O BOLSONARISMO SENTOU COM OS CAPITÃES DO SOFÁ

17/04/2020 às 17:02
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O lado obscuro, interligado, entre absenteísmo político e fascismo.

Na vida de todo mundo, erramos e acertamos, agindo ou nos omitindo, em movimento amplo ou contido, ou simplesmente deixando de fazer. Às vezes a melhor solução realmente é nada fazer, pois, na omissão programada, refletimos em precaução e, preventivamente, evitamos um mal maior.
Em muitas dessas circunstâncias o ideal e necessário é agir com Prudência ou cautela, medindo os passos, em ritmo mais lento e controlado, mais observando que propriamente atuando. Todavia, da cautela à omissão, estamos a um passo do crime.
A cautela de muitos, no âmbito político, chegou ao limite inqualificável, pois, se em várias situações pode-se entender que se refugue o processo político – como o cavalo que desiste do salto –, em muitos outros momentos a omissão é desastrosa.
Assim foi em 2018, quando uma parte significativa dos eleitores deliberou por anular seus votos; a alegação mais comum era: “ninguém, nenhum candidato me representa no segundo turno”.
Pois bem, ocorre que não foi uma eleição comum, entre duas cores, siglas ou bandeiras políticas, em que o sujeito pudesse escolher tão “livremente” entre duas ideologias expostas numa gôndola do varejo político.
Foi um processo eleitoral em que dois processos contraditórios estavam muito apresentados, isto é, não se tratou de escolher entre dois programas políticos (ou não), situação em que o voto nulo resolveria.
A eleição de 2018 trouxe uma singularidade política que exigia uma imensa responsabilidade política: ali estavam postadas duas representações de ideários absolutamente diferentes, antagônicas, acerca do humano e da dignidade, da inclusão e da exclusão, da negação dos mecanismos predatórios, de um lado e, de outro, a nítida ilustração de que as vidas humanas (especialmente de pobres e negros) vale muito menos do que o capital determinante.
Nesta situação, a omissão é absurdamente criminosa, equipara-se a ver uma tentativa de consumação criminosa e nada fazer, sabendo-se que um gesto simples (“votar por exclusão”, chamar a polícia) evitaria o mal maior e, exatamente por isso, há um crime de omissão, quando há um dever de agir.
Em procedimento de analogia, em que abundam as semelhanças, veremos claramente como o fascista disfarçado de liberal – em seu liberalismo tosco de “deixar tudo passar” – puxou uma poltrona confortável, tipo classe média sem Ilustração Política, e sentou na própria consciência política (nula, por sinal, como seu voto em 2018).
Como sabemos, no caso da política, quando dois projetos são confrontados e são refratários, avessos em todos os princípios, humanizar ou desumanizar, “remediar” ou brutalizar, mesmo que o indivíduo não vote por afinidade, em livre escolha, deve-se votar por exclusão.
Neste sentido, na escolha por exclusão, e em 2018 foi patente, eliminar-se-ia o mal maior, aquele que aderiu às pautas do fascismo desde a origem. Afinal, o cenário, para os muito céticos poderia estar assim desenhado: o mal menor versus a desumanidade e a venda da vida humana no matadouro da indignidade e depois na devastadora COVID-19. O novo ministro da saúde já declarou que vai escolher a vida de jovens, ao invés dos idosos, ao liberar recursos para casos graves da COVID-19.
Voltando a 2018, o que fizeram os “não-representados”? Nada. Sentaram, ausentaram-se e flertaram com o caos fascista diante da obrigação de escolher quem pudesse garantir o mínimo de existência e dignidade humana.
No quadro específico de 2018, quem se ausentou, compactuou sim com o fascismo – por omissão – e comprometeu-se “como Pilatos”, junto aos bárbaros crimes cometidos contra a democracia e contra a Humanidade. Em 2020, como omissos, são responsáveis por toda a necropolítica anunciada: quantos milhares irão morrer?
Historicamente, o movimento sufragista foi revolucionário e constituinte de direitos de isonomia, de direitos políticos, de nova concepção de sociabilidade que se propôs desde logo a remodelar o poder de mando, mormente pela participação feminina em sociedade abertamente machista e exclusivista.
No caso brasileiro, historicamente, os omissos foram complacentes com o escravismo, com a ditadura de 1964 e uma infinidade de momentos tenebrosos da sociedade brasileira. Certamente não haverá coincidência se muitos desses omissos, de 2018, estiveram compartilhando o impedimento de 2016.
Isto é, os omissos de 2018 compartilham o bolsonarismo faz muito tempo.
Tudo em nome da Pátria dirão os fascistas. Certo. Mas, tudo em nome da zona de conforto repetirão, em inércia, os mesmos acomodados capitães do sofá que aniquilaram seu votos em 2018.
O que fazer com esses, também, que sequer foram capazes de enfrentar o fascismo em seus votos? Não são esses mesmos capitães do sofá – eleitores inúteis – que clamam por “mensagens positivas” no WhatsApp e no Facebook?
Especialmente esses capitães do sofá – que, bem sentados, pedem cervejas aos filhos menores ou à mulher – têm de saber que o analfabetismo político, a ignorância dos assuntos de Estado e da vida civil, tem limite estreito, afinal, um dia o capitão do mato bate à sua porta – ou à dos seus filhos –, ou a contaminação que algum aloprado disse que o povo crente estaria isento ou curado.
Na política realista, a hipocrisia é a primeira vítima. No caos, na pandemia, no pandemônio, não há muro de arrimo para se sentar em desequilíbrio imoral. Nem Muro das Lamentações, sobretudo, se não se fez o óbvio, qual seja, não dar sustentação ao fascismo, em ação direta ou por omissão.
Na real, na política, no sentido de “fazer-se política”, o esconde-esconde dos hipócritas e de seus placebos imorais saem de fábrica com data de validade vencida. Na política, o hipócrita de hoje é o X-9 de amanhã.
Os analfabetos políticos de Brecht ou o Zé Ninguém de Reich não enganam, só não caíram na real, isto é, logo serão servidos no café da manhã do realismo político, ou seja, também serão devorados pelo fascismo.
Então, o que fazer com os placebos de cidadania já são outros quinhentos de ação política e educativa – e só o futuro dirá, em 20 ou 30 anos, se é que algo será feito para conter aqueles e aquelas, cidadãos e cidadãs do sofá que sempre “acoitaram” o capitão do mato.
Há milhões que aceitaram a exclusão dos direitos de cidadania, propriamente os bolsonaristas, mas há outros milhões que viram o fascismo tomar o poder e agora se enclausuram na pior hipocrisia: a política da “bondade” via redes sociais. Como é que se cobra dever de agir político a um sujeito que não se reporta ao Outro, nem em processo de analogia?
 Em um exemplo de analogia jurídica, no entanto, deveria saber o cidadão do sofá, alçado à condição de capitão do mato sentado em berço esplêndido, que, com poder coercitivo e legitimidade adesiva, agregadora de valores, pode-se dizer que a regra aplicada à obrigatoriedade do voto, como um mínimo de contributo político a ser exigido do sujeito de direitos, aplica-se no dever de se combater o fascismo.
O voto livre, secreto, periódico e soberano é evidentemente uma cláusula pétrea constitucional, porque, muito além de ser um Direito, recobre-se do dever de participar na construção efetiva, ativa, da democracia e da cidadania. É um Direito tão fundamental que se apresenta como dever de exercício. Trata-se, então, de um direito-dever.
É esta lógica que deve permear – ou deveria – a consciência dormente do capitão do sofá, aquele que pede cerveja, enquanto alisa a grande preguiça vendo televisão ou jogando alguma besteira no celular.
Porém, esta regra ou lógica parece não se aplicar a esses capitães do sofá, mesmo com o barquinho naufragando, ou se aplica mas somente por meio dos subterfúgios da própria Lei Constitucional que lhes permite fustigar os deveres da democracia.
E quais são esses subterfúgios (exceções) ao direito-dever de participação cidadã na construção da democracia? Trata-se do voto nulo, em branco ou abstenção. Foi precisamente, numericamente, esta massa que desqualificou a democracia e garantiu a margem segura de ganho eleitoral ao bolsonarismo em 2018.
É este mesmo capitão do sofá que refugou a democracia, fez-se de contente no impedimento de 2016, que hoje envia mensagens de “composição de bondade, com os bolsonarista”.
Dizem eles, vamos passar mensagens positivas, porque atraímos positividades. Pois bem, o que haveria de positivo no bolsonarismo, fascismo, que pudéssemos compartilhar com as pessoas que prezamos e queremos seu bem?
 Como é que vamos desnaturalizar a anormalidade? Todas elas. Começando pelo regressivo pensamento da isenção política, como se apenas sentado no sofá, no esplendor da inércia de uma vida civil modorrenta, o capitão do mato travestido de liberal pudesse encontrar um blasé reconfortante – o que fazer para desconstruir as bases inerciais do bolsonarismo e do absenteísmo político?
 Serão precisos outros 500 anos de história política?
 

Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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