Princípio da cooperação, convenções processuais e a Covid-19

17/04/2020 às 10:16
Leia nesta página:

Este artigo procura demonstrar a importância da cooperação e das convenções processuais em um cenário excepcional no expediente forense nacional.

    1. CONVENÇÕES PROCESSUAIS: ECONOMIA E COOPERAÇÃO

É sabido que a matéria referente às convenções processuais não surgiu com o CPC/2015, uma vez que o próprio CPC/73 já previa hipóteses nas quais o procedimento poderia ser alterado mediante a vontade das partes[1].

Mas deve-se destacar que o atual código processual inovou ao dar força ao princípio da autonomia da vontade das partes, privilegiando-se a autocomposição, bem como direcionando à realização de acordos processuais, estes que podem ter por objeto o próprio procedimento a ser seguido pelas partes e pelo magistrado. Destacam-se, nesse sentido, os arts. 190[2] e 200[3] do citado texto legal.

ANTONIO DO PASSO CABRAL, de forma objetiva, muito bem conceitua as convenções processuais:

Convenção (ou acordo) processual é o negócio jurídico plurilateral, pelo qual as partes, antes ou durante o processo e sem a necessidade da intermediação de nenhum outro sujeito, determinam a criação, modificação e extinção de situações jurídicas processuais, ou alteram o procedimento.[4]

O uso do mencionado instrumento deve ser valorizado e estimulado pois tende a dar maior agilidade e efetividade à prestação jurisdicional, uma vez que flexibilizado o procedimento em razão das especificidades do caso concreto, tem-se, via de regra, maior dinamismo na tramitação e redução de custos.

Veja-se que a economia não só se restringe ao tempo de entrega da tutela pretendida pelas partes. Abarcam-se, também, as despesas e as custas processuais.

Outrossim, a utilização dos acordos processuais confere, sobretudo, maior segurança jurídica. Nesse sentido, ANTONIO DO PASSO CABRAL afirma que “os acordos processuais emprestam segurança e previsibilidade ao tráfego jurídico porque incrementam a certeza da aplicação e regras processuais (se as regras legais tivessem de ser aplicadas e interpretadas, o resultado seria incerto)[5]”.

A celeridade processual deixou de ser apenas um princípio, como agora é norma legal prevista no art. 4º, do CPC[6]. E as convenções processuais materializam não apenas os princípios da economia e celeridade, como também o do devido processo legal, na medida em que evita a prática de atos processuais onerosos, desnecessários e imprestáveis. Por consequência, o processamento da demanda tende a ser mais célere, garantindo uma rápida solução da lide[7].

Mas, para tanto, faz-se imprescindível a cooperação das partes, conforme disposto nos arts. 6º, 7º, 9º e 10, do CPC. Isso porque o CPC/2015 instituiu, como meio primário de resolução do conflito, a autocomposição, de modo a tentar diminuir a litigiosidade processual.

Desse modo, em um sistema processual centrado na atuação das partes, o processo civil torna-se uma comunidade de trabalho[8], em que se otimizam os debates entre todos os sujeitos do processo, inclusive o magistrado. Logo, espera-se que todos atuem de boa-fé.

Tratando-se, pois, de instrumento que traz consigo segurança jurídica e que confere maior eficiência e celeridade ao procedimento, as convenções processuais são armas valiosas à disposição dos operadores do Direito, principalmente em momentos como o presente, em que o andamento processual encontra-se prejudicado.

Mas para que se obtenha celeridade e economia processuais, faz-se imprescindível a cooperação entre os sujeitos do processo.

    2. AS CONVENÇÕES PROCESSUAIS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Em tempos de pandemia, como os presentes, os efeitos da propagação da COVID-19 sobre a população – além das consequências na economia nacional e nos sistemas de saúde pública – podem trazer desafios à prestação jurisdicional, aumentando o nível de incerteza.

Certo é que o trâmite da maioria das ações judiciais encontra-se prejudicado em razão da alteração do regime de funcionamento do Poder Judiciário como um todo e que o desequilíbrio das relações contratuais pode ensejar um enorme movimento de judicialização.

Nesse cenário, portanto, mostra-se de enorme valia a utilização das convenções processuais, calcada, sempre, nos princípios da boa-fé e da cooperação processual – não apenas para com o juiz, como também das partes “entre si” [9]. E em tempos de crise, a colaboração deve-se estar presente, como nunca, no processo.

E é aí que entra a criatividade e a adaptabilidade dos advogados em customizar o procedimento ao caso concreto, com suas próprias especificidades e necessidades, as quais podem não ser as existentes em outras demandas com diferentes contextos.

Considerando notadamente as demandas de revisão contratual e negócios jurídicos de um modo geral – o que certamente decorrerá da pandemia da COVID-19 –, não há como negar a importância das convenções processuais. Justamente por valorar a autodeterminação das partes, enfatizar a boa-fé processual e concorrer para uma solução mais célere e eficiente da demanda (a depender, claro, do alcance do negócio a ser firmado).

Hipóteses de acordos processuais passíveis de serem aplicados a milhares de demandas não faltam.

Em tempos de expediente suspenso nas sedes dos tribunais (implantação do teletrabalho, ou “home office”), nada obsta às partes realizar adaptações formais no procedimento para que este melhor atenda os seus interesses – mas claro, dentro da legalidade a ser observada pelo magistrado.

Assim, as audiências, sejam elas de conciliação ou mesmo de instrução e julgamento, por exemplo, poderiam ser realizadas por meios eletrônicos (não faltam programas e aplicativos disponíveis para computadores e celulares). E não apenas as audiências, como também os despachos com os julgadores podem ser realizados através de vídeo chamadas.

O objetivo deve ser sempre viabilizar a prática do ato e o acesso ao sistema do tribunal àqueles que não estejam conseguindo de maneira física.

Inclusive, desde o ano de 2013, a Ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), vem realizando o atendimento a advogados pela internet, por meio do aplicativo Skype[10]. Ou seja, ainda em tempos de “normalidade” já se mostrava possível, aos advogados, poder despachar com a Ministra Nancy Andrighi de casa ou do escritório, mesmo que longe de Brasília/DF.

Cabe destacar, também, estar a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) atenta aos impactos decorrentes da COVID-19. Diante da atual situação na qual vivem os brasileiros, a PGFN disponibilizou atendimento remoto por meio de telefone e de endereço eletrônico (e-mail) para, caso seja de interesse do contribuinte, confeccionar um negócio jurídico processual de forma a melhor regularizar pendências existentes em uma demanda judicial em curso[11].

Acrescente-se, ainda, que poderiam as partes apresentar, em consenso, a relação de matérias controvertidas, bem como incontroversas, principalmente no sentido de propiciar o julgamento antecipado da lide. Tal hipótese, por si só, tem o condão de eliminar futura alegação de nulidade da decisão por cerceamento de defesa.

Cumpre pontuar que não apenas é possível, como salutar, adaptar o procedimento antes mesmo de instaurada a demanda judicial, ou seja, preventivamente e no contrato em que se estabeleceram as obrigações de cada uma das partes.

Nesse sentido, destacam-se: a cláusula de eleição de foro; a citação judicial através de aplicativo de mensagens instantâneas (“Whatsapp” e “Telegram”, por exemplo); a escolha do perito em caso de ser necessário conhecimento técnico; distribuição sobre os custos do processo judicial; etc.

Uma maior utilização de convenções processuais inseridas em um negócio jurídico (um contrato de compra e venda, por exemplo), ou seja, firmadas antes de instaurada uma demanda judicial e normalmente anterior ao surgimento de alguma controvérsia, podem ser uma lição decorrente do atual momento de crise.

As convenções pré-processuais mostram-se de enorme valia e tendem a ser inseridas nos contratos de direito material. Isso porque elas são definidas e acordadas antes mesmo de instaurado o processo. Como lembra ANTONIO DO PASSO CABRAL,

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no momento da contratação, sem as paixões que o litígio pode gerar, fica mais fácil que os convenentes concordem a respeito do melhor desenho de um processo para um futuro e hipotético cenário de descumprimento das obrigações.[12]

Por fim mister destacar a importância do papel de fomento do magistrado, este que também tem como dever controlar a validade das convenções processuais celebradas pelas partes (art. 190. Parágrafo único). Não se trata de um controle de conveniência, mas estritamente de legalidade.

Cuidando-se de convenção processual, cabe ao julgador fomentar a regra contida no art. 6º, do CPC[13], que, claro, não se restringe aos negócios processuais, mas a todo e qualquer procedimento judicial.

Mas tratando-se especificamente das convenções processuais, assevera ANTONIO DO PASSO CABRAL que “o fomento do Estado-juiz à celebração das convenções processuais será especialmente relevante nos acordos pactuados incidentalmente no processo[14], na medida em que o legislador adotou, no Novo Código de Processo Civil, o incentivo à utilização de instrumentos autocompositivos.

    CONCLUSÃO

Diante do regime de plantão adotado pelos tribunais pátrios, as convenções processuais podem ser instrumentos interessantes para resolver, em um tempo adequado, problemas complexos e que exigem coordenação.

Necessário que os operadores do Direito, sobretudo os advogados, esforcem-se para encontrar soluções que deem celeridade às demandas judiciais existentes e para evitar que novas ações sejam ajuizadas. Sobretudo, mister se fez a cooperação entre os sujeitos do processo.

Portanto, a possibilidade adaptativa do procedimento com fundamento na vontade das partes, em um cenário de emergência, mostra-se cada vez mais interessante e necessário, especialmente com o uso das convenções processuais.


[1]CPC/73 estabelecia convenções processuais típicos, como o foro de eleição (art. 111), a convenção sobre o ônus da prova (art. 333, parágrafo único), e ainda a suspensão do processo para negociação de acordo (art. 265, II).

[2] Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.

Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.

[3] Art. 200. Os atos das partes consistentes em declarações unilaterais ou bilaterais de vontade produzem imediatamente a constituição, modificação ou extinção de direitos processuais.

Parágrafo único. A desistência da ação só produzirá efeitos após homologação judicial.

[4] CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais – 2 ed. rev., atual. e ampl. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2018. P. 74.

[5] CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais – 2 ed. rev., atual. e ampl. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2018. P. 239.

[6] Art. 4º As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.

[7] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – vol. I. 58 ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2017. P. 65.

[8] SOUZA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil. 2. ed. Lisboa: Lex, 1997 p. 62; THEODORO JUNIOR, Humberto. Op cit., p. 83.

[9] CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais – 2 ed. rev., atual. e ampl. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2018. P. 217.

[10] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-jan-07/skype-ministra-nancy-andrighi-multiplica-audiencias-advogados Acesso em 14/04/2020

[11] Disponível em: http://www.pgfn.fazenda.gov.br/noticias/2020/pgfn-oferece-novos-canais-de-atendimento-em-decorrencia-da-pandemia-causada-pelo-novo-coronavirus Acesso em 14/04/2020

[12] CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais – 2 ed. rev., atual. e ampl. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2018. P. 84-85.

[13] Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.

[14] CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais – 2 ed. rev., atual. e ampl. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2018. P. 257.

Sobre o autor
Gabriel Pellegrino Neves

Advogado, bacharel em Direito pela UFMG. Pós-graduando em Direito Processual Civil pela faculdade CEDIN.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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