE SAÚDE RESCINDIR O CONTRATO DURANTE A PANDEMIA DO COVID-19 POR INADIMPLEMENTO DO BENEFICIÁRIO?
A pergunta deve estar a ronda de todos aqueles que possuem plano de saúde e vêm a si próprios ou seus dependentes na iminência de necessitar de cuidados médico-hospitalares em razão da contaminação do coronavírus.
A ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar – que regula a atividade das operadoras de plano de saúde no Brasil, provocada por ofício expedido pelo Ministério Público Federal (Ofício nº 43/2020/AC/3CCR), primeiramente recomendou que a prestação de serviço não fosse suspensa durante a pandemia, ainda que motivada por inadimplência do usuário e, mais recentemente, em reunião ocorrida em 8 de abril de 2020, decidiu conceder benefícios às operadoras que firmassem termo de compromisso visando “proteger os beneficiários de planos de saúde”.
A Agência resolveu oferecer vantagens referentemente a utilização de reserva técnica na monta de quinze milhões de Reais às operadoras em troca de medidas que beneficiem os usuários instituídas em um termo de responsabilidade, entre as quais a renegociação de contratos e a preservação da “assistência aos beneficiários dos contratos individuais e familiares, coletivos por adesão e coletivos com menos de trinta beneficiários, no período compreendido entre a data da assinatura do termo de compromisso com a ANS e o dia 30 de junho de 2020.” (site da ANS em 12 de abril de 2020).
Parece, pois, que as operadoras que firmarem o termo de compromisso, em caso de inadimplência de seus clientes, devem ofertar alguma revisão contratual, o que está entregue ao seu alvedrio. Não ficou absolutamente claro se será possível a rescisão, na hipótese de a renegociação não resultar em um novo contrato que atenda aos interesses de operadora e beneficiário. A princípio, parece que não. O objetivo é que os contratos se mantenham até 30 de junho de 2020.
Seja como for, a pergunta que não quer calar é: e se a operadora não firmar o termo de compromisso com a ANS e o cliente não puder pagar a mensalidade em razão da perda de emprego; redução do seu salário; redução de sua renda em função da queda de faturamento de sua empresa, tudo isso gerado pelas medidas impostas pela Administração Pública por força da pandemia de COVID-19, pode seu contrato ser rescindido?
A rescisão de um contrato de plano de saúde em razão de inadimplemento está regulada no artigo 13 da Lei 9656-1998 (Lei dos Planos de Saúde). Nele se garante que o contrato somente pode ser rescindido após inadimplência por mais de 60 dias durante um período de 12 meses e que seja o beneficiário pessoalmente notificado. Isso vale para os contratos individuais e familiares.
Para os demais contratos, quais sejam, os coletivos, tanto por adesão quanto empresariais, as hipóteses de rescisão devem respeitar as previsões constantes em contrato, aceitando-se normalmente a rescisão imotivada desde que com antecedência mínima de sessenta dias.
Tem-se, portanto, que, como regra, nos planos de saúde e nos contratos de forma geral, obviamente a inadimplência gera a rescisão contratual.
Entretanto, vivemos em tempos de exceção, em que todos os contratos foram atingidos por “um fenômeno relacionado a fatos externos, que independem da vontade humana, e que impedem o cumprimento das obrigações” como bem conceituou o Dr. Diogo Ribeiro de Gusmão, em recente artigo intitulado “Covid-19 e força maior nos contratos comerciais”, publicado em abril de 2020. É o que se convencionou chamar de força maior.
A força maior e seus efeitos sobre os contratos são tratados pelo Código Civil, nos arts. 317, 393 e 478:
“Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.”
“Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.”
“Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.”
É evidente que, com a redução da atividade econômica e a consequente diminuição de riqueza circulando entre as pessoas, por motivos imprevisíveis e cujos efeitos não era possível evitar ou impedir, haverá inadimplemento dos contratos e especificamente dos contratos de planos de saúde, que tratam de serviços dos quais não se pode prescindir nesse momento em que o mundo inteiro passa por uma situação extrema do ponto de vista sanitário.
Antes de mais nada, pontue-se que os contratos referidos são regulados pelo Código de Defesa do Consumidor que visa precipuamente corrigir a desigualdade existente entre os sujeitos dessa relação jurídica em que é evidente a vulnerabilidade do consumidor.
Demais disso, o que está em jogo é o direito à vida e à saúde, que é protegido constitucionalmente como direito fundamental nos artigos 5º e 6º da Constituição Federal.
Com efeito, há que se reconhecer que não se deve impor a quem quer que seja contratar ou permanecer contratado. Vige em nosso sistema legal, a liberdade de contratar, decorrente da autonomia da vontade.
Todavia, a liberdade de contratar encontra limites nos princípios da solidariedade (inc. I art. 3º da Constituição Federal), dignidade da pessoa humana (inciso III do art. 1º da Constituição Federal) da boa-fé e da função social do contrato, estes últimos objetivamente regulados pelo Código Civil nos seus arts. 421 e 422.
É também o interesse coletivo que deve ser protegido em contraposição ao interesse individual. Rememore-se que no direito pátrio vigora a supremacia do interesse público ao privado e dos interesses coletivos aos particulares.
Ora, é evidente que a rescisão de contrato de plano de saúde, por inadimplência do beneficiário, durante a pandemia de COVID-19, afora a crueldade que encerra, coloca em risco a dignidade da pessoa humana, a saúde e, ao fim e ao cabo, a própria vida, o que não se pode admitir.
Por fim, voltando olhos novamente à regulação específica dos contratos de planos de saúde, dispõe o artigo 35-C da Lei 9656-1998 que:
“Art. 35-C. É obrigatória a cobertura do atendimento nos casos: I - de emergência, como tal definidos os que implicarem risco imediato de vida ou de lesões irreparáveis para o paciente, caracterizado em declaração do médico assistente.”
Parece absolutamente inegável que a pandemia declarada de corona vírus deve ser considerada emergência que implica risco imediato de vida ou de lesões irreparáveis ao paciente, revelando-se obrigatória a cobertura, não se podendo admitir a rescisão do contrato ainda que por inadimplência, posto que decorrente de força maior.
É razoável fazer-se, a esse propósito, a comparação inevitável com a situação em que o paciente se encontra em tratamento médico de doença grave e, nesse caso, a jurisprudência do STJ é uníssona em considerar abusiva a rescisão do contrato com base exatamente no supra referido art. 35-C do Código de Defesa do Consumidor .
Por outro lado, as operadoras, tão logo finda a situação excepcional, terão a seu dispor os instrumentos de cobrança das mensalidades eventualmente não pagas e ainda a possibilidade de revisão dos termos contratuais adequando-os e reequilibrando-os à nova realidade pós pandemia.
Por tudo o que se dispôs nas parcas linhas acima, é que não se pode admitir a rescisão do contrato de plano de saúde, motivada pela inadimplência do usuário, durante o período excepcional de pandemia do Covid 19, que se revela ilegal e, caso efetivada, abre ao consumidor a possibilidade de promover ação judicial para o seu restabelecimento.