A falta de fundamentação adequada nas decretações judiciais da quebra do sigilo das conversações telefônicas e telemáticas, apoiadas pela posição jurisprudencial vigente, faz com que este meio de prova altamente invasivo, e que deveria, portanto, ser exceção, venha se tornando cada vez mais a regra do jogo, já operacionalizando-as no início das investigações, em detrimento dos preceitos constitucionais e legais que lhe tratam como exceção. Posições jurisprudenciais à parte, possivelmente haverá retorno ao seu devido lugar, com os impactos trazidos pelo juiz de garantias e a Nova Lei de Abuso de Autoridade.
PALAVRAS-CHAVE: Prova. Interceptação Telefônica e Telemática. Falta de Fundamentação. Jurisprudênica. Juiz das Garantias. Nova Lei de Abuso de Autoridade.
ABSTRACT: The lack of adequate reasoning in the judicial decrees of the breach of the confidentiality of telephone and telematic conversations, supported by the prevailing jurisprudential position, makes this highly invasive evidence, and, which should, therefore, be an exception, become increasingly increasingly the rule of the game, already operationalizing them at the beginning of investigations, to the detriment of the constitutional and legal precepts that treat it as an exception. Jurisprudential positions aside, possibly there will be a return to its proper place, with the impacts brought by the guarantees judge and the New Law of Abuse of Authority.
KEYBORDS: Telephone and Telematics Interception. Lack of Rationale. Jurisprudenic. Guarantee Judge. New Law of Authority Abuse.
SUMÁRIO: Introdução. 1. Da Interceptação do Fluxo das Conversações Telefônicas e Telemáticas. 2. Da Falta de Fundamentação Adequada Para a Concessão das Interceptações. 3. O Encontro Fortuito de Novo Crime ou Criminoso – Serendipidade. 4. A Jurisprudência Vigente em Favor da Ilegalidade. 5. A Nova Lei de Abuso de Autoridade e Seus Possíveis Impactos. 6. A Figura do Juiz de Garantias. 7. Conclusão.
INTRODUÇÃO
Este artigo tem como tema um assunto que afeta diariamente o cotidiano do advogado que trabalha da seara penal. A interceptação do fluxo das conversações telefônicas ou telemáticas é medida processual marcada pela necessidade, brevidade e exceção. Aos magistrados exige-se, portanto, fundamentação adequada tanto em sua decretação inicial como em suas prorrogações. No entanto, o que se constata no cotidiano forense, cada vez mais, são estes preceitos sendo afastados, alçando, com efeito, ao altar, prova de exceção como se de regra fosse. Desestimula-se, com essa prática, medidas preliminares necessárias à sua concessão, como as investigações preliminares da autoria e da materialidade, bem como relativiza-se a necessidade de fundamentação adequada, rígida e temporal.
1 DA INTERCEPTAÇÃO DO FLUXO DAS CONVERSAÇÕES TELEFÔNICAS OU TELEMÁTICAS
A lei de interceptação do fluxo das conversações telefônicas ou telemáticas veio para dar o devido regramento ao inciso XII, parte final, do art. 5º da Constituição Federal. Este objetivo é anunciado já no prelúdio do texto legal.
O inciso XII do art. 5º, reza que (ipsis literis): “É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal[1]”.
Portanto, o direito de sigilo das comunicações é um dos direitos fundamentais elencados no art. 5º da Constituição Federal. Mas no contra ponto de cada direito individual garantido sempre há uma exceção, que encontra respaldo nos direitos da coletividade.
Com o sigilo das comunicações não é diferente. Cabe a exceção mencionada explicitamente no mesmo inciso do art. 5º, quando essas informações forem objeto de prova em investigação criminal ou instrução penal, devendo sempre ser judicialmente autorizada. Por certo, se devem ser juridicamente autorizadas para que sejam revestidas de legalidade, a ordem judicial autorizativa também precisa ser devidamente fundamentada, consoante o art. 93, IX da Carta Magna[2], sob pena de nulidade.
Para quem exerce advocacia na persecução penal é facilmente perceptível que as escutas telefônicas tornaram-se o carro chefe das investigações; principalmente ao longo dos últimos anos com o amplo acesso a telefones celulares.
Não raro, as investigações iniciam-se com a alegação dos órgãos de investigação da ocorrência de uma denúncia anônima que, é certo, ninguém nunca saberá se ocorreu de fato ou não, uma vez que não há como auferir-se o contrário. Outras tantas vezes, iniciam-se com uma notitia criminis frágil que antes de qualquer averiguação preliminar, pede-se logo a autorização de escuta telefônica.
É o que se vê na prática forense, muito embora o artigo 2º da Lei 9.296/96 taxa as hipóteses de em que não é permitida a interceptação telefônica. Segundo o dispositivo, caso não existam indícios razoáveis da autoria ou participação do investigado na infração penal; se a prova puder ser feita por outros meios disponíveis ou se o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção, não será admitida a interceptação das comunicações telefônicas.
Como dito, o art. 2º da referida lei, vem sendo mitigado, pela comodidade de operar-se, tão logo possível, a interceptação dos meios de comunicação, o que vem sendo consentido por juízes e tribunais.
As boas práticas tradicionais de investigação já consagradas, e outros métodos investigativos sempre legítimos, vêm sendo substituídos alarmantemente pela cômoda escuta telefônica, onde os agentes põem-se sentados em suas cadeiras, em ambiente protegido, com cafeteria e ar condicionados ligados. Não obstante, sendo um meio investigativo realmente eficaz - o que não se pode negar-, conseguem renovações, por ordem judicial, com alegações muitas vezes pouco críveis, até mesmo se estendendo a outras pessoas, que sequer foram inicialmente citadas no pedido ou na autorização judicial, alargando-se a investigação e o alcance da quebra de sigilo tanto em profundidade quanto no tempo.
2 DA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO ADEQUADA PARA A CONCESSÃO DAS INTERCEPTAÇÕES
Contudo, o que se observa são meses de interceptação telefônica onde o único objeto buscado acaba sendo os próprios diálogos, e nada relativo à materialidade é trazido em função do insucesso das escutas. O objetivo meio torna-se objetivo fim. Não havendo fato novo trazido pelas escutas, as autorizações judiciais vão sendo concedidas sucessivamente, com a exata mesma fundamentação da primeira, forçando o fracasso a se tornar sucesso, ao custo dos direito fundamentais de sigilo dos investigados, e do respeito a letra da lei.
Dessa forma, especialmente nas investigações de tráfico de drogas, tem-se que das escutas surge uma corrente de novos interlocutores, que passam automaticamente a fazer parte da investigação sem que tenha havido autorização para tanto. O resultado disso é que, com base em uma única fundamentação autorizativa da quebra de sigilo telefônico, acabam por serem monitoradas conversas com outros indivíduos, que se tornam também alvo da investigação, não muitas vezes com seus advogados.
A polícia premeia-se então de haver descoberto, além do tráfico de drogas, uma associação para o tráfico, e o prêmio muitas vezes é a apreensão de pequena quantidade de droga com o primeiro alvo, ou outro interlocutor qualquer. Esta prova da materialidade estende-se a todo o grupo, por maior e mais complexa que seja a investigação. Todos os ouvidos que tenham mencionado algo que possa ser relacionado ao tráfico de drogas são denunciados por tráfico e associação para tráfico.
A perícia das gravações, por óbvio, fica resguardada apenas para os réus mais abastados; para todo o resto presume-se ser sua voz unicamente em razão de o telefone estar registrado em seu nome. Não é necessário dizer que este juízo de presunção é odioso quando se trata de matéria penal.
3 O ENCONTRO FORTUITO DE NOVO CRIME OU CRIMINOSO- SERENDIPIDADE
Estamos falando do encontro fortuito de novo crime ou criminoso, fenômeno da serendipidade, como chamariam os puristas.
Neste tocante, o art. 2º, parágrafo único impõe que (ipsis literis): “Em qualquer hipótese deve ser descrita com clareza a situação objeto da investigação, inclusive com a indicação e qualificação dos investigados, salvo impossibilidade manifesta, devidamente justificada”.
Portanto, a lei exige que quando a autoridade requer a interceptação telefônica ao juiz, devem ser indicados os crimes que estão sendo apurados -a situação objeto da investigação-, e as pessoas que estão sendo investigadas (indicação e qualificação dos investigados). Se durante as interceptações a polícia descobre crimes novos que não foram mencionados no pedido de interceptação ou infrator que não foi indicado no pedido de interceptação, estamos diante do fenômeno da serendipidade, devendo haver decisão autorizativa com nova fundamentação, pois houve, por certo, substancial mudança das circunstâncias investigativas.
Não se está aqui defendendo, por óbvio, que a polícia não deva investigar com todo o afinco que lhe cabe; mas deve fazê-lo dentro da legalidade, e nunca respaldado por um judiciário complacente e acomodado, autorizando a produção de prova tão invasiva, com decisões repetitivas do tipo copia e cola, sem analisar em cada momento as alterações fáticas naturais trazidas pelo tempo. Resulta daí que essa triste realidade, com efeito, alveja as garantias constitucionais do acusado.
4 A JURISPRUDÊNCIA VIGENTE EM FAVOR DA ILEGALIDADE
Decisões judiciais atuais acordam com essas práticas ao argumento de que já foi definido pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça que as interceptações podem ser prorrogadas sucessivas vezes pelo tempo que for necessário para a produção da prova, especialmente quando o caso for complexo e a prova indispensável, sem que a medida configure ofensa aos preceitos da Lei n.º 9.296/96. A fundamentação da prorrogação pode, segundo os tribunais, manter-se idêntica à do pedido original, pois a repetição das razões que justificaram a escuta não constitui, por si só, ilicitude[3]. (citei)
Embora alguns digam que a possibilidade de prorrogações por indefinidas vezes e baseadas em mesma fundamentação seja matéria pacífica tanto no STJ quanto no STF, verdade é que há constantes discussões sobre o tema nestas cortes, levadas principalmente pelo mais previsível: casos que chegam a estes tribunais em que escutas telefônicas perduram por anos. Quando se deparam com a realidade criada por essa aberração jurídica, naturalmente a racionalidade bate à porta.
Há muito se discute sobre o tema, e nas inconstâncias de nossos Tribunais Superiores, muito ainda se verá.
Em julgamento do HABEAS CORPUS Nº 76.686 - PR (2007/0026405-6), ao se manifestarem a respeito do pedido de habeas-corpus, os ministros engrossaram as críticas quanto ao uso exagerado de escutas telefônicas nas investigações policiais. O ministro Paulo Gallotti advertiu que, apesar do desejo comum de ver o combate à criminalidade ganhar força e autoridade, isso deve ser feito pelos meios legais. "Não podemos compactuar com a quebra de um valor constitucional. Dois anos é devassar a vida desta pessoa de uma maneira indescritível. Esta pessoa passa a ser um nada", criticou. A ministra Maria Thereza de Assis Moura, por sua vez, concordou com a fixação de um limite claro à interceptação. Para ela, disso depende a segurança no Estado democrático de direito. Já a desembargadora convocada Jane Silva afirmou não ser possível permitir que as interceptações fujam aos limites da razoabilidade. "É uma devassa proposital à privacidade de alguém", lamentou. O ministro Nilson Naves, que presidia a Sexta Turma, destacou que o tratamento dado é igual, tanto a quem tem quanto a quem não tem. "Haveremos de pagar um preço para que possamos viver em condições democráticas. Que tudo se faça, mas de acordo com a lei", concluiu[4].
Não obstante, em um judiciário que até hoje discute temas como a prisão em segunda instância, no presente tema a jurisprudência também tem suas interpretações conflitantes. No ano de 2018, o ministro Celso de Mello invalidou decisões da Justiça de São Paulo que autorizou e prorrogou, no curso de investigação criminal, interceptações telefônicas sem fundamentação juridicamente idônea[5].
5 A NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE E SEUS POSSÍVEIS IMPACTOS
Por conexão e pertinência, importante mencionar que a nova lei de abuso de autoridade (lei n.º 13.869/19), em seu art. 41[6], alterou o art.10º da Lei 9.296/96. A nova redação do art.10, desta última, passou a ser a seguinte (ipsis literis): constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, promover escuta ambiental ou quebrar segredo de Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena a autoridade judicial que determina a execução de conduta prevista no caput deste artigo com objetivo não autorizado em lei.
A mencionada criminalização de atos investigatórios ilícitos, com finalidades muitas vezes escusas, e uso de informações resguardas pelo sigilo, ações essas nefastas que remontam à inquisição, por um momento faz-nos crer que estaríamos definitivamente retomando um Estado Democrático de Direito pleno, mas não é o que vem ocorrendo, por alarmante que seja. Mas e o que pode ser considerado alarmante em um país que há muito já perdeu o senso do absurdo?
6 A FIGURA DO JUIZ DE GARANTIAS
Em meio a tudo que foi dito, surge um ponto que pode vir a ser de convergência: a criação do Juiz de Garantias pela recentíssima Lei 13.964/2019, conhecida por Lei do Pacote Anticrime.
Entre as atribuições do Juiz de Garantias, responsável civil, penal e administrativo pelo controle de legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais, está a de analisar as cautelares probatórias, cabendo-lhes analisar os pedidos de interceptação telefônica.
Quem sabe o que virá com as futuras substituições de ministros das altas cortes- que logo acontecerão- e da implementação dos juízes de garantias, e suas responsabilidades trazidas pela nova lei de abuso de autoridade.