A Aplicação de Sanção Disciplinar ao Advogado do Réu, pelo Juiz da Causa, no Âmbito do Processo Penal

Divagações acerca da constitucionalidade e da harmonia jurídica do disposto no Artigo 265, do Código de Processo Penal, frente à Constituição Federal, a lei 8.906/94, à Lei 4.898/65 e a Jurisprudência

18/04/2020 às 00:06
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O descabimento da penalização de caráter disciplinar, imposta por magistrado face a Advogado, na aplicação do disposto no Artigo 265, do Código de Processo Penal

Introdução:

Trata-se de uma breve análise acerca do cabimento da aplicação da multa havida no Art. 265, do Código de Processo Penal, frente à Carta Magna, bem como face à legislação infraconstitucional e a Jurisprudência dominante, sobre o assunto.

Demonstraremos, de modo conciso, que tal penalização é incabível, em nosso ordenamento, a vista de vários elementos de cunho constitucional, legal, ético, doutrinário e jurisprudencial.

I – Da Natureza da Relação Entre Juízes e Advogados

É fato que a independência e a liberdade de convencimento pessoal dos Magistrados, na prolatação de suas decisões, é um dos pilares básicos do Estado Democrático de Direito, assim como o é a inviolabilidade e a independência dos Advogados, no exercício profissional, perante qualquer órgão ou Tribunal.

Contudo, ainda que a Lei preveja no caput do Artigo 6º, da Lei 9.806/94, a igualdade hierárquica entre os operadores do Direito, para o leigo, presente à uma audiência, ao seu ver, isento da preparação acadêmico-jurídica, parecer-lhe-á que, em consequência do fato do magistrado presidir aquele ato, deverá possuir, ele, uma posição hierárquica superior a todos os demais presentes.

É fato que o juiz assume a posição central no desenrolar do processo, conduzindo-o para o fim de apurar-se a verdade que será dita (verus dictum), ao final, quando da sentença que porá fim à lide.

Ainda, tomando-se o pensamento de Francesco Carnelutti, quando se referia à conciliação como modo de solução de controvérsias, temos que "conciliação é a sentença dada pelas partes, e a sentença é a conciliação imposta pelo juiz".

Este mesmo caráter impositivo da atuação do magistrado, na condução do processo, empresta a este, enquanto representante do Estado na composição dos conflitos de interesses que lhes são apresentados, inclusive, tipificando-se como “desobediência” (Art. 330, CP), o não acatamento de suas determinações, uma aura de autoridade, a qual muitas das vezes é voltada, de forma ilegal e até inconstitucional, face aos Advogados.

Enquanto ator indispensável à administração da Justiça, o Advogado é inviolável por seus atos e manifestações, no limite da Lei, segundo preceitua o Art. 133, da CF. Por sua vez, o Art. 2º, §3º, do Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei 9.806/94), replica este dispositivo constitucional.

Esta prerrogativa constitucional dos Advogados, e a liberdade inerente ao seu exercício, concedem, a estes, uma característica, à vista dos magistrados e dos membros do Ministério Público, de empecilho ao seu trabalho, como um entrave à liberdade destes servidores, na busca daquilo que pensam ser o justo, principalmente, e de forma mais veemente, na esfera criminal.

Esta postura autoritária e, de tom pueril, destes operadores do Direito, esbarra, de forma clara no princípio constitucional da indispensabilidade do Advogado à administração da Justiça. Não há como proferir uma decisão justa sobre a sorte de um réu, sem que haja alguém que seja chamado a falar por ele (ad vocatus), e junto aos demais atores do processo, atuar na produção da verdade que será, ao final, proferida na sentença, o veredicto!

O ressentimento com que os magistrados, por vezes, tratam os Advogados, no curso dos processos é, de forma clara, uma afronta ao disposto no §único, do Artigo 6º, da Lei 9.806/94. Sabemos, em nossa seara diária pelos corredores dos Fora, o quão maltratado é o Advogado, principalmente no campo do direito penal, onde se lhe empresta a pecha de “amigo de bandidos”, “defensor de assassinos (sic)”, e outras de nível muito mais chulo e grosseiro.

Tomando-se o conceito de hierarquia, temos que, esta, se resume a uma ordem de subordinação de poderes, ou seja, uma ordem de elementos de acordo com o seu valor e importância. Neste sentido, a hierarquia se faz como uma gradação de pessoas, animais ou objetos em função de critérios de classe, tipologia, categoria ou outro tópico que permita desenvolver um sistema de classificação, associando-se, assim à figura do poder, o qual, por si, representa a faculdade para fazer algo ou o domínio para mandar.

Por conseguinte, a ausência de hierarquia entre Advogados, magistrados e membros do Ministério Público, havida no Art. 6º, do EAOAB, constitui-se em uma prerrogativa de tratamento, eis que, dessa forma, garante-se a independência do Advogado para a livre e desembaraçada atividade profissional, em vista da perfeita prestação jurisdicional, pelo Estado.

Tal princípio – o da liberdade e igualdade – se faz de forma tão essencial, que não há meios de se conceber a figura de um Advogado sujeito à autoridade do agente público, na defesa dos interesses de seu cliente, sob pena de se desfigurar a ordem pública, em prejuízo da existência do Estado Democrático de Direito.

Mesmo sob os maus olhos com os quais é visto pelos Magistrados e pelos membros do Ministério Público, o Advogado, segue em seu ministério privado, exercendo seu serviço público, e função social, como bem nos diz o §1º, do Art. 2º, do EAOAB.

II – Da Natureza da Multa havida no Artigo 265, do Código de Processo Penal

Diz, o Art. 265, do Código de Processo Penal:

Art. 265. O defensor não poderá abandonar o processo senão por motivo imperioso, comunicado previamente o juiz, sob pena de multa de 10 (dez) a 100 (cem) salários mínimos, sem prejuízo das demais sanções cabíveis.

A princípio, a multa prevista no Art. 265 do Código de Processo Penal, visa a coibir condutas que possam configurar ofensa ao princípio da ampla defesa (art. 5o, inciso LV, da CF) e ao princípio da duração razoável do processo (art. , inciso LXXVIII, da CF).

O referido dispositivo, mesmo com a nova redação que lhe foi dada pela Lei n. 11.719/2008, traduz-se como meio de coação disciplinar, aplicado pelo Juiz. Logo, vê-se que se mostra incompatível com a Constituição de 1988, já que vincula, em vero, o exercício da advocacia criminal à possibilidade injurídica do pagamento de multa determinada por quem não é o juiz natural do processo administrativo para a apuração da conduta ético-disciplinar do Advogado, criando, assim, uma sujeição disciplinar, deste, a uma ilegítima censura do Juiz da ação penal.

Ademais, a fixação da multa prevista no art. 265 do Código de Processo Penal carece da observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa, daí a necessidade de intimação pessoal do advogado, a fim de que possa, este, exercer o seu direito de defesa!

Todavia, mesmo que intimado, não há previsão legal para apresentação de defesa, sendo a multa imputada, de forma arbitrária o que afronta um dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito.

Neste sentido, faz-se necessário trazer à baila, ad argumentandum tamtum, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (RMS 32742/MG), que nos ensina que “a aplicação de qualquer sanção, ainda que de cunho administrativo, mas como reflexo patrimonial, se sujeita aos rígidos padrões de procedimento que integram o due process of law (justo processo jurídico), que não admite a noção de responsabilidade objetiva por ato infracional disciplinar, a exigir a devida apuração de sua prática e do correspondente contexto circunstancial em que ocorreu, haja vista o disposto nos incisos LIV e LV do art. 5º. da Constituição Federal.”

Em vista desta manifestação jurisprudencial, vê-se, bem, as nuances arbitrária e draconiana das quais se encontra investido o dispositivo legal em tela.

Ainda, vale ressaltar que o referido artigo em questão se baseia em uma premissa pela qual o Juiz da ação penal exerce controle hierárquico sobre o Advogado que funciona no processo, o que, como já demonstrado, viola a ordem jurídica e conflita, irresponsavelmente, com a Carta Federal e com a legislação infraconstitucional, aplicável à espécie.

A aplicação da multa havida no Artigo 265, do Código de Processo Penal afronta, inclusive, o entendimento do Pretório Excelso, quando, ao proferir decisão na ADI 1.127, ensinou:

“A imunidade profissional é indispensável para que o Advogado possa exercer condigna e amplamente, seu múnus público.”

Ainda, a Suprema Corte, ao decidir sobre o HC 98.237, sublinhou que:

“O STF tem proclamado, em reiteradas decisões, que o Advogado – ao cumprir o dever de prestar assistência àquele que o constituiu, dispensando-lhe orientação jurídica perante qualquer órgão do Estado – converte, a sua atividade profissional, quando exercida com independência e sem indevidas restrições, em prática inestimável de liberdade.”

De fato, a multa preconizada pelo Artigo 265, do Código de Processo Penal se configura em uma limitação injusta, inconstitucional e absurda, posto que impõe ao Advogado uma penalização pecuniária excessiva e desproporcional, ainda mais nos tempos atuais, onde a dificuldade do sustento, em um ambiente de estagnação da economia nacional, fornece amarras irresistíveis ao salutar desenvolvimento da carreira advocatícia.

A justificativa da defesa dos princípios da ampla defesa, e da duração razoável do processo confere o intuito disciplinar da multa contida no Art. 265, do Código de Processo Penal, posto que sua existência serviria como meio de coibir ao Advogado, o abandono injustificado da causa.

Na verdade, o referido dispositivo legal não possui razão de ser!

Partindo-se do princípio de que o Juiz da ação penal não possui poder disciplinar sobre Advogados, posto que tal prerrogativa é privativa da Ordem dos Advogados do Brasil, segundo dispõe a Lei, e que, qualquer ação de um agente público que venha a tolher o exercício da advocacia é, no mínimo ilegal, posto que também ofende o Artigo 133, da Constituição Federal, a existência da multa trazida ao ordenamento pelo Art. 265 do Código de Processo Penal encontra-se fora de sincronismo com o bom Direito, inclusive, segundo o entendimento de diversas Cortes.

Ainda, ressalte-se mais uma vez, que o ius puniendi outorgado ao Juiz da ação penal, confere-lhe um modus que afronta os princípios do exercício do contraditório e da ampla defesa, conforme art. 5º, LIV e LV, da Carta Maior.  

Outrossim, o referido dispositivo extrapola todos os padrões de razoabilidade e de proporcionalidade, pois a norma determina a aplicação de punição a um fato, presumidamente censurável, sem que para tanto se instaure o devido processo legal, e sem garantir a possibilidade de exercício do direito de defesa e do contraditório.

De fato, o disposto no Artigo 265, do Código de Processo Penal, permite a punição do Advogado, por agente ilegítimo, diga-se, sem sequer ouvir-lhe as justificativas, criando-se, assim, a absurda conflagração de uma condenação absoluta, lastreada em uma presunção iuris tantum de culpa, que não pode ser discutida previamente e nem revista em sede recursal.

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Deve-se, ainda, ressaltar que a penalização contida no referido dispositivo legal, visa uma pessoa que não é parte do processo, ao arrepio de toda e qualquer regra de direito processual pátrio!

Trata-se, portanto de procedimento inquisitório, no qual confunde-se, ao mesmo tempo, na pessoa do Juiz, as figuras do acusador, do julgador e do carrasco, sem qualquer chance de defesa, sob qualquer forma, ao Advogado!

Vale ressaltar, ainda, quanto à natureza da multa ora sob análise, o caráter inconstitucional de sua fixação, posto que atrelada ao salário mínimo em frontal desrespeito ao que preconiza o Art. 7º, IV, da Carta Magna, a saber:

Art. 7º.

(...)

IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender as suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;

Em assim sendo, além de todos os elementos de ilegalidade quanto ao mérito da questão, deve-se trazer à discussão, o impedimento constitucional do uso da base de cálculo da multa em questão, principalmente no que diz respeito ao entendimento do Supremo Tribunal Federal, como por exemplo, no voto proferidos na ADI 1.425, pelo Ministro Marco Aurélio, in verbis:

“A parte final do inciso IV do Artigo 7º da Constituição Federal mostra-se categórica, vedando-se a vinculação do salário mínimo “para qualquer fim”. O objetivo da norma é único, ou seja, evitar que interesses outros, diversos da satisfação do piso constitucional, pudessem ter alguma influencia relativamente ao quantitativo por ele representado, abrindo-se margem, assim para a inobservância maior decorrente do confelamenteo do salário mínimo, concernente ao atendimento das necessidades mencionadas no preceito – vitais básicas do trabalhado e sua família – lifadas à moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social.”

Ainda, o Ministro Moreira Alves, no voto que proferiu, na qualidade de relator do RE 237.965, que tratou da constitucionalidade da fixação de multa administrativa vinculada ao salário-mínimo, decidiu, in verbis:

Com efeito, o Plenário desta Corte, ao julgar a ADIN 1425, firmou o entendimento de que, ao estabelecer o artigo 7º, IV, da Constituição que é vedada a vinculação ao salário-mínimo para qualquer fim, "quis evitar que interesses estranhos aos versados na norma constitucional venham a ter influência na fixação do valor mínimo a ser observado". Ora, no caso, a vinculação se dá para que o salário-mínimo atue como fator de atualização da multa administrativa, que variará como aumento dele, o que se enquadra na proibição do citado dispositivo constitucional.

Ou seja, como se já não bastasse todos os vícios de que se vê contaminada a multa do Artigo 265, o Código de Processo Civil, temos, de forma mais que veemente, a sua inconstitucionalidade, por conta da base de cálculo adotada.

Neste sentido, tal dispositivo legal não pode prosperar no nosso ordenamento jurídico, em vista das gritantes irregularidades de que se encontra revestido.

III – Da Incompetência do Juízo para Punir, Disciplinarmente, o Advogado

Admitir-se a possibilidade de um juiz aplicar multa administrativa, de cunho ético-disciplinar, a um Advogado, implica no reconhecimento de uma hierarquia do primeiro sobre o segundo, a qual afronta a ordem jurídica!

Tal situação vai contra o disposto no caput do Art. 6º, do EAOAB, uma vez que não há nem hierarquia, nem subordinação entre magistrados, Advogados e membros do Ministério Público.

Dessa forma, não pode um dispositivo legal, de diploma geral, face à especialidade da Lei 9.806/94, impor preceito hierárquico entre operadores do Direito, a bem do princípio da independência do Advogado, no exercício do seu múnus público, em prol da administração da justiça.

Ademais, cabe única e exclusivamente à Ordem dos Advogados do Brasil punir os seus inscritos, nas faltas éticas e disciplinares que cometerem, na forma do Artigo 70, do EAOAB. Isto posto, não caberia ao Juízo da ação penal, admoestar, administrativamente, um Advogado, sobre ato considerado como falta disciplinar, a exemplo do que tipifica o Artigo 34, XI, do Estatuto, impondo-se, para este ilícito, a pena de censura (Art. 36, I), podendo-se cumulá-la com a pena de multa prevista no Art. 35, IV, na forma do Artigo 39, todos do mesmo Diploma.

Desta forma, a punição administrativa contida no Artigo 265, do Código de Processo Penal, de fundo disciplinar, se mostra, além de descabida, por ferir a competência, legal, exclusiva da OAB na apuração das faltas ético-disciplinares cometidas por seus inscritos, faz-se, igualmente, exagerada, posto que a Lei já dispõe dos mecanismos de tipificação e punição dos Advogados faltosos, nos casos de abandono da causa, sem justo motivo.

IV – Da Caracterização do Abandono da Causa à Luz do que Dispõe o Artigo 265, do CPP

Segundo o disposto no Art. 265, do Código de Processo Penal, o Advogado que abandonar a causa, sem justo motivo, estará sujeito à multa de 10 (dez) a 100 (cem) salários-mínimos.

Como pode ser visto, o referido dispositivo carece da delimitação dos elementos típicos caracterizadores do abandono da causa, estando, assim, ausentes os critérios objetivos e delimitadores da conduta típica, a fim de caracterizá-la de modo a aplicar-se a sanção cabível.

Desta forma, o dispositivo em questão, relega ao arbítrio do Juiz a caracterização da conduta do Advogado, quanto à condução dos interesses de seu cliente, outorgando-lhe verdadeiro controle de qualidade quanto à prestação de seus serviços advocatícios, apenando-o, sob critérios meramente subjetivos, sem o devido processo legal, e sem a garantia mínima do contraditório e da ampla defesa, tornando, per se, tal atitude, injusta, senão ilegal e inconstitucional.

Ressalte-se que a ausência de critérios de tipicidade quanto à conduta de abandono da causa, em vista da aplicação da multa em questão, retira do dispositivo em questão, qualquer característica que lhe autorize a aplicação de qualquer pena, tornando-o, neste aspecto, juridicamente inviável.

Neste sentido, temos vários julgados das Cortes nacionais, inclusive, do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que a mera falta a um ato processual não configura, por si só, abandono de causa, para efeitos da aplicação da multa havida no Art. 265, do Código de Processo Penal.

Não se pode, de forma alguma, estender a compreensão do conceito de abandono do processo, como uma falta a um mero ato processual, como meio de justificar a penalização em tela. Antes de mais nada, devem ser examinados os elementos caracterizadores do rompimento entre Advogado e cliente; contudo, o Juiz da ação penal não é o agente capaz de fazê-lo, posto que tal exame somente pode ter lugar em sede de processo ético-disciplinar, a cargo da Ordem dos Advogados do Brasil.

Ainda, como estipula o §2º, do Art. 265, do Código de Processo Penal, na ausência do Advogado, a bem da continuidade dos trabalhos, o Juiz poderá nomear defensor para a prática de um ato específico, sem prejuízo da continuidade do patrocínio da causa pelo primeiro.

Ou seja, se caracterizada está a continuidade da prestação de serviços advocatícios, mesmo na hipótese supra, a ausência para um ato processual qualquer não poderia, de forma alguma, configurar-se em abandono de causa, ensejador da penalização ora sob análise.

De fato, é muito difícil, de forma objetiva, precisar o ato do abandono, principalmente, quando se pretende trata-lo como conduta típica, passível de penalização tão grave.

Devemos ressaltar, antes de tudo, que o ato de abandonar é ato volitivo, de foro íntimo, não havendo meios objetivos de determinar-lhe a existência, senão em aspectos externos, com vasto leque interpretativo.

Seria temerário afirmar, quiçá sustentar, a tese de que o abandono da causa se daria após o não comparecimento a um determinado número de atos processuais, ou até mesmo, com relação a um número determinado de intimações dirigidas ao Advogado para que comparecesse ao um determinado ato do processo.

A própria menção destes critérios, nas fundamentações das decisões que apenam os Advogados à multa em questão, os quais, diga-se, são privados de qualquer sustentação lógica demonstra a fragilidade da determinação do conceito de abandono da causa, para efeitos do Art. 265, do Código de Processo Penal.

Nas palavras de Carnelutti:

“As pessoas não sabem, tampouco os juristas, que aquilo que se pede ao advogado, é a dádiva da amizade, antes de qualquer outra coisa”

Ou seja, a relação entre cliente e Advogado é, antes de tudo uma união de confiança e entrega, em um vínculo de amizade, onde o primeiro entrega ao segundo, a sua liberdade, os seus bens e a sua honra.

Neste amalgama de elementos tão nobres, o Advogado toma à frente da causa de seu cliente, falando em seu nome, na defesa de seus interesses, perante os agentes públicos, visando receber o que é seu, através do “suum cuique tribuere”, efetivado pela sentença prolatada pelo Juiz-Estado.

Se tivermos o Estado-Julgador como agente fiscalizador da relação Advogado-Cliente, sendo o primeiro o responsável por decidir a sorte do último, compactuar-se-á com uma ingerência temerária em assuntos privados, de ordem contratual, com efeitos desastrosos à efetiva prestação jurisdicional.

Abandonar a causa é, antes de mais nada, o rompimento dos laços de amizade entre o Advogado e o cliente! Este desenlace pessoal ocorre, de forma íntima e não carece de comunicação ao Juízo para que se dê por perfeito. Muito pelo contrário, tal medida se perfaz de caráter meramente burocrático, posto que a referida relação já não mais existe quando efetivada a referida comunicação.

Ainda, temos os casos em que o Advogado e o seu cliente chegam a um acordo de encerrar a relação havida entre eles, ficando a cargo do segundo, a busca por outro profissional que o defenda. A ausência de comunicação de tal fato, ao Juiz da ação penal é mera formalidade e não possui efeito algum na obrigação assumida pelo réu na procura por outro causídico habilitado a defende-lo.

Com relação à justificativa de abandono da causa ao Juiz da ação penal, tal figura não possui amparo no ordenamento nacional, fora no que dispõe o caput do Art. 265, do Código de Processo Penal.

Não se pode atribuir ao Juiz da ação penal, o papel de tutor da relação Advogado-cliente, em uma ingerência estatal, absurdamente descabida. De fato, tão somente a Ordem dos Advogados do Brasil é competente o bastante à esta análise, desde que provocada, ou até mesmo de ofício, na forma do Art. 72, caput, do EAOAB.

V – Conclusão

Este breve estudo sustentou que o disposto no Art. 265, do Código de Processo Penal se mostra impossível de ser aplicado, seja pela afronta ao princípio da independência do Advogado, pelo desrespeito à ausência de hierarquia entre os operadores do Direito, seja pela ingerência do Estado nos assuntos ético-disciplinares da competência da Ordem dos Advogados do Brasil.

Ainda, vimos como a aplicação da multa fere, de forma cruel, os princípios do contraditório e o da ampla defesa, ao não prever qualquer forma de justificativa, pelo Advogado, que possa evitar a condenação à pena de multa, em desrespeito, ainda, ao princípio do due process of law.

Analisamos, também, a falta de critério específico para a determinação, de forma objetiva e clara, a figura do abandono da causa, como conduta típica objeto da penalização.

Visitamos, en passant, a questão da proporcionalidade da pena estipulada pelo dispositivo legal, principalmente quanto à sua aplicação em um momento de fragilidade da economia nacional, gerador de tantos embaraços ao pleno desenvolvimento profissional do Advogado.

Por fim, discorremos sobre o vício trazido pelo dispositivo em tela, quanto à determinação da multa em salários-mínimos, o que é vedado pela Constituição Federal, e confirmado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Por todo o exposto, concluímos que o Artigo 265, do Código de Processo Penal, deve ser abolido do nosso ordenamento, preferencialmente com o provimento da ADI 4.398, impetrada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

A vista da vasta jurisprudência de nossos Tribunais limitando e, em muitas das vezes, impedindo e revogando as multas aplicadas com base neste dispositivo, vemos que este encontra-se fadado de morte, não podendo, assim, ser invocado pelos Juízes face aos Advogados, em qualquer circunstância, no curso da ação penal.

Sobre o autor
Jorge Alberto Neves

Coordenador da Comissão de Direito e Relações Internacionais, Coordenador Adjunto da Comissão de Ética e Disciplina e Membro da Comissão de Defesa dos Direitos e Prerrogativas do Advogado, da OAB/SP (102ª Subseção - Santo Amaro), no Triênio 2019-2021; Assessor da 24ª Turma do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP (2018) Membro do Grupo Diretivo do Comité Internacional de Direitos Humanos, da Seção de Direito Internacional da American Bar Association (ABA), no Biênio 2019-2020.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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