• A história sempre foi negativa aos pobres e negros, e aos indígenas. Mais ainda é perniciosa, a história, às mulheres – e quanto mais negras, mais cruel é essa mesma história. Lembremos que a miscigenação é um parto do estupro coletivo.
• Por outro lado, foram poucos os lapsos de afirmação desses grupos e, obviamente, de negação do que sempre lhes negou dignidade.
• Hoje, em indescritível retrocesso, nega-se tudo que em algum momento, ou instância, procurou negar os processos de negação dos mais frágeis socialmente.
• Tudo que foi positivo, em parco período de tempo, é tratado e aceito como negativo e, vice-versa, tudo que era negativo passou a ser positivo.
• Pratica-se, portanto, uma sistemática negação de tudo que negava os processos negativos, isto é, o fascismo atual prospera sob a lógica da “negação da negação, da negação”.
• A natureza jurídica do Direito à Consciência equivale, politicamente, ao dever de resistir.
Conhecemos a história da negação no país: a escravidão que negava a existência de vida nos escravos, negros aprisionados na África, caçados como marfim, e dos indígenas que foram “definidos e desenhados” como indolentes, preguiçosos e indiferentes ao ritmo do trabalho sonegador da dignidade humana.Muitas fases se passaram neste cursor do capitalismo-escravista, talvez o único modelo econômico moldado nesse hibridismo. O país já foi definido como um ornitorrinco – em boa parte por isso, por articular desastrosamente o capitalismo com a negação do assim chamado trabalho livre.
Conhecemos o fim da escravidão e a fase posterior, em toda sua involução civilizatória, e criador de milhares e milhões de Mulatos e Mulatas – na extensão do pior teor preconceituoso, atacadista de sanhas pecaminosas especialmente às mulheres “cor de jambo” ou sacramentadas como as próprias referências da “cor do pecado”.
Conhecemos as favelas que se multiplicaram na negação de todos aqueles “sem eira, nem beira” e chegamos até aqui: onde falta o Estado, as Políticas Públicas, reinam a miséria humana e o crime organizado. Conhecemos um pouco dessa longa história de negação; esta negação histórica de civilidade e dignidade, sempre recusadas aos pobres, negros e trabalhadores. Mesmo o imigrante europeu, das primeiras levas, era tido como substituto do trabalho escravo. Deles era exigido o mesmo ritmo de exploração e negação de existência.
Portanto, em parte porque o predomínio da negação sempre foi superior historicamente, pode-se dizer que não foi muito longo o período em que acreditamos, de fato, que “o traidor da Constituição é um traidor da Pátria”, como dizia Ulisses Guimarães – Patrono da CF88. Simplesmente, porque foram poucos anos de aderência e entrada no sistema excludente e racista, como vimos com a ampliação das universidades públicas, na criação de cotas para os “excluídos”, na inserção institucional de pobres, negros e indígenas.
Naquele breve interregno da negação histórica do povo, acreditamos que o Processo Civilizatório fosse progredir em sua inclusão da dignidade humana e, infelizmente, nos esquecemos – ainda que momentaneamente – de todo o passado negacionista, excludente e repressor que saltava do capitão do mato, de outrora, aos nossos dias fascistas.
De certo modo, preferimos crer e trabalhar para o Positivo, em prol da defesa e do Espraiamento Constitucional na sociedade civil por exemplo. É mais ou menos natural ao ser humano procurar se apegar ao que “presta”, ao que é positivo, e negar a própria negação. Salvo poucos cientistas, pesquisadores, professores ou cronistas que não se impressionam com os lampejos da história, a imensa maioria das pessoas prefere crer no que lhe faz bem. Nesses casos, falar dos problemas históricos, os mais cruciais, é sinônimo da pura chatice, um sonoro convite ao não-convívio social.
Quem, em sã consciência, no miolo daquele processo de expansão civilizatória (mesmo que tímido), iria apostar suas análises e fixas na revolta do fascismo? Revolta fascista que traria vergonha a todos os insurretos da Revolta da Vacina, dado o grau de desconhecimento da regularidade, obviedade, racionalidade, que enfrentamos atualmente.
Pois bem, da negação da negação – por óbvio positiva: menos com menos tem que dar mais –, a aposta que recaiu na inclusão social, em que se propunha acertar algumas contas com o passado opressor de pobres e negros, passamos, infelizmente, e num piscar de olhos (2016-2020), à “negação da negação, da negação”.
O fascismo tupiniquim, hoje – talvez como ontem – nega tudo, todos e todas, que um dia puderam negar os processos negativos da história política e social do Brasil. Então, fez-se positivo, por meio do fascismo, o que simplesmente nega e, concomitantemente, fez-se negativo, aquilo e aqueles, e aquelas, que procuram negar o que de fato é negativo. Invertemos os polos, como o leitor bem sabe.
Como parte do processo afirmativo, negação da negação, o escravismo reincidente recebeu sua Denegatória Constitucional: o racismo e os “crimes análogos à escravidão” são crimes hediondos, diz a CF88. Todavia, os “tempos sombrios” arvoraram-se da pior tipologia (i)moral do povo, das instituições, da economia disruptiva, financeira, da ignorância suportada como “analfabetismo funcional” para, obviamente, negar tudo e todos, e todas, que pudessem negar os meios de exceção e de exclusão.
Por isso, da negação (escravismo e seus rastros famélicos e famigerados), viemos a conhecer lampejos positivos: Reconhecimento Constitucional afirmativo (Políticas Públicas que fizeram prevalecer alguns direitos fundamentais), a criação do SUS, a ampliação da educação pública, por exemplo.Portanto, devemos somar as Políticas Públicas (afirmativas: negadoras do processo de negação) que negaram os processos negativos da história do país: o positivo atuava como negação, do que sempre foi negativo.
Daí em diante, após este Lampejo Constitucional afirmativo, viemos a conhecer a pior fase negativa da história, exatamente, porque o povo, milhões de pessoas, é crente na sandice de que a verdade responde pela negação de sua existência, de seus direitos, dos fatos mais óbvios. Ou seja, da negação (escravismo) veio um processo que conhecemos afirmativamente, positivamente, e conhecemos como uma Afirmação Constitucional (negação da negação); porém, a partir daí, sobretudo de 2016, viemos num retrocesso total.
Hoje, afirma-se que é bom, o “cidadão de bem” e bem aceito, incorpora-se em todo âmbito societal, tudo aquilo e todos, e todas, que neguem tudo e todos, e todas, que possam negar a existência de meios de exclusão e de negação humana. Ou seja, o positivo hoje é, precisamente, o que designamos constitucionalmente como negativo. Acreditamos, culturalmente falando, que a verdade está na negação (fascismo) da negação (CF88), da negação (escravismo): o fascismo nega a CF88 que, por sua vez, negou a exclusão da dignidade humana.
Como é que vamos sair desse nicho excludente e negacionista da dignidade humana, se os próprios indivíduos mais atingidos na negação material e existencial de suas vidas são, precisamente, aderentes e invocam o pior dos processos excludentes para si mesmos?
A aderência ao escravismo (de brancos e negros, de pobres e ricos) tem efeitos ainda insondados na cultura nacional, mas parece ter resistido, até o fascismo atual, um preceito básico: o fatalismo excludente. Isto é, fatalmente, pobres e negros seriam vitimados pelo fascismo tupiniquim. O problema não é só de lógica, mas também é, substancialmente, pois, sob o fascismo, não se percebe que é positivo tudo que possa negar qualquer processo negativo da dignidade humana. Se a negação da negação é positiva, logo, a negação do positivo (o fascismo/bolsonarismo) só pode ser negativo.
Esta é a base (negacionista), a própria natureza jurídica de suspensão/sustentação moral, (in)constitucional, cultural, social, em que repousa o bolsonarismo.