Anotações sobre o Projeto de Lei n. 4.857/2019

17/04/2020 às 11:36
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O texto visa a apresentar algumas reflexões acerca do projeto de lei que prevê a reorganização de dívidas de pessoas físicas e jurídicas não empresárias.

ANOTAÇÕES SOBRE O PROJETO DE LEI N. 4.857/2019

 

                     Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n. 4.857/2019, que dispõe acerca do plano geral de reorganização e regularização de dívidas de pessoas físicas e jurídicas não empresárias[1], bem como institui o processo de recomeço econômico, prevendo também a eventual liquidação de ativos [declaração de recomeço do devedor].

                        O presente tem o propósito de traçar algumas linhas acerca de alguns dispositivos do aludido projeto, cabendo desde logo louvar a iniciativa [aqui não entrando na questão de fundo] do legislador, na medida em que a atual crise já causou efeitos deletérios à população mundial . A tendência, salvo engano, é a liquidação de ativos de pessoas físicas com endividamento; a situação, especialmente do brasileiro, já era precária e agora com a questão sanitária, pode haver mais consequências deletérias. Portanto, caso alguma lei destinada à reestruturação de dívidas de pessoas física ingresse no ordenamento jurídico, certamente será aplaudida.

                        Com efeito, o projeto é composto por 47 dispositivos, sendo que não afasta a possibilidade de devedor e credores buscarem alternativas fora do Judiciário para fins de conciliação e mediação, prevendo também o recomeço econômico-financeiro do insolvente.

                        O projeto prevê sistemas para reorganização das dívidas e liquidação dos ativos do insolvente. O primeiro, prevê o perdão de, no máximo, 50% da dívida em até 5 anos (limite para pagamento). Quando inexistir renda nem perspectiva de quitação dos débitos (ao menos 50%) nos mesmos 5 anos, há o regime de liquidação dos ativos e liberação do restante das dívidas [recomeço econômico-financeiro]. Há o stay period por 180 dias, contados da homologação judicial do plano.

                        A insolvência é presumida quando o devedor, executado por quantia certa, não dispuser de bens livres para nomeação à penhora ou lhe forem arrestados ativos, não subsistindo outros livres e desembaraçados, em montante suficiente para fazer face às suas dívidas. A lei estabelece também que será o caso quando não houver direitos livres.

                        O devedor, que na data do ajuizamento do pedido de reorganização, possuir renda, bens e direitos capazes de suportar ao menos 50% do valor do principal de todas as dívidas vencidas em vincendas até 5 anos após a distribuição, “deverá” juntar plano de reestruturação[2], a ser quitado no prazo de 5 anos quanto as dívidas vencidas[3] e vincendas de trato sucessivo, constantes do documento. Tal como na Lei 11.101/05, o texto apresenta ordem de pagamento dos créditos, sendo que em primeiro lugar está a pensão alimentícia até o limite de 5 salários, sendo que os créditos com garantia real não se sujeitam ao plano. Em resumo, abarca apenas: pensão alimentícia, créditos trabalhistas e tributários (o lei é genérico) vincendos e quirografários vencidos. O §2º do art. 4º é bastante similar ao art. 49, §3º da Lei 11.101/05. No tocante aos créditos por pensão alimentícia e trabalhista, o excedente a 5 salários mínimos serão quirografários, cujo pagamento deverá ser mensal, na mesma proporção que os vencidos quirografários.

                     Os vencidos (alimentícia, trabalhista e tributário) estão fora do plano, devendo estar integralmente quitados ou parcelados, sem parcelas vencidas e não pagas, quando do ajuizamento do pedido. A primeira parcela há de ser paga no prazo máximo de 180 dias a contar da homologação judicial do plano e, caso os bens e direitos do devedor não permitam o pagamento do principal no prazo de 5 anos, contados da homologação, o devedor poderá prever desconto sobre este principal, respeitado o limite mínimo de pagamento de 50% das dívidas [há perdão de 50% da dívida]. Este plano, passível de revisão no decorrer da execução[4], poderá prever a reserva de valor para subsistência do devedor. O plano precisa ser apresentando quando da distribuição do pedido, pelo devedor, e não está sujeito à apreciação de assembleia de credores.

Destaque-se que o pedido de reorganização judicial poderá ser formulado pelo credor. Entrementes, crê-se que há falhas, porquanto: (i) o plano só poderá ser apresentado pelo devedor, salvo engano; (ii) nada esclarece acerca de eventual consórcio entre credores para formulação do pleito; (iii) a respeito dos critérios para nomeação, destituição, substituição, responsabilização e remuneração do administrador judicial nada é dito e o mesmo ocorre em relação a nomeação de credor em processo de recomeço econômico-financeiro; (iv) os credores adstritos ao processo de reorganização poderão fazer constar a situação de insolvência do devedor em cadastros de crédito, pelo prazo de até 7 anos contados da data do trânsito em julgado da sentença (art. 11), aumentado em dois anos o previsto na Lei 8.078/1990, art. 43§1º; quanto à liquidação da massa falida, o prazo se estende para 10 anos.

  Ora, se o prazo máximo para quitação do plano é de 5 anos, em tese, não há parâmetro para determinar a inclusão do nome do devedor por 7  ou 10 anos; (v) não traça regras a respeito do procedimento de arrecadação/avaliação de ativos/direitos; (vi) somente prevê, como modalidade de alienação de ativos, o leilão público; (vii) permite a arrecadação de imóvel residencial próprio, utilizado para moradia, cujo valor seja acima do valor médio de mercado do município em que situado, ou valor superior a 500 salários mínimos nacionais. Em tal hipótese, haverá a venda do imóvel, garantindo-se ao devedor o equivalente pecuniário ao valor médio de mercado para que possa adquirir outro. O valor remanescente será utilizado para pagamento dos débitos. Poderá o juiz reconhecer como bem de família do imóvel cujo valor ultrapasse a 500 salários mínimos nacionais. Além da vagueza do texto, o projeto permite a alienação de bem de família, sendo possível que tal dispositivo será vetado, diante, principalmente, dos ditames de cunho constitucional.

                        Ao receber a petição inicial do pedido de reorganização poderá o juiz (i) determinar a citação do devedor ou credores para que se pronunciem, querendo, em 10 dias; (ii) nomeará administrador judicial; (iii) determinará a publicação de edital para que credores se pronunciem no prazo de 10 dias. Por outro lado, o juiz poderá indeferir a inicial ou determinar que seja emendada, conforme regras do Código de Processo Civil[5]. O art. 11, salvo engano, contém algumas questões incorretas, porquanto deixa a critério do juiz a análise dos pressupostos processuais para muito depois do primeiro despacho a ser proferido.  Eventual recurso contra a sentença terá apenas efeito devolutivo[6].

                        Na hipótese do art. 11, inc. III, estabelece o art. 16 que poderá o juiz, em sentença, determinar a liquidação da massa [declaração de recomeço do devedor], caso o devedor tenha declarado em sua inicial que não possui bens disponíveis, direitos ou renda para apresentar o plano, ou que são inferiores a 50% do total devido. Aqui, uma incongruência, porquanto, em tais hipóteses, o juiz poderia, por celeridade e economia processual, determinar, já quando profere a primeira decisão, determinar a liquidação dos ativos e não aguardar todo o processamento para só depois assim agir. Além disso, o devedor, pode incorrer em crime caso omita algum dado ou fato [acerca dos crimes previstos no projeto, nada será aqui escrito].

                        A liquidação dos ativos [recomeço econômico-financeiro], pode ser requerida pelo devedor, inventariante ou credor[7]. Os cônjuges ou conviventes em união estável em regime de comunhão universal ou parcial de bens podem formular o pedido em conjunto.

                      Em linhas gerais, (i) produz o vencimento antecipado das dívidas; (ii) determinar a arrecadação dos bens; (iii)  o perdão ao insolvente da parcela das dívidas que não forem passíveis de pagamento por meio da liquidação.

                        O tema será abordado em outra oportunidade.

 


[1] Sociedade simples, por exemplo.

[2] §1º Presume-se incluído no caput o devedor que possua renda média mensal igual ou superior à renda média do Estado em que tenha seu domicílio.

§2º Caso o devedor tenha mais de um domicílio, aplicar-se-á o maior valor de renda média dentre os Estados em que seja domiciliado o devedor.

§3º A renda média mensal do devedor será calculada a partir da média dos valores por ele recebidos nos 6 (seis) meses anteriores à data de ajuizamento da ação, excluídas:

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I – despesas mensais razoáveis com alimentação, educação, saúde, transporte, vestuário, habitação e outras necessárias à sobrevivência do devedor, em consonância com o disposto no art. 6º, §1º; e

II – despesas mensais razoáveis com dependentes, até o limite de 25% (vinte e cinco por cento) da renda média estadual.

§4º Para os efeitos deste artigo, será considerada a renda média domiciliar per capita mensal de cada Estado divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

§5º A presunção a que se refere o §1º poderá ser ilidida mediante comprovação de que o devedor não será capaz de honrar ao menos 50% (cinquenta por cento) de suas dívidas no prazo de 5 (cinco) anos contados da data da sentença que reconhecer a situação de insolvência, caso em que deverá se submeter ao processo de liquidação de massa, nos termos do art. 16 e seguintes.

§6º É facultado aos credores perdoar parcialmente as dívidas, de modo que o devedor possa se enquadrar no caput, o que deverá ser objeto de acordo previamente ao ajuizamento da ação.

§7º Para o cálculo estabelecido no caput, as dívidas vencidas do devedor poderão ser atualizadas monetariamente nos termos dos contratos firmados ou, na sua ausência, do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), devendo ser excluídas cláusulas penais e juros de mora.

[3] O plano deverá assegurar aos credores, no mínimo o valor principal do débito, a ser corrigido monetariamente.

[4] Art. 7º O devedor poderá requerer ao juiz revisão do plano quando, no decorrer da sua execução, advier circunstância imprevista, ou prevista de efeitos incalculáveis, que impeçam o devedor de seguir cumprindo o plano tal como originalmente homologado.

Parágrafo único. Incluem-se no caput situações como doença superveniente do devedor que o incapacite para o trabalho, ou de pessoa da família economicamente dependente do devedor, bem como a demissão do devedor ou perda involuntária da fonte principal de trabalho ou renda.

[5] Não cabe, desde logo, a determinação de liquidação da massa falida, por força dos artigos 11, inc. III, e 16.

[6] Art. 11 Em sua sentença o juiz poderá:

 I – julgar procedente a ação, homologando o plano de reorganização de dívidas, observado o disposto no §1º;

II – julgar improcedente a ação, por ausência de insolvabilidade do devedor;

III – julgar improcedente a ação, rejeitando o plano de reorganização de dívidas e determinando o processamento do feito com liquidação da massa; ou

IV – extinguir a ação sem julgamento de mérito, quando ausente qualquer dos pressupostos para o seu processamento.

§1º Acerca do plano de reorganização de dívidas, o juiz poderá:

I – homologar o plano apresentado pelo devedor em sua petição inicial;

II – homologar o plano após as alterações sugeridas pelo administrador judicial; ou

III – homologar o plano, impondo alterações diversas das sugeridas pelo administrador judicial.

§2º Na sentença, o juiz decidirá fundamentadamente acerca das impugnações ao plano oferecidas pelos credores.

Art. 12 A apelação de qualquer credor contra a sentença que decida sobre o plano de reorganização de dívidas será recebida apenas no efeito devolutivo.

Art. 13 A apelação do devedor será recebida no duplo efeito.

[7] Deve anexar título executivo judicial ou extrajudicial vencido e não pago, bem como evidência de que tenha tentado, sem sucesso, receber judicialmente o valor do débito.

Sobre o autor
Carlos Roberto Claro

Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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