O bolsonarismo pode ser tomado, inicialmente, como um movimento político e psicossocial herdeiro de vários aspectos da formação social brasileira: escravismo, exploração e desumanização do mundo do trabalho, racismo, patriarcado, machismo, indiferença aos negócios públicos, cordialidade que leva ao individualismo e egoísmo, transporte dos códigos da vida privada a fim de melhor “contornar” as regras do espaço público, são apenas alguns exemplos.
Este conjunto, arcabouço antijurídico e antiético, explicaria a lógica para se entender como, chegando ao ápice da pandemia do novo corona vírus, em abril de 2020, o mercado e seu desrespeito ao isolamento social tem profundo apego em praticamente 1/3 do eleitorado: metade disso de fiéis irredutíveis.
Tomado desde a origem, em 2018, por forças crescentes de religiosidade neopentecostal – na forma mais devastadora do “espírito do capitalismo” –, mas, igualmente atuante em outras manifestações católicas e de outras singularidades religiosas, o bolsonarismo tem atualmente características marcantes de seita ou de seitas que permeiam o próprio movimento mais amplo.
Como grande estrutura política e psicossocial, traz em seu bojo conteúdos negacionistas dos direitos fundamentais sociais e civis. O que, por sua vez, também credencia o bolsonarismo como estrato societal fascista: fechar o Congresso e o STF com um “cabo e soldado” são apenas exemplos.
Em sentido complementar, seu espectro se espraia por todas as classes sociais – independentemente se os padrões da classe média clássica já foram desgastados e dali surgiram os conhecidos “arrependidos” e seus panelaços.
O fato é que a massa de apoio, um terço do eleitorado, ainda lhe confere muita sustentação, inclusive para barrar o andamento de um processo de impedimento constitucional. Comparativamente, em 2016, a ex-presidenta Dilma Rousseff ficou diluída em 10% de apoio político.
Isto é, o bolsonarismo segue representativo e com amplíssimo reconhecimento e validação junto a milhões de brasileiros, em todas as classes sociais. Neste sentido, uma análise com base na atuação das “elites” poderia esclarecer alguns elementos, como, por exemplo: o anti intelectualismo, a massiva desinformação e intoxicação política nas redes sociais – que, inclusive, delegaram o poder em 2018 –, a descrença na ciência, na razão mediana, a dubiedade na condução do poder de mando e de controle social (hoje sob uma “presidência operacional”) são apenas alguns exemplos.
Neste recorte sobre as “elites”, apontamos a transmissão ou comunhão de valores antiéticos, degenerativos, corruptivos, disruptivos (caóticos) tanto na cultura quanto na economia, assim como na política e no comportamento de extrema agressividade que foram legitimados em 2018. Mais do que uma correia de transmissão de valores, devemos pensar no compartilhamento de costumes e de práticas, com profunda identificação fascista (quanto aos meios e aos fins) entre as tais “elites” e os “bestializados” de toda forma.
De certo modo, isso corresponderia aos pesadelos imorais, insanos, pervertidos, contados por Nelson Rodrigues: do descrédito à sanidade mental à Idiocracia. O que, por si, transformaria o cronista carioca num “explicador do Brasil” ou dos brasis, na altura dos maiores: Gilberto Freyre, Caio Prado, Sérgio Buarque de Holanda, Oliveira Vianna, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Octavio Ianni e tantos outros.
Na base do bolsonarismo, é como se juntássemos Machado de Assis e Monteiro Lobato numa só crônica indizível da realidade que se fez sociedade na posse do poder em 2018: o Jeca Tatu chegou ao poder constituinte do manicômio da Casa Verde, sob as vestes do Alienista, e trancafiou toda a racionalidade possível.
O “modus operandi”, desabonador de qualquer traço do Direito Ocidental, ainda propugna por um profundo anti-Iluminismo adesivo de todos os meios de exceção possíveis: se já não se suportava muito bem as bases do Estado de Direito e da Constituição de 1988, digamos que na forma de construções político-jurídicas da Revolução Burguesa, o bolsonarismo atual adere perfeitamente ao fascismo, ao cesarismo retrógrado, à espera do Kaiserpresidente.
O manejo do poder, pelo alto, desde 2016 (com lastro nas juvenis “revoluções coloridas” de 2013), notariando-se como golpe à Constituição, a partir da entronização do poder em 2018, assiste costumeiramente à tragédia de desconstrução de direitos e da dignidade humana.
De lá e de cá, neste triunvirato, ora se apega ao Estado de Emergência (inexistente na CF88) ora se ameaça claramente com o Estado de Sítio. Esses recados também servem para tentar conter o fato de que o impeachment não é só ilusão de ótica política ou consumação “de um custo muito elevado”. Neste mesmo contexto muito se escreveu e falou sobre “renúncia” ou interdição de funções administrativas e de efeito na vida civil.
Daremos a isto o pseudônimo de Cesarismo Trágico – com ampla participação dos três poderes, hábeis em transformar a pandemia em insumo do pandemônio societal. Salvo lampejos do STF e do Congresso, as bases do Processo Civilizatório inclusivo, participativo, emancipatório que se perfilam na CF88, são diuturnamente repelidas.
Nossa premissa e conclusão, neste recorte, é que se entrecruzam e se retroalimentam, a pandemia na saúde pública e o pandemônio na política. Mais precisamente, a política necrófila necessita ampliar o abate humano, garantido pela pandemia do novo corona vírus.
Esta é a regra de toda necropolítica ... balizar o ganho político contabilizado na morte seletiva e programada dos indesejáveis: pobres, negros, idosos, indígenas. Eichmann foi o predecessor nazista dessa prática. Isto ainda abre espaço para desafogar os milhões de desempregados e de inimpregáveis (lumpemproletariado), substituindo-se mão de obra mais cara, do mesmo que se desafoga o SUS e a previdência, com o menor pagamento de aposentadorias dos “velhos” mortos.
Os Direitos Humanos nunca interessaram às tais elites, bem como o bolsonarismo – muito antes de sua aparição como força política – sempre repetiu: “humanos direitos”. Sem debater este aspecto óbvio e ululante, por questão de espaço, basta-nos relembrar que o “direito das coisas”, o direito patrimonial, sempre teve muito mais acesso nos bancos e nas decisões da magistratura.
Isto é, os direitos da propriedade sempre foram melhores recepcionados pelos juristas, especialmente, do que os Direitos Humanos. Exemplo evidente disto é a velocidade com que se desfez os direitos sociais e trabalhistas, a partir, exatamente, do golpe de 2016 – sob as pegadas trágicas daquele modelo híbrido de Ditadura Inconstitucional.
Além disso, vislumbremos os achaques ao meio ambiente e a denegatória dos comitês, sessões, reuniões, fóruns, salas e demais colegiados que incutiam a participação da sociedade civil nos assuntos de Estado (decreto 9.759, de 11 de abril de 2019).
O último assalto ao poder, iniciado pelo Cesarismo de Estado em 2016, recebeu a alcunha de “presidência operacional”, exatamente quando, em “golpe branco”, de cima para baixo, de dentro para fora, uma junta militar sob a liderança do General Braga Neto reviveu formas clássicas do bonapartismo e da Via Prussiana. Enfim, este complexo constitui algumas das adaptações da Guerra Híbrida, inventariamos sob a batuta real e digital do bolsonarismo.
Nossa tarefa, desde então, é diagnosticar “o que fazer” para, a partir daí, projetar uma estimativa mínima de quantos anos levaremos para atrofiar a força política e cultural do bolsonarismo.
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