O DIREITO ENTRE A MODERNIDADE E A PÓS-MODERNIDADE
LAW BETWEEN MODERNITY AND POSTMODERNITY[1]
Carlos Roberto Claro[2]
Sumário: Introdução. 1. A modernidade e suas características essenciais. 2. A pós-modernidade. 3. O direito e o jurista. Conclusão. Referência bibliográfica.
Summary: Introduction. 1. Modernity and is essentials characteristics. 2. The postmodernity. 3. Law and jurist. Conclusion. Bibliographic Reference.
Resumo: O presente texto tem por propósito analisar a modernidade e suas características essenciais, bem como a assim denominada pós-modernidade e os aspectos mais relevantes. Levando-se em conta a transição operada, é importante destacar qual o papel que o Direito desempenhou e vem desempenhando perante a sociedade. Nesse contexto, algumas linhas também serão escritas a acerca do hodierno jurista e seu posicionamento em relação ao modo de produção do Direito no século XXI.
Resume: This writing has the purpose to analyze the modernity and its essentials characteristics, as well as the denominated postmodernity and the most relevant aspects. Taking into account the transition operated, it’s important to highlight what’s is the role that law played and plays towards society. In this context, some lines also will be written about hodiernal jurist and its positioning in relation of law production in twenty-first century.
Palavras Chaves: Direito. Jurista. Modernidade. Pós-modernidade. Positivismo jurídico.
Keywords: Law. Jurist. Modernity. Postmodernity. Legal positivism.
INTRODUÇÃO
Tenciona o presente texto apresentar alguns aspectos relacionados à modernidade e suas características essenciais. Ainda, tendo em vista que a partir da segunda metade do século XX estudiosos formularam inúmeras críticas ao projeto moderno e desembocaram no que se denomina de neo-estruturalismo, ou pós-modernidade, insta também desenvolver o tema, não se descuidando do papel do Direito nesse contexto.
Desde logo cabe ressaltar que a primeira obra considerada pós-moderna ao tratar da mudança geral da condição humana[3] foi escrita por Jean-François Lyotard [publicada no ano de 1979], sendo que a este livro advieram várias críticas de estudiosos.
Destaque-se ainda que alguns autores [nacionais e estrangeiros] divergem quanto à necessidade [ou não] de rever o modelo chamado de modernidade, cabendo traçar breve paralelo enre este projeto e a pós-modernidade.
Com efeito, demonstrará o estudo que não somente a modernidade está em crise, mas também o Direito [posto pelo Estado], encontra-se totalmente distante da sociedade, na medida em que o hermeneuta ainda interpreta a lei com base na filosofia da consciência, ou seja, como se estivesse distante do objeto.
Não bastasse, sendo certo que a filosofia da consciência se encontra de há muito superada [ao menos para alguns juristas], etando em evidência a hermenêutica filosófica, nota-se que o Direito ainda está longe de operadores jurídicos, tal como define abalizada doutrina.
O escrito tem como objeto demonstrar também que dentro da modernidade ou mesmo no âmbito da sociedade do espetáculo [consoante esclaraece Guy Debord], tal como se apresenta desde a segunda metade do século XX, o Direito tem papel deveras preponderante e caberá ao intérprete sistemático, em consonância com a profundidade e extensão de sua linguagem e conhecimento {repertório], cooperar para que haja a construção de um mundo mais justo, solidário e fraterno.
À medida em que os tema vão sendo desenvolvidos, os pensamentos de Jean-François Lyotard, Jürger Habermas, Paolo Grossi, Michel Foucault, Guy Debord e também de outros estudiosos de igual nomeada serão citados para demonstrar os divergentes pensamentos quanto aos projetos em foco [modernidade e a chamada pós-modernidade.
1. A MODERNIDADE E SUAS CARACTERÍSTICAS ESSENCIAIS
Especificamente neste item será abordada a modernidade, alinhando-se as suas características principais. Diante da pretendida emancipação do ser humano - colocando-se em relevo a razão, bem como a dominação sobre a natureza -, verificar-se-á que o discurso liberal burguês buscou evitar a interpretação da lei, levando a efeito a codificação. Com a elaboração do Código Civil Francês de 1804, nota-se que o Estado buscou impor limites ao juiz, bem como manter sistema fechado. Noutras palavras, houve exacerbado positivismo jurídico, vivenciado até o início do século XXI, inclusive no Brasil. Ainda subsiste a ideia de que o Direito se resume à lei posta pelo Estado, mantendo-se [alguns pensadores] o ideário da filosofia da consciência.
O que se convencionou denominar de modernidade surgiu entre os séculos XIV e XIX, sendo que tal projeto civilizatório tinha como bandeira a emancipação do ser humano pela razão, que daria ao homem poder sobre tudo, inclusive sobre a natureza. O processo histórico em referência foi idealizado pela burguesia, com anseio de liberdade e a firme crença na razão prática, criando-se o sujeito singular, conforme assevera Jürgen Habermas[4]. A modernidade seria ambicioso e revolucionário paradigma sócio-cultural assente numa tentativa dinâmica entre regulação social e emancipação social, de acordo com Boaventura de Sousa Santos[5], sendo certo que prepondera a primeira.
Para Guy Debord, o posterior deslocamento social do ter para o aparentar ter, típico da sociedade do espetáculo do século XXI[6], fez com que toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção, se apresentasse como uma imensa acumulação de ‘espetáculos’. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação[7]. A bem dizer, com a modernidade surgiram o próprio Estado, as instituições e o Direito, sendo que o paradigma representava avanço, mas Habermas desde logo já chama a atenção para um detalhe deveras importante e que não pode passar despercebido.
Segundo o pensador, o mundo moderno padece de ‘falsas’ identidades, porque tanto no cotidiano como na filosofia eleva algo condicionado a absoluto[8]. É exatamente a partir do discurso liberal burguês que brotou na França, com a revolução [a partir de 1789], que surge no cenário histórico um ator, no mínimo totalizante e talvez indesejável: o Estado, que impõe o Direito, mediante a codificação.
É a partir de Napoleão que se busca manietar o Direito, com a elaboração do Código Francês. Segundo Ricardo Marcelo Fonseca, tal código buscava fixar para sempre os ditames de uma razão tida como infalível[9]. Nessa esteira, em relação ao Estado e seu poder absoluto, adverte Luís Fernando Lopes Pereira que a
burguesia, tendo como instrumento essa entidade totalizante que tende a controlar as manifestações do social, mutilou a ordem jurídica separando- a do fluxo da sociedade, gerando um direito esclerosado e imóvel, onde a mitologia legislativa da lei como expressão da vontade geral esconde o formalismo do ‘absolutismo jurídico’[10]
Como bem ponderado por Paolo Grossi, esse mesmo Estado pretende reduzir o Direito à letra fria da lei, e o que era jusnaturalismo vem a desembocar no mais agudo positivismo jurídico, e o Código, mesmo se portador de valores universais, é reduzido à voz do soberano nacional, à lei positiva desse ou daquele Estado[11]. A interpretação da lei se torna desnecessária, supérflua, pois, o texto é bastante claro e não cabe indagação. Nos termos de Grossi,
o príncipe se torna sempre mais legislador; consequentemente, o direito se torna sempre mais legislativo. Isso é perceptível claramente no laboratório histórico precursor que é a França: do século XIV até os primeiros anos do século XIX, ou seja, até a Revolução e à grande codificação napoleônica, ocorre uma contínua erosão das velhas fontes tradicionais e, em contraponto, ocorre um contínuo dilatar-se da produção legislativa do Rei que invade cada vez mais inclusive nos campos desde sempre reservados à imemorável disciplina consuetudinária[12]
A partir desse mesmo século XIX [com o surgimento das escolas do positivismo jurídico] houve convergência entre o modelo da modernidade e o capitalismo, que caminham juntos até o século XX e quiçá ainda andam de mãos dados em pleno novo século. Portanto, com a modernidade vieram as promessas da dominação da natureza, pelo homem [em benefício da humanidade]; a promessa de paz perpétua [Kant], o que é, até o momento, utópico; de uma sociedade mais justa, livre e soberana, capaz de traçar por si só seu próprio destino; de liberdade e igualdade entre todos. Também veio a razão, com René Descartes, como será exposto no lugar próprio.
De acordo com o entendimento de Boaventura de Sousa Santos, o filósofo René Descartes vai inequivocamente das idéias para as coisas e não das coisas para as idéias e estabelece a prioridade da metafísica enquanto fundamento último da ciência[13]. Ora, se para Descartes vale o que o homem pensa, ou seja, busca-se a verdade absoluta, a certeza insofismável, para Michel de Montaigne, não passa sempre de uma verdade provisória; não cabem julgamentos absolutos e o intérprete deve sempre estar aberto a novas conclusões, ao contrário do que pretendeu o Iluminismo.
Ademais, tomando da pena e molhando-a na tinta da prudência, Montaigne escreveu que a falta de moderação, mesmo para com o bem, se não me choca, espanta-me e causa-me dificuldade para batizá-la[14]. E o mesmo filósofo vai mais além, ao afirmar que o arqueiro que ultrapassa o alvo falha tanto como aquele que não o atinge[15]. Em resumo, é possível extrair da leitura de seu livro que a prudência e o bom senso sempre devem prevalecer.
Portanto, a posição do pensador humanista Montaigne é diametralmente oposta ao pensamento de Descartes. Segundo Max Horkheimer, a sociedade moderna nada mais é do que o produto da vontade particular [capitalismo] e não de uma vontade geral[16]. O projeto em referência traz no seu bojo a ideia de universalidade, individualidade e autonomia ampla.
De acordo com Sérgio Paulo Rouanet, a universalidade visa a todos os seres humanos, independentemente de qualquer barreira que possa existir. Individualidade, segundo o mesmo autor, teria o sentido de considerar os seres humanos como pessoas concretas [não integrantes de coletividade]. Por fim, a autonomia diria respeito à possibilidade de os seres humanos pensarem por si mesmos, sem a intervenção de ideologia ou religião[17], o que também se mostra utópico. Nessa esteira, adverte Tarso Genro que
propôs uma dupla possibilidade para a humanidade. Por uma delas, a realização da razão seria o desenvolvimento universal para um sistema social que concretizasse o princípio da ‘igualdade formal’, através da crescente redução das desigualdades reais no mundo moderno. Tal não aconteceu. Ao contrário, o que ocorreu foi a pós-modernidade aprofundar a irracionalidade, aumentar as diferenças sociais e consolidar relações cada vez mais alienadas. Foi isso o que os homens modernos fizeram da sua história. A razão foi assaltada no sentido de ser despida de sai vocação humanizadora[18]
Consoante demonstrado, a modernidade vem calcada no ideário de se conceber uma sociedade melhor, mais fraterna e justa, sob todos os aspectos. O projeto moderno oscilou sempre em dois grandes pilares: a regulação e a emancipação. O primeiro é constituído pelos princípios do Estado [Hobbes]; do mercado [John Locke e Adam Smith] e o da comunidade [o qual domina a teoria social e política de Rousseau]. Esclarece Boaventura de Sousa Santos que
o princípio do Estado consiste na obrigação política vertical entre cidadãos e Estado. O princípio do mercado é a obrigação política horizontal individualista e antagônica entre os parceiros do mercado. O da comunidade consiste na obrigação política horizontal solidária entre membros da comunidade e associações[19]
A emancipação, conforme o mesmo pensador, tem por base três lógicas de racionalidade: a estético-expressiva das artes e da literatura, a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da tecnologia e a moral prática da ética e do direito[20]. Adentrando já o campo do Direito e da Ciência, esclarece Santos que o modernismo traz a ideia de que a lei enquanto norma deve ser também lei enquanto ciência[21]. De fato, o objetivo era criar uma ordem social onde o Direito ditava as regras à sociedade, com base no resultado das descobertas científicas no âmbito social. Porém, o projeto civilizatório chamado modernidade entrou em crise e, por que não dizer, em colapso, pois, não está logrando êxito em cumprir com algumas das várias promessas feitas.
No sentir de Lenio Streck, o quadro é desolador[22] e não há como discordar de tal asserto. Entrementes, referido autor entende que a modernidade deve ser mantida, como será adiante exposto. Por sua vez, Boaventura de Sousa Santos entende que a crise é irreversível[23], sendo que nada é sabido sobre o futuro. É radicalmente contra o modelo de modernidade que aí está e chega a escrever que a cultura produzida por esta não passa de lixo[24]. Tem outra posição Sérgio Rouanet, não obstante também entenda que o projeto modernizador atravessa dificuldades.
Porém, é de opinião que possível a mantença do que de positivo existe na modernidade, desde que sejam corrigidas as patologias. Tal projeto foi denominado, por ele, de Iluminismo[25]. Lenio L. Streck acredita que o Brasil segue o caminho rumo ao Estado absenteísta, entendendo que a pós-modernidade é vista como a visão neoliberal[26], mas com déficits.
Os déficits da modernidade eram considerados como deficiências temporárias, enquanto os excessos seriam desvios fortuitos. A resolução das anomalias foi confiada à ciência e ao Direito. A utilização correta daquela poderia livrar a humanidade dos males que a assolavam, bem como libertar-se-ia da injustiça. A ciência foi catapultada ao status de instância moral suprema e a cooperação da ciência e do Direito foi uma de suas características, sustentada pela fé naquela e na razão, e pela crítica à religião e à superstição.
A modernidade voltava-se contra a tradição, bem como se insurgia contra o obscurantismo. Em consequência, os excessos da modernidade são atribuídos à ciência e ao Direito moderno. Adverte Boaventura de Sousa Santos que a ciência moderna desconfia sistematicamente das evidências da nossa experiência imediata[27]. Porém, mesmo os autores que defendem a modernidade chegam à conclusão de que a crise está instaurada e se faz presente [cada vez mais latente], havendo um mal-estar na modernidade, que se resume a um projeto inacabado, em particular no Brasil, cujas crises moral, ética, política, social e econômica, são sistêmicas.
Talvez uma das causas desse mal-estar, título da obra de Sérgio Rouanet, seja justamente o fato de que a modernidade é vista como pseudo-paradigma, nada de concreto, que não resolveu as questões básicas do ser humano, há mais de 200 anos.
Houve, a partir da Revolução Francesa apenas e tão somente a igualdade meramente formal (escriva na Carta Política), e não a material, de fato. É nesse exato sentido que Lenio Streck adverte: obtém-se um imenso poder econômico, mas ele não consegue resolver os problemas da qualidade de vida[28]. Diante da crise vivenciada pelo Brasil (aqui não há lugar para discorrer acerca das várias crises de há muito vividas pelo país) percebe-se facilmente que a ideia de igualdade está bem distante. No ponto seguinte será explanado a respeito da pós-modernidade, inclusive no Brasil.
2. A PÓS-MODERNIDADE
A pós-modernidade, ou a assim transpós-modernidade, consoante nomenclatura adota por Edmundo L. de Arruda Jr. e Marcus Fabiano Gonçalves, seria o além através da modernidade[29] e teria nascido a partir da década de 1950 do século XX. Com o advento da era pós-industrial, houve o surgimento de cenário cibernético-informativo e informacional, conforme adverte Wilmar do Valle Barbosa, ao escrever a respeito dos tempos modernos[30]. A pós-modernidade surgiu com elevada carga de saber científico, com vistas à riqueza material.
No presente ponto abordar-se-á a pós-modernidade, bem como suas características essenciais, não olvidando dos aspectos positivos e negativos do atual estágio da humanidade.
O dinheiro e o poder movem o mundo economicamente globalizado e aquilo que se denomina de pós-moderno, pós-estrutural, tem como moeda de troca o poder de barganha do homem. Aquele que tem mais poder e recursos financeiros leva grande vantagem sobre o menos afortunado. Assim o é nas relações entre os seres humanos e nas tratativas existentes no mercado empresarial.
Os escândalos envolvendo grandes grupos nacionais dão a ideia do que é capaz de ser feito em busca de dinheiro fácil e poder econômico, com prevalência no mercado competitivo. Entrementes, no tocante ao poder e ao dinheiro, não podem comprar nem obter pela força solidariedade e sentido, conforme explica Jürgen Habermas[31]. Cabe, então, repensar o caminho traçado pelo homem a partir da modernidade e (re)pensar a respeito doo que se vem vivendo em tempos pós-modernos.
E nesse exato sentido, escreveu Walter Benjamin, dispondo que, sob o capitalismo o poder e o dinheiro se tornaram grandezas comensuráveis. Qualquer quantidade dada de dinheiro é convertível numa quantidade perfeitamente determinada de poder, e o valor venal de cada poder é calculável[32]. É de somenos importância qual o rótulo, o título para o que vem acontecendo no mundo globalizado, em termos de crise, não só econômica, mas também social, ética e moral. Os grandes temas midiáticos são a prova de que cabe repensar acerca do modo de convivência social. Valores sociais vêm a cada dia sendo perdidos em prol de um mundo cada vez mais virtual, mais fácil e menos concreto; as relações estão monetizadas e impera o ideário da venda do irreal.
Consoante Perry Anderson, a primeira obra filosófica escrita a respeito da pós-modernidade é de Jean-François Lyotard[33], que esclarece o significado do que entende ser pós-modernismo
designa o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do final do século XIX[34].
O pós-modernismo teria surgido como contraponto da sociedade moderno-capitalista. Nessa esteira, Edmundo L. de Arruda Jr, citado por Lenio Streck, vê o pós-modernismo como um frenesi teórico e prático, representado pelos discursos apocalípticos antimodernos, onde a globalização neoliberal é vista como sinônimo de modernização[35]. A pós-modernidade diz com a incredulidade em relação aos metarrelatos, conforme expõe Lyotard. Segundo o filósofo, é ela - a pós-modernidade - efeito do progresso das ciências, mas este a supõe[36]. De fato, na ótica dos defensores do pós-moderno, do novo, não é ele somente instrumento de poderes.
É mais do que isso: tem seus contornos ligados inequivocamente à linguagem. Nessa linha, o saber se tornou a principal força de produção, sendo ele quem faz a distinção entre as pessoas. Em outras palavras, o conhecimento é força de produção, equiparado às máquinas do período capitalista. Quanto mais saber, conhecimento científico, repertório, linguagem, leitura, mais distante ficará o ser humano em relação aos demais. Na medida em que avança o seu conhecimento, mais ficará seguro de si e terá a plena certeza de que pode ir muito além.
Para Lyotard, o saber será o desafio na competição mundial pelo poder e haverá [na prática já existe] grande disputa pelo domínio desenfreado de informações, de tecnologia e do próprio mercado competitivo. O mesmo autor escreve sobre a mercantilização do saber, que não poderá ficar restrita aos chamados Estados-nações[37]. Já Eros Roberto Grau entende que o termo tudo e nada pode significar.
Vai mais além ao dispor que enquanto não restar convencionado o real significado conceitual do que venha a ser “pós-moderno”, em cada discurso, todos os discursos serão vazios de significação. Não basta, ao ouvi-los, considerarmos esta ou aquela manifestação (concepção) de ‘pós-moderno’. Necessitamos do conceito, não de uma concepção de ‘pós-moderno’[38]. Quer-se crer que a razão está com este jurista. Sem embargo de tal pensamento, a necessidade de um conceito que de fato abarque o fenômeno complexo da pós-modernidade é ainda sonho moderno.
A seu turno, Willis Santiago Guerra Filho afirma que hoje não mais existe fundamento aceito em geral como certo e verdadeiro, com base no qual se possa postular ‘saber, para prever’[39], por isso, para ele a pós-modernidade
está no sentido de se resgatar uma periodização, alo que o modernismo, por definição, impede – o atual, o presente, é sempre moderno. Na segunda metade do século em curso, estaríamos vivendo na pós-modernidade, devido ao modo radicalmente diverso como se organiza, econômica e politicamente, a sociedade egressa da modernidade, como uma correlata mudança no conjunto de crenças e pressuposições que formam a mentalidade dos que a compõem, bem como pela natureza dos problemas que nela se apresentam[40]
A transição da modernidade para o que se denomina pós-modernidade é um processo lento, que requer a passagem de várias gerações até que se consiga, quem sabe, chegar a uma emancipação social, o que, até o momento deste escrito, ainda não se vê. Boaventura de Sousa Santos traça as linhas daquilo que convencionou chamar de paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente, apresentando plano geral da pós-modernidade, e chegando à conclusão que necessária é a utopia pragmática.
Enquanto a modernidade contribuiu para afastar as irracionalidades existentes na pré-modernidade, criando o liberalismo, o socialismo e a autonomia, fazendo com que o homem dominasse a natureza, a pós-modernidade é reformista, antitotalitária [democraticamente fragmentária], tolerante.
Busca, pois, a verdadeira integração do homem na comunidade a que pertence. Para tanto, é preciso organizar uma forma de democratizar o saber que será verdadeiro divisor de águas, na medida em que os países chamados desenvolvidos afastar-se-ão (já se distanciaram) ainda mais daqueles que estão em desenvolvimento. Nessa linha, os países mais pobres [periféricos] ficarão longe do saber, sendo eternamente distantes do conhecimento. No posfácio do texto de Lyotard, Silviano Santiago assevera que
o acesso à nova revolução industrial está na aquisição de um saber, que é vendido ou negado pelos países avançados aos consumidores periféricos, quando não lhes é simplesmente escamoteado ou sonegado. As sociedades periféricas só terão pleno acesso a ele se os respectivos governos ou as empresas nacionais delegarem às suas instituições de saber, ao alocar-lhes fundos generosos, a indispensável tarefa de aprimoramento de um corpo de pesquisadores e de docentes de altíssimo nível. A pesquisa de ponta é o alicerce indispensável para que se afirme o poder econômico na competitiva era pós-industrial[41]
Lyotard, no corpo da obra a respeito da pós-modernidade, se referiu à informação como instrumento de controle e de regulamentação do sistema do mercado: as disputas serão então constituídas por conhecimentos [ou informações] e a reserva de conhecimentos, que é a reserva da língua em enunciados possíveis, é inesgotável[42]. Explica ainda o mesmo autor que o saber pós-moderno nada mais é do que um jogo de informação completa, no sentido de que os dados são em princípio acessíveis a todos os ‘experts’: não existe segredo científico[43], mas crê-se que tal assertiva deve ser recebida com reservas.
Segundo Boaventura de Sousa Santos, há um colapso epistemológico da ciência moderna e propõe que a pós-modernidade poderia reciclar e recuperar as formas degradadas da modernidade[44] [universalismo, racionalismo e individualismo], dissolvendo o universalismo [pluralismo linguajeiro, segundo Lyotard]; a ciência é vista como ideologia [Habermas] e agente no processo de dominação sobre os homens e a natureza, afastando o individualismo [prevalece o coletivo], e por fim submetendo o particularismo do universalismo.
A repressão, com o pós-modernismo, passa a assumir forma de liberdade. De fato, busca-se remover as causas dos conflitos intersubjetivos, que causam um verdadeiro ressentimento contra a civilização, conforme Rouanet[45], que alimenta um váculo civilizatório[46]. Para Lyotard o projeto de emancipação nada tem a ver com a ciência, porquanto a crise do saber científico provém da erosão interna do seu princípio da legitimação[47]. Logo, a pós-modernidade nada mais seria do que mero efeito do progresso das ciências.
Um ano após a publicação da obra de Lyotard [1979], Jürgen Habermas proferiu discurso intitulado modernidade – um projeto incompleto, em Frankfurt, quando do recebimento do prêmio Adorno da municipalidade[48]. Posicionando-se de forma crítica em relação à pós-modernidade[49], tal como exposta, Habermas entende ser ela uma representação do neoconservadorismo,
e que uma rearticulação da cultura moderna com a práxis cotidiana não dependia apenas da capacidade do mundo para desenvolver instituições que limitem a dinâmica interna dos sistemas de ação econômica e administrativa, mas também da condução da modernização social para outros caminhos, não capitalistas[50].
Consoante lição de Habermas, um paradigma somente perde sua força com a superveniência de outro paradigma, de forma determinada, ou seja, quando é invalidado de modo ‘judicioso[51], fato esse não afastado pelo pós-estruturalismo.
Tendo em vista a dinâmica imposta pelo capitalismo, os valores [em sentido amplo] do indivíduo estão mudados, e a busca incessante é não mais pelo ser ou pelo ter, mas pelo aparentar ser e ter (impera a ideia de visibilidade, de aparência e de se sobrepor sobre o outro). Esse quadro, explicitado na obra A sociedade do espetáculo, dá um panorama da sociedade atual: consumista, manietada pelo Estado e pelas redes sociais, completamente sem norte.
A sociedade moderna se auto-regula, estipulando padrão de beleza, comportamento, valores sociais etc., sendo que ela se entrega por vontade própria à regulação estatal. Decerto, com a necessidade crescente de participar do espetáculo, principalmente virtual, o homem se não dá conta de que participa do sistema de manipulação, como ator iniciante, deixando-se dominar pelos atores principais: o Estado e os donos das redes sociais.
Ainda, o próprio homem moderno [ou pós-moderno] aceita participar do espetáculo [participa do jogo e aprecia estar em tal ambiente] aparentando o que não é, sendo o que não é e demonstrando eterna felicidade.
Ademais, o espetáculo é a ‘afirmação’ da aparência e a afirmação de toda vida humana – isto é, social – como simples aparência, conforme ensina Debord[52]. O ser humano está bem mais propenso a aparentar ser e ter, olvidando do que realmente é.
A preocupação existe quanto ao futuro da humanidade e Habermas adverte que não sabemos até que ponto os homens podem chegar. E, quanto mais aumenta a maldade, tanto mais forte é a necessidade de reprimir a culpa e de esquecê-la[53], sendo certo que talvez aqueles que dirigem os paises já estejam pensando a respeito do que será a humanidade ainda neste século.
Portanto, sendo de somenos importância se o mundo globalizado capitalista vive a era da modernidade ou já se encontra pós-modernidade, sobreleva o fato de que o homem deixou, ao longo de sua caminhada pela estrada de sua evolução [desde os primórdios], os valores mínimos necessários para construir uma sociedade onde sobreleva a dignidade, a moral, a prosperidade e a fraternidade.
Diante de todos os acontecimentos que estão sendo vivenciados pelo homem moderno [ou pós-moderno] sobreleva importante aspecto e que não pode passar despercebido: há um fato consensual, que diz com a verdadeira crise do projeto moderno, de sua moral e principalmente de sua ética.
3. O DIREITO E O JURISTA
Evidentemente que, diante da globalização econômica, advinda especialmente a partir da década de 1990 do século XX, aliada ao capitalismo neoliberal, o Direito não passa incólume a tais mudanças ocorridas na sociedade contemporânea, pelo contrário. Sofre todos os efeitos do mundo moderno. As forças econômicas, não raro, se sobrepõem ao Direito, pois, o mercado precisa fluir regularmente; o mercado competitivo precisa de previsão e cálculo, conforme ensina Eros Grau[54]; o mercado não pode ter entraves quanto a sua fluência e por tal motivo cada vez mais as grandes corporações evitam levar casos concretos ao Poder Judiciário, pois, têm ciência da morosidade e da falta de previsibilidade quanto as decisões judiciais.
O presente item tratará especificamente da postura do Direito frente à assim denominada pós-modernidade. Ainda, considerando os ensinamentos de alguns pensadores de nomeada, tais como Hans-Georg Gadamer e Martin Heidegger, serão apresentadas algumas reflexões a respeito da hermenêutica filosófica, a fim de que se perceba o papel relevante que tem o exegeta do Direito especialmente na pós-modernidade.
Mais do que isso, alinhar-se-ão algumas questões que desembocam justamente no pensamento de que o jurista é construtor e não operador do Direito, o que é incorreto. É muito comum denominar o jurista de operador do Direito, o que soa estranho. O tema ora apresentado não se traduz em novidade alguma e certamente haverá ainda muitos escritos a respeito. Mas vale a pena repisar um ponto deveras importante, e que nem sempre é observado pelo hermeneuta no dia-a-dia.
Nem sempre é observado porque o intérprete deixa, muitas vezes, de compreender a verdadeira amplitude da Constituição Federal de 1988. Trata-se de ressaltar uma vez mais a força normativa da Constituição, tal como nos ensina Lenio L. Streck[55]. Partindo-se do pressuposto básico e inafastável de que há inequívoca necessidade de compreensão do discurso jurídico em consonância com o constante da Constituição Federal, desde logo é possível adiantar a resposta ao questionamento ora proposto: Inexiste o que se denomina de operador do Direito (e quiçá nunca deveria ter existido o “operador do direito”).
A modernidade (ou pós-modernidade, para alguns estudiosos, e cujo conceito ainda não está devida e perfeitamente fixado, conforme já exposto), dentre outros novos modelos (alguns até pseudo-paradgimas), trouxe vários modismos a respeito do discurso, especialmente no mundo jurídico. Em outras palavras, mas igual alcance, com a modernidade (ou seja, com o advento da Revolução Francesa), surgiu o Direito Moderno, e cuja marca indelével é a sua produção pelo Estado, Estado esse que ‘põe’ um direito definidor das ‘regras de um jogo’ cujo fim ou cujos fins são externos a ele, porque definidos pelo indivíduo, que se vale de suas ‘formas’ para realizar os ‘seus fins’, tal como assina Eros Grau[56].
Um dos exemplos mais corriqueiros, observado praticamente todos os dias, diz respeito ao fato de que os intelectuais, e aqui utilizando-se dos termos do mesmo Grau, aqueles que pronunciam palavras e expressões incompreensíveis[57], sempre se referem ao “operador do direito”, quando fazem referência àqueles que atuam no âmbito do Direito (magistrados, advogados, membros do Ministério Público etc.).
Estaria correta a nomenclatura? Há, de fato, operadores do Direito, como muitos juristas assim se denominam? Segundo o Dicionário HOUAISS da Língua Portuguesa[58], o vocábulo operador, significa aquele que opera, realiza algo, executa uma ação, dentre outras acepções. E no mesmo HOUAISS[59], verifica-se a palavra “construtor” com o significado, dentre outros, daquele que “constrói, o que domina o saber de construir”.
Afinal, há operador ou construtor do Direito? Em operador do Direito não se pode falar, com o devido respeito aos que entendem de forma contrária.
Verifica-se que Direito concebido pelo Estado, tal como se conhece hodiernamente, está em crise (facilmente perceptível), e nem sempre há o que se denomina de “justiça material”. Em muitos casos prevalece a forma sobre o conteúdo; ações judiciais são extintas sem que se adentre ao mérito, em decorrências de irregularidades que poderiam ser supridas, ou até mesmo por desatenção (ou despreparo técnico mínimo necessário) do profissional que atua no processo.
Muitos são os casos em que o direito material está mais do que cristalino, devidamente provado no curso do feito, e diante das manobras processuais (diga-se, recursos de agravo de instrumento, por exemplo), da parte contrária, acabam por fulminar qualquer pretensão do prejudicado. Nem sempre a parte vencedora alcança o pedido mediato. Com efeito, enquanto o hermeneuta continuar reproduzindo o inteiro teor da norma jurídica; enquanto continuar a sofrer da “Síndrome de Abdula”, referida por Streck[60]; enquanto não perceber, de fato, a principiologia presente na Constituição Federal, certamente será um mero operador do Direito. A mesma Constituição Federal concede ao hermeneuta a real possibilidade de ser, de fato, um construtor do Direito no mundo moderno (ou pós-moderno).
O Direito também é um legado da modernidade, sendo necessário à implantação das ideias revolucionárias surgidas com o novo paradigma. A ele foi atribuída a tarefa principal de assegurar a ordem advinda com o capitalismo.
Constituiu o Direito um verdadeiro racionalizador de segunda ordem da vida social, substituto da cientifização da sociedade. Para que tal projeto fosse implementado, o Direito se submeteu à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência moderna, e em consequência, ele também se tornou ciência. Foi estatizado, manietado, engessado, pelo Estado moderno e está em tal condição em pleno século XXI. Buscava-se, principalmente, a ordem da natureza e a ordem da sociedade.
Ora, se na Idade Média o direito brotava da sociedade, na modernidade é ele imposto pelo Estado absolutista, que exerce o monopólio jurídico. Conforme Lenio Streck, a sociedade atual está carente de realização de direitos. Por outro lado, a Constituição Federal brasileira, garante tais direitos da forma mais ampla, mas nem sempre o jurista sabe o que de fato pode fazer com o instrumental colocado ao alcance da mão. Como realizar o Direito? De que forma os direitos fundamentais podem ser concretizados atualmente? Qual é o verdadeiro papel do jurista moderno? O Direito, como instrumento de transformação social não pode mitificar a lei, mas sim interpretá-la, consoante hermenêutica disponível.
Ainda, o mesmo Streck entende que a crise do paradigma chamado de modernidade, no que diz com o Direito, ocorre justamente porque continua ele delimitado a enfrentar conflitos ditos interindividuais, enquanto a sociedade está repleta de questões transindividuais[61].
O Direito não fica, jamais, adstrito à codificação do Estado. Aliás, nesta esteira assevera Norberto Bobbio que
hoje estamos acostumados a pensar no direito em termos de codificação, como se ele devesse necessariamente estar encerrado num código. Isto é uma atitude mental particularmente enraizada no homem comum e da qual os jovens que iniciam os estudos jurídicos deve procurar se livrar[62].
No caso do Brasil, com o advento da denominada Constituição Federal Cidadã de 1988, foram colocadas à disposição do Direito as ferramentas necessárias para que se dê possibilidade de o ser humano ser tratado de forma igual, conforme pugnado pela modernidade. Como adverte Cícero, citado por Montaigne, não possuímos um modelo sólido e exato do verdadeiro direito e da justiça perfeita; fazemos uso de sua sombra, de sua imagem[63].
Cabe ao jurista afastar a filosofia da consciência [centrada no sujeito-objeto] e perceber que a hermenêutica filosófica [Gadamer e Heidegger, relação sujeito-sujeito] é um caminho sem volta. Willis Santiago explica que a atividade judicial não se reduz a mera aplicação do direito preexistente. É, a bem da verdade, criativa, produtora de direito. Cita a teoria desenvolvida por Niklas Luhmann[64]. Mas o direito moderno foi posto, ensina Eros Grau, como ‘representação popular’ associada à maioria legislativa. Os pressupostos que fundamentam a sua legitimidade encontram-se na separação dos poderes e na vinculação do juiz à lei[65]. Assevera ainda o mesmo autor que sua peculiaridade é a universalidade abstrata. O Direito nada mais seria do que o conjunto de normas sancionadas, aplicado ao caso concreto.
Em consequência, o denominado Estado Liberal burguês de Direito tem a finalidade principal de tutelar as instituições do chamado comércio jurídico, notadamente no que se refere ao contrato e a propriedade. Mas, segundo Boaventura de Sousa Santos, o Direito, da forma como concebido, perdeu de vista a tensão entre a regulação e a emancipação, os excessos cometidos pela modernidade seriam devidos ao Direito e a Ciência.
Segundo o autor, a ciência pós-moderna é uma ciência assumidamente analógica que conhece o que conhece pior através do que conhece melhor[66]. Com o advento da modernidade, surgiram as teorias racionais do contrato social, como aquela defendida por Rousseau. Para ele, somente existe a vontade geral como exercício essencial de soberania inalienável e indivisível. Tal vontade geral representaria a síntese entre a regulação e a emancipação. O contrato social é feito por todos com todos.
Mas a realidade moderna é outra. Nela, o Direito foi instrumentalizado, definitivamente manietado, colocado sob camisa de força, criando disfunções e incongruências, afastando-se da sociedade. Tais disfunções redundam, segundo Boaventura, em sua ineficácia, na medida em que o direito, como subsistema de comunicações jurídicas, passou a funcionar mediante utilização do código binário: legal e ilegal. Ainda segundo o mesmo Boaventura, o Direito só se regula a si próprio[67]. Na modernidade, existe materialização [sendo esta é um produto do discurso jurídico] e ineficácia do Direito.
Não tem ele autonomia necessária e carece de reformas estruturais, independentemente do título que se dê: modernidade, pós-modernidade ou outro qualquer. Na sociedade moderna são várias as formas de Direito, sendo que o estatal [ou oficial, imposto] é apenas uma delas.
O Estado moderno tem como pressuposto básico que o Direito opera uma escala, no dizer de Boaventura. As diversas ordens jurídicas trabalham em escalas diferentes [local, nacional e global].
Willis S. Guerra Filho adverte com proficiência que
na pós-modernidade dá-se uma pluralidade de descrições da realidade social igualmente válidas. Em decorrência disso, também as prescrições feitas com base em tais descrições são plúrimas. O ideal, então, é tentar combiná-las, a fim de obtermos soluções mais adequadas, porque mais abrangentes, para problemas sociais [68]
Boaventura de Sousa Santos propõe a separação do Direito em relação ao Estado. Propõe, ainda, a sobreposição, articulação e interpenetração de vários espaços jurídicos misturados, tanto nas atitudes, como nos comportamentos. O novo senso comum partiria de uma concepção de direito autônomo da que é produzida pelas profissões e instituições jurídicas do Estado[69]. Diante do Direito posto por esse mesmo Estado, nota-se que o juiz, o intérprete autêntico, desempenha relevante papel na sociedade pós-moderna.
A preocupação exacerbada com a forma, deixando o direito material de lado, é latente. Inúmeros processos judiciais são jogados na vala da extinção, sem julgamento do mérito, que é aquilo que realmente interessa ao litigante. Hoje prepondera o procedimento; a forma rígida ditada pela lei processual civil; como o ato processual se deve dar, ocorrendo o perecimento do direito material, em reiterados casos. Não são poucos os processos que se arrastam anos, deixando-se de lado o direito material, em favor da estrita observância do caminho traçado pela lei, o que parece equívoco.
Sem adentrar no mérito da questão [sabendo-se que muitos são os processos extintos diante da inequívoca deficiência da formação do profissional defensor da parte, que não raras vezes elabora petição inicial totalmente ilógica, sem técnica, mas com elevada carga de erudição], impende destacar que, de fato, o jurista hodierno desconhece o ferramental conferido pela própria Constituição Federal, conforme dito. Já no tocante especificamente ao intérprete autêntico, nota-se que deve ele, desde a análise da petição inicial, perceber que cabe a interpretação conforme a Constituição Federal [ou seja, harmonização do texto normativo infraconstitucional com os ditames da Carta Federal).
Nessa esteira, há de se observar os métodos sistemático e teleológico quando da interpretação do texto normativo, não olvidando que passa o intérprete também pela interpretação literal [ou filológica], percebendo que o trabalho hermenêutico tem uma continuidade a partir da primeira leitura de qualquer enunciado legal.
Consoante ensinamento de Edmundo L. de Arruda Jr, e Marcus F. Gonçalves, a interpretação é uma atividade complexa pela qual são mobilizadas inúmeras faculdades psíquicas[70], sendo que o juiz também é um jurista-cidadão[71] e
quando fusionados no mesmo ser histórico-concreto, o cidadão-jurista e o jurista-cidadão expressam o tipo ideal do jurista orgânico da democracia constitucional, alguém capaz de uma dupla visão: a do mundo das vivências não imediatamente jurídicas (cultura, política, sociedade, ética) e do mundo das vivências jurídicas propriamente ditas[72]
Exige-se, então, não só dos juristas, mas também do intérprete autêntico um verdadeiro e sincero compromisso com a pré-compreensão jurídica, tal como bem asseveram os mesmos autores[73], de modo que a interpretação sistemática haverá de ser aberta diante, de uma nova realidade jurídica, bem mais pulsante e que não está adstrita à codificação imposta pela Revolução Francesa.
Sabe-se que a linguagem do homem está [inequivocamente] adstrita ao seu nível de conhecimento e quanto ao jurista [especialmente o jurista pátrio], a regra não é diferente. Engessado à filosófica da consciência, desconhecendo a hermenêutica filosófica, o jurista atual possui lentes inadequadas, e que deformam sua visão, olvidando que há ferramentas jurídicas suficientes para desmistificar a lei.
Em outras palavras, o jurista moderno continua sendo mero operador do Direito posto pelo poder estatal, enquanto que seu papel fundamental não é o de ser operador, mas sim construtor do direito, que nada mais é do que linguagem pulsante, viva, e que se modela dia após dia. O positivismo jurídico, instaurado a partir do Liberalismo, prolongou-se no tempo até chegar ao jurista contemporâneo, que ainda vive o absolutismo jurídico, na medida em que se sente impedido, por assim dizer, de utilizar o ferramental principiológico, bem como se recusa a perceber a hermenêutica filosófica. Noutras palavras, mas com igual alcance, o jurista do século XXI ainda atua como intérprete literal da lei, ou, em outras palavras, seu espírito se vê como mero operador jurídico.
A ausência do saber [não raras vezes], especialmente o saber jurídico, acaba depondo contra o próprio Direito, que, sabe-se, está acima do Estado.
Considerando sua inexorável miopia diante de uma realidade mais palpitante, o jurista atual abdica de participar como ator principal, sendo mero figurante, deixando de ser arrojado, tal como propõe Paolo Grossi, ao afirmar que
O jurista atual – a referência é à maioria e não àqueles espíritos livres e arrojados – é doente de decrepitude, é cada vez mais velho, e é sobretudo consumido por uma enfermidade sutil que desde sempre foi seu vício oculto, a preguiça, a preguiça intelectual [74]
Tal como a Síndrome de Abdula[75], lembrada por Lenio Streck, o jurista atual, abdica de um papel ativo perante o Direito. De fato, considerando que o Direito não viceja da sociedade [tal como no medievo], sendo imposto pelo absolutismo estatal, o jurista pátrio tem um leque hermenêutico disponível, que deita raízes na própria Constituição da República, a fim de demonstrar, mediante linguagem própria e técnica, que a lei não é a única e exclusiva fonte produtora do Direito.
Mas para isso, o jurista carece de instrumental próprio, a começar pelo saber, motivo bastante para dizer que o discurso jurídico atual carece ser repensado. No sentir de Antonio Carlos Wolkmer,
a moderna cultura liberal-burguesa e a expansão material do capitalismo produziram uma forma específica de racionalização do mundo. Essa racionalização, enquanto princípio organizativo, define-se como racionalidade instrumental positiva que não liberta, mas reprime, aliena e coisifica o homem[76]
O apego exacerbado ao formalismo jurídico somado à ausência de visão hermenêutica adequada, só fazem com que o jurista participe do espetáculo como mero coadjuvante. Nessa esteira, o próprio jurista permite fique que o Direito permaneça encastelado, atrás das muralhas rígidas do Estado, deixando de lado uma realidade com melhor coloração.
Nunca se deve olvidar, tal como ensina Michel Foucault, que é a pedido do poder real, em seu proveito e para servir-lhe de instrumento ou justificação que o edifício jurídico das nossas sociedades foi elaborado[77]. Especulando mais a fundo o tema relativo ao jurista, nota-se que ele persiste na era iluminista, dormindo sono profundo das certezas da lei, desconhecendo as grandes transformações sociais ocorridas especialmente a contar da segunda metade do século XX.
O jurista é formado, quando muito, para lidar com querelas intersubjetivas, e não está preparado para utilizar ferramental adequado quando se depara com questões mais profundas, as assim denominadas plurissubjetivas. Bem assevera Grossi que talvez nós juristas não tenhamos plena consciência disso, mas ainda somos, em boa medida, os herdeiros e as vítimas da grande redução iluminista[78]. Nessa esteira, enquanto o jurista continuar molhando sua pena na filosofia da consciência, desconhecendo a profundidade da hermenêutica filosófica, certamente continuará com lentes deformantes, atendo-se ao estrito comando do código e escrevendo linhas desconexas.
Adverte Miguel Reali[79] que dia a dia se percebe que a legislação dos povos passa das páginas dos códigos e das leis extravagantes para a memória do computador, o mesmo acontecendo nos domínios da atividade jurisdicional, numa integração do mais alto alcance[80], o que significa dizer que o mundo globalizado exige do hermeneuta a adaptação mínima necessária às novas técnicas advindas da era tecnológica, bem como jamais olvidar do binômio epistemologia e empirismo. Não bastasse, o próprio hodierno discurso jurídico é embebido em linguagem pouco acessível, inclusive ao homem comum, conforme adverte Eduardo Bittar
o uso e o emprego disseminado de uma linguagem ininteligível é, por vezes, causa de distorções hermenêuticas dentro do sistema, e, no mais das vezes, causa de impermeabilidade da sociedade como um todo às falas dos juristas, operadores do direito e especialistas, o que somente gera um afastamento gradativamente maior de uma população significativamente analfabeta (ou semi-analfabeta) das instâncias da justiça e dos procedimentos legalizados (‘ignorantia legis neminem excusat?’), induzindo-se a uma ojeriza da sociedade, das mídias e do não especialista às questões jurídicas[81]
Não bastasse, a própria formação acadêmica do jurista contribui de forma significativa para a falta de visão hermenêutica, quando ingressa no mercado de trabalho. O fato de ainda persistir como norte a filosofia da consciência; a leitura desbragada de códigos em sala de aula nas faculdades de Direito; a teimosia de não se conferir ao acadêmico uma iniciação efetivamente científica, e principalmente a ausência de contato com a realidade, tudo isso faz com que a qualidade técnica dos juristas seja enfraquecida. Além disso, a mercantilização do ensino superior, tal como adverte Bittar[82], torna o aluno mais um consumidor, mas não consumidor do saber, da busca pelo conhecimento científico, mas sim consumidor de má qualidade de ensino jurídico neste país.
CONCLUSÃO
Apresentadas as linhas gerais sobre o tema, tanto os que apresentam críticas à modernidade quanto os que consideram o atual estágio da humanidade como sendo pós-moderno, concordam que ideais da modernidade não estão sendo realizados. Basta especular a respeito os últimos acontecimentos mundiais, e até mesmo procedendo a uma análise dos fatos diários que ocorrem no Brasil. A almejada paz perpétua, a emancipação da humanidade, a promessa de uma sociedade mais justa, humanitária e livre, e principalmente a igualdade dos indivíduos, somadas às demais propostas da modernidade não foram e não estão sendo alcançadas. Nesse diapasão, qual seria o novo paradigma a adotar?
Rouanet entende que o modelo atual deve ser menos arrogante[83], enquanto Boaventura de Sousa Santos tem consciência que o ideal pós-moderno é utópico e que não seria alcançado de pronto. A tão almejada solidariedade, quem sabe, um dia poderá ser alcançada, desde que exista certo equilíbrio entre os homens e as sociedades; desde que a modernidade e seus projetos sejam revistos amplamente, ou apareça outro modelo civilizatório. O nome, o rótulo que se dê a um novo período, pouco ou nenhum sentido faz. O que vale, efetivamente, é o compromisso sério de reinventar uma emancipação autêntica.
Talvez as alternativas sejam bastante simples, sendo que Boaventura de Sousa Santos assevera que
tal como noutros períodos de transição, difíceis de entender e de percorrer, é necessário voltar às coisas simples, à capacidade de formular perguntas simples, perguntas que, como Einsten costumava dizer, só uma criança pode fazer mas que, depois de feitas, são capazes de trazer uma luz nova à nossa perplexidade [84]
No que se refere especificamente ao Direito, tanto na modernidade quanto na chamada pós-modernidade, foi ele posto pelo Estado liberal; foi imposto pelo rei num primeiro momento, sempre com a visão iluminista [filosofia da consciência], e em pleno século XXI também é posto pelo poder político. O Direito se encontra [ainda] sob muralhas, encastelado, deveras afastado do homem comum, pelos vários motivos aqui expostos.
Ora, a partir do momento em que o jurista contemporâneo deixar de ser mero operador do Direito (como muitos costumar dizer [apenas reprodutor do direito posto]), conforme apregoava o Iluminismo, avistando, pois, o final do túnel [onde se encontra a hermenêutica filosófica], certamente terá ele [o jurista pós-moderno] o ferramental mínimo necessário para interpretar o texto normativo consoante a Constituição Federal. Ainda, e mais importante, deixando de lado as lentes que deformam o enxergar hermenêutico, certamente o jurista perceberá que o Direito é linguagem viva, é pulsante, muito mais do que a lei posta pelo Estado na modernidade ou na pós-modernidade.
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