O PODER DE POLÍCIA NÃO É MERA PROVIDÊNCIA PREVENTIVA

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14/04/2020 às 10:08
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O PODER DE POLÍCIA NÃO É MERA PROVIDÊNCIA PREVENTIVA

Rogério Tadeu Romano

 

 

I – O FATO

Segundo o site do jornal Correio Brasiliense, no dia 12 de abri do corrente ano,
o governo promete reagir na Justiça a medidas restritivas tomadas por governadores. Em uma rede social, o advogado-geral da União, André Mendonça, afirmou que monitora as ações para conter a pandemia, e pode mover ações contra alguns atos implantados nos estados. “Diante da adoção ou ameaça de adoção de medidas restritivas de direitos fundamentais do cidadão por parte de autoridades locais e estaduais, informo que a Advocacia-Geral da União aguarda informações do Ministério da Saúde e da Anvisa para a propositura de medidas judiciais”, escreveu.

Para a AGU, algumas medidas podem extrapolar os limites impostos pela Constituição. Uma das críticas se refere à eventual prisão de quem descumprir a quarentena, ação que está sendo cogitada pelo governador de São Paulo, João Doria. “Medidas isoladas, prisões de cidadãos e restrições não fundamentadas em normas técnicas do Ministério da Saúde e da Anvisa abrem caminho para o abuso e o arbítrio. Medidas de restrição devem ter fins preventivos e educativos — não repressivos, autoritários ou arbitrários”, completou Mendonça.

As medidas estudadas pela Advocacia da União, órgão de Estado, e não de governo, estão na convergência das últimas posturas do atual presidente da República no sentido de combater o isolamento, numa atitude repulsiva às recentes diretrizes tomadas pela Organização Mundial de Saúde.

Ignora a AGU o conceito do poder geral de polícia e de tipos penais que protegem a saúde pública, alguns dos quais o atual presidente poderia ter infringido.  

II – OS TIPOS PENAIS QUE PODERÃO SER APLICADOS PARA O CASO

Os tipos penais são principalmente os constantes dos artigos 268 e 330 do Código Penal que, em verdade, por serem crimes de menor potencial ofensivo, não determinam a prisão em flagrante, mas, dentro da regra processual estabelecida para a transação penal, tal como previsto na Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001.

O que é determinação do Poder Público? É ordem ou resolução dos órgãos investidos de autoridade para realizar as finalidades do Estado. Trata-se de norma penal em braço, dependente de que venha a complementá-la para que se conheça o seu real alcance.

É certo que essa determinação do Poder Público deve voltar-se à introdução (ingresso ou entrada) ou à propagação (proliferação ou multiplicação) de doença contagiosa.

O bem jurídico tutelado é a saúde pública.

Para o caso a Lei nº 13.979/2020, que prevê várias medidas para evitar a contaminação ou a propagação da doença, destacando-se o isolamento, a quarentena e a realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, vacinação e tratamentos médicos específicos, é a fonte normativa para a matéria. Desobedecida pode gerar conduta criminal inscrita no artigo 268 do Código Penal.

Mesmo que o sujeito não tenha certeza de estar contaminado, mas aceita a hipótese, e transita normalmente por locais públicos, assumindo o risco de transmitir a doença, cometerá o ilícito com dolo eventual.

Mas, entenda-se: estamos diante de crimes de menor potencial ofensivo sobre os quais cabe transação. Na medida em que tomadas as providências coercitivas será caso de expedição de Termo Circunstanciado de Ocorrência. Não será caso de prisão.

Aliás é bom lembrar que no início da crise do coronavírus, os ministros da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, e da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, editaram portaria no dia 17 de março, disciplinando medidas compulsórias para enfrentar a pandemia de coronavírus.

A portaria prevê que o descumprimento das regras impostas pelos órgãos públicos para evitar a disseminação do coronavírus seja passível de enquadramento no CP, ou seja, quem descumprir determinações médicas de quarentena, isolamento ou internação pode incorrer nas penas dos artigos 268 do CP (detenção de um mês a um ano, e multa) e 330 (detenção de quinze dias a seis meses, e multa), se o fato não constituir crime mais grave.

A implementação das medidas independe de autorização judicial: "No exercício de polícia administrativa, a autoridade policial pode encaminhar o infrator a sua residência ou ao estabelecimento hospitalar para cumprimento das medidas estabelecidas".

III – O EXERCÍCIO DE UM PODER DE POLÍCIA

As medidas tomadas a partir da edição da Lei nº 13.979/2020, serão aplicadas no contexto do poder de polícia. Portanto, não são meras medidas indicativas ou educativas, mas impositivas.

Na matéria, sabe-se que compete, de forma concorrente, à União, aos Estados e aos Municípios, a teor do artigo 24, XII,  da Constituição Federal, legislar sobre a defesa da saúde.

Atende-se aos casos de relevância e urgência na aplicação do modelo legislativo no que concerne ao exercício da autoexecutoriedade do ato administrativo para que se possa ter o poder de polícia.

O poder de polícia ´não é uma faculdade da administração pública, mas sim um dever, um poder-dever, que o Estado não pode renunciar ou transigir.

Quando o Poder Público interfere na órbita do interesse privado para salvaguardar o interesse público, restringindo direitos individuais, atua no exercício do poder de polícia.

A finalidade de todo ato de polícia é voltado ao interesse público. É uma manifestação do princípio da supremacia do interesse público.

Ensinou Celso Antônio Bandeira de Mello(Curso de direito administrativo, 26ª edição, pág. 823) que “o poder de polícia tem, contudo, na quase totalidade dos casos, um sentido realmente negativo, mas em acepção diversa da examinada. É negativo no sentido de que através dele o Poder Público, de regra, não pretende uma atuação do particular, pretende uma abstenção. Por meio dele normalmente não se exige nunca um facere, mas um non facere”.

Trata-se de executoriedade dos atos administrativos unilaterais. Através dele a Administração pode modificar, por sua única vontade, situações jurídicas, sem o consentimento dos atingidos pelo ato.

É a chamada execução forçada na via administrativa, que consiste em uma via jurídica especial, própria do ato administrativo, fazendo a Administração prescindir da declaratio iuris do Poder Judiciário.

A executoriedade, pois, por sua importância, é a manifestação do poder de autotutela da Administração Pública, pelo qual esta tem a possibilidade de realizar, de forma coativa, o provimento no caso de oposição do sujeito passivo.

Pois a executoriedade dos atos administrativos tem fundamental importância no exercício do poder de polícia administrativo, na faculdade que tem a Administração Pública de disciplinar e limitar, em  prol de interesse público adequado, os direitos e liberdades individuais, como já ensinou Caio Tácito (O poder de policia e seus limites. in Rev. De Dir. Adm., volume 27, páginas 1 e seguintes).

A autoexecutoriedade constitui uma das características fundamentais da maior parte dos atos administrativos imperativos, como revelou Flávio Bauer Novelli(Eficácia do ato administrativo, in Revista de Direito Administrativo, volume 61, pág. 36). Será a executoriedade um poder que a lei atribui a certas autoridades administrativas, e não, precisamente, um predicado dos atos dessas mesmas autoridades.

É a chamada execução forçada na via administrativa, que consiste em uma via jurídica especial, própria do ato administrativo, fazendo a Administração prescindir da declaratio iuris pelo Poder Judiciário.

A executoriedade é a manifestação do poder de autotutela da Administração Pública, pelo qual esta tem a possibilidade de realizar, coativamente, o provimento, no caso de oposição do sujeito passivo.

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Por certo a execução forçada por via administrativa pode ser precedida de autorização legal expressa, como ensinou Seabra Fagundes(O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, 1957, páginas 248 e 249).

A execução forçada administrativa propriamente dita é a que se realiza através de meios direitos, que visam a obter o mesmo resultado prático que se teria obtido, se o devedor tivesse cumprido, voluntariamente, a obrigação ou, pelo menos, resultado equivalente. Já as medidas de coerção indireta, aplicáveis, diretamente pela Administração, e, portanto, executórias, salvo as multas, visam a reforçar a execução forçada.

Caso não paga a multa de forma administrativa a Administração e feito o lançamento, onde se apura a procedência do crédito do Estado e a pessoa que lhe é devedora, procedida a respectiva escrituração a débito desta e a crédito do correspondente título ou rubrica do orçamento, a Fazenda Pública deverá ajuizar execução fiscal, nos moldes da Lei nº 8.630/80 cuja execução se dá em cinco anos.

As multas poderão ser reparatórias, ressarcitórias ou cominatórias. São assim as que se limitam a cumprir essa finalidade; além disso, visam a ressarcir a Administração de algum prejuízo que a ação ou inação do administrado lhe causou; que visam a compelir o administrado a uma atuação positiva, se renovam automática e continuadamente até a satisfação da pretensão administrativa. 

Estamos diante de um poder de polícia sancionatório.

Para tanto aplicam-se os seguintes princípios em sua aplicação: a) legalidade, anterioridade, tipicidade, proporcionalidade.

Estão aqui envolvidos os conceitos de infração e sanção administrativa.

A infração é o descumprimento voluntário de uma norma administrativa que prevê sanção cuja imposição é decidida por uma autoridade.

Sanção administrativa é a providência gravosa prevista em caso de incursão de alguém em uma infração administrativa cuja imposição é da alçada da própria administração.

A multa é uma dessas sanções.  

As sanções espelham a atividade repressiva decorrente do poder de polícia. Estão elas difundidas nas diversas leis que disciplinam atividades sujeitas a esse poder

Nessa linha de pensar, as decisões administrativas de polícia são, por sua natureza, executórias. A Administração tem a faculdade de recorrer a meios coercitivos para compelir ao cumprimento de suas determinações. Mas entenda-se que essa coação administrativa, desde que exercida, de forma moderada, e dentro de quadros legais, é permite, nos limites da proporcionalidade.

As providências que assim vierem a ser adotadas se enquadram em parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade.

A razoabilidade é vista na seguinte tipologia:

a)razoabilidade como equidade: exige-se a harmonização da norma geral com o caso individual;

b)razoabilidade como congruência: exige-se a harmonização das normas com suas condições externas de aplicação;

c)a razoabilidade por equivalência: exige-se uma relação de equivalência entre a medida adotada e o critério que a dimensiona.

Há ainda o que se chama de proporcionalidade em sentido estrito, onde se cuida de uma verificação da relação custo-benefício da medida, isto é, da ponderação entre os danos causados e os resultados a serem obtidos. Pesam-se as desvantagens dos meios em relação ás vantagens do fim.

Mas, entenda-se, que a atividade penal, de cunho repressivo, está fora do poder de polícia, não é autoexecutável. A aplicação de medida preventiva ou ainda punitiva penal somente se dará diante dos parâmetros do devido processo legal.

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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