A obrigatoriedade da negociação nas relações inquilinárias em tempos de Pandemia de Covid-19

18/04/2020 às 20:10
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Em razão da pandemia de covid19 e dos evidentes impactos na atividade empresarial, faz-se necessária a ingerência do Legislativo para coibir abstratamente os abusos e erigir a negociação como o instrumento necessário para equilibrar a relação inquilinária

A situação de pandemia ocasionada pelo Covid-19 impactou na rotina da sociedade em nível mundial. Independentemente do grau de intensidade das medidas adotadas em cada localidade, é fato notório que o isolamento social causou significativa redução da circulação de riquezas, sobretudo no âmbito empresarial.

Nesse cenário, um dos grandes obstáculos dos empresários está sendo as negociações para a redução ou concessão de moratória no valor dos alugueis, pois a maioria dos locadores e das administradoras de imóveis tem se mostrado inflexíveis ou alheios a qualquer possibilidade de acordo, recusando-se até mesmo em receber propostas dos locatários ou em responder e-mails e notificações extrajudiciais.

Assim, inobstante a defesa por parte de entidades do setor e de respeitável doutrina no sentido de que o mercado imobiliário já tem maturidade e é suficientemente autorregulado para que proprietários e inquilinos negociem os valores dos contratos, sem intervenção do poder público, a prática revela que essa máxima tem sido constantemente afastada, principalmente nas locações não residenciais.

Em recente matéria publicada no Valor Econômico[1], o volume de processos de grandes grupos de shopping centers cresceu contra lojistas pequenos e médios, inclusive neste período de março a abril, ou seja, em plena crise no segmento gerada pela pandemia da covid-19.

É consabido que a administração de massas levada a efeito por parte das administradoras de imóveis, com a elaboração de contratos de adesão e adoção de procedimentos inflexíveis de gestão; a intransigência por parte de muitos locadores, com apego exacerbado à literalidade do título, e; mais recentemente, com o surgimento dos negócios virtuais e da administração imobiliária por meio de startups, têm reduzido cada vez mais a margem de negociação entre locadores e locatários, contrariando o espírito da lei de locações (v. artigo 8º da Lei 8245/91 [2]).

Isso tem provocado um aumento nos últimos anos da intervenção do Poder Judiciário nesta seara, por meio de ações revisionais ou renovatórias sucessivas, que desgastam ainda mais a relação entre locadores e locatários. Esse número só não é maior em virtude do custo para o ajuizamento e do valor da perícia técnica, que tem sido alçada praticamente como uma premissa de julgamento pelos magistrados.

Diante desse quadro, faz-se necessária a ingerência do Poder Legislativo para coibir abstratamente os abusos e erigir a negociação como o instrumento necessário para equilibrar a relação inquilinária.

A regulamentação que se espera por parte do Congresso Nacional não se confunde com a indevida interferência, como sempre defendem as administradoras de imóveis. Tanto nesse período emergencial de pandemia, como em períodos de normalidade contratual, poder-se-ia se utilizar de dispositivo normativo, inserido no contexto da Lei Inquilinária (Lei 8.245/91) ou em legislação apartada, com o objetivo de promover obrigatoriamente o diálogo e a negociação entre as partes da relação locatícia.

Perceba-se que referida proposta nada se confunde com medidas de fixação de preços ou reduções de valores, como é o caso da redação original do Projeto de Lei 1179, do Senador Antônio Anastasia, que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19). A parte do texto que versava sobre as locações residenciais sofreu bastantes críticas ao autorizar os locatários a suspenderem, total ou parcialmente, o pagamento dos alugueis vencíveis a partir de 20 de março de 2020 até 30 de outubro de 2020[3].

O que está sendo proposto aqui é a criação da figura do negociador em procedimento de jurisdição voluntária envolvendo ações locatícias. Esse profissional atuará não somente como um mediador, mas também apontando dados técnicos e práticos, justificando a relevância da negociação e as consequências da ausência desta para ambas as partes, garantindo-lhes a eficiência do acordo a ser firmado.

Nesse momento específico de pandemia de covid-19, em que muitos empresários foram de um dia para o outro, ceifados de sua fonte de faturamento, com a suspensão parcial ou total da atividade comercial, a alteração legislativa teria o condão de regular as locações firmadas por pessoas jurídicas não incluídas no rol de atividades essenciais e que comprovarem a redução do percentual de 50% do seu faturamento durante o período de pandemia. Neste caso, a negativa de negociação pelo locador poderia acarretar a fixação de um aluguel excepcional, a ser implementado enquanto vigente o Estado de Calamidade Pública.

Frisa-se, somente após o exaurimento das tratativas extrajudiciais a demanda seria levada ao Poder Judiciário, e aí sim haveria a possibilidade de suspensão imediata dos alugueis ou a redução de 50% do valor praticado, até que seja efetivamente decidido o acordo. Para auxiliar o juiz nesse conflito, o locatário poderia solicitar e custear a nomeação de um negociador.

A novel legislação ingressaria no ordenamento jurídico para reafirmar a importância do acordo prévio, em total consonância com a recente alteração do Código de Processo Civil, no seu artigo 3º, in verbis:

Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.

§ 1º É permitida a arbitragem, na forma da lei.

§ 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos.

§ 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.

A situação de pandemia Covid-19 é grave e precisa ser resolvida com urgência. Não é preciso maiores tergiversações para reconhecer os brutais impactos na economia mundial, com horizonte de recessão somente visto após as últimas grandes guerras, acarretando evidentes prejuízos ao ambiente empresarial, de forma que a diminuição das despesas locatícias representaria não só condição de viabilidade da atividade como também da manutenção dos inúmeros empregos nela envolvidos.

O auxílio de profissional com capacidade técnica para direcionar e agilizar a negociação é fundamental para a cooperação dos locadores. Caso não haja esse esclarecimento, estes permanecerão resistindo à negociação e teremos a vitória do egoísmo sobre o bom senso. O outro caminho a ser trilhado, o do conflito, acarretará inexoravelmente o assoberbamento do Poder Judiciário, indo de encontro aos objetivos dos movimentos processuais da atualidade.

Neste momento emergencial, já surgem inúmeras teses aptas a levar à discussão para a esfera judicial. Parte da doutrina tem defendido que as medidas de mitigação e supressão do Covid -19 impuseram manifesta desproporção no valor da prestação devida, o que encontraria amparo na norma legal prevista no art. 317 do Código Civil, que trata das hipóteses de onerosidade excessiva dos contratos por motivos imprevisíveis.

Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

Outra tese que tem sido sustentada no meio acadêmico é o enquadramento da presente situação no conceito de força maior[4], a fim de afastar, durante o estado de calamidade então vigente, cláusulas contratuais previstas na avença inquilinária e, assim, reduzir ou suspender o valor do aluguel, uma vez que o artigo 393 do Código Civil estabelece que “o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado”.

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É possível ainda sustentar a aplicação do artigo 22, II e III da Lei 8.245/91 e a aplicação do princípio da boa-fé. Se é dever do locador i. “garantir, durante o tempo da locação, o uso pacífico do imóvel locado”, e de ii.manter, durante a locação, a forma e o destino do imóvel”, e isso não está sendo cumprido, pois a atividade comercial foi suspensa ou restringida, deve ser reconhecida a imprevisibilidade deste risco para distribuí-lo entre as partes com base na boa-fé objetiva (art. 113, § 1º, III, CC).

Quer me parecer que a melhor opção atualmente seria estabelecer uma regulamentação nos termos acima anteriormente propostos, como um caminho alternativo ao Judiciário, pois essa via naturalmente já será acionada, com demandas envolvendo relações de consumo e contratos em geral, cuja resolução dos conflitos, infelizmente se prolongarão no tempo.

No meio empresarial, a solução deve vir em curto prazo, eis que, perdurando a atual situação, por dois ou três meses, teremos a demissão em massa de empregados e a decretação de falência de empresas.

Assim, ao se submeter ao procedimento de negociação, por meio de profissional tecnicamente apto, o locador terá a plena certeza de que inexiste liberalidade de sua parte nesta negociação, mas tão somente o reequilíbrio do valor da locação em decorrência da alteração das condições do mercado. Ele deve entender que se o imóvel fosse oferecido para locação neste período, certamente seria ofertado com preço muito inferior ou ficaria vazio, tendo que pagar despesas como IPTU e taxa condominial. Assim, resta afastado, na grande maioria dos casos, a tese de abusos perpetrados pelos locatários.

Não temos dúvida em afirmar que a melhor maneira de resolver os entraves envolvendo o contrato de locação não residencial é adotando medidas que estimulem o diálogo e a negociação entre as partes, fazendo-os compreender que a tentativa de acordo deve ser um pré-requisito para ingressar no judiciário, e que é mais vantajoso negociar um percentual de redução do aluguel compatível com o interesse de ambos, a correr o risco de ter o pagamento suspenso ou uma redução excessiva devido ao ajuizamento da ação, mas esse caminho deve ser orientado pelo legislador.

O período é sem precedentes e requer o sacrifício de ambas as partes. O locador, ao agir visando apenas seus interesses, assemelha-se ao homem que atravessa o deserto em cima de um camelo. O homem (locador) está prestes a matar o camelo (locatário). Este é momento de parar a viagem, descer do camelo, esperar ele se recuperar e quando estiver em condições, retomar a viagem. Caso contrário, a travessia do deserto terá que ser concluída a pé.


[1] Leia a matéria completa no link: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/04/15/shoppings-abrem-acoes-de-despejo-contra-lojistas-por-inadimplencia.ghtml

[2] Art. 18. É lícito às partes fixar, de comum acordo, novo valor para o aluguel, bem como inserir ou modificar cláusula de reajuste.

[3] A proposição pode ser acessada pelo seguinte endereço eletrônico: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8081779&ts=1587131922937&disposition=inline

[4]  Seriam os fatos humanos ou naturais, que podem até ser previstos, mas não podem ser impedidos; por exemplo, os fenômenos da natureza, tais como tempestades, furacões, raios, etc ou fatos humanos como guerras, revoluções, e outros.

Sobre a autora
Iracema Barroso Fontani

Sócia do Escritório Fontani & Menezes Advogados Associados, membro fundadora do Instituto Brasileiro do Inquilinato - IBIN, especialista em Direito Imobiliário e Administração Judicial de Empresas em Recuperação, com atuação em Direito Eleitoral e Empresarial

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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