BOLSONARISMO E SUA INTROSPECÇÃO CULTUAL

19/04/2020 às 12:42
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• Sabe qual a importância de se ensinar sociologia? • Coisas simples relevam situações muito complexas.

O que veremos a seguir pode-se denominar de resgate da Sociologia Clássica do Brasil: ranhuras, gramaturas e espessuras da dominação. Parte dessas rachaduras são clarividentes no bolsonarismo, como nos hábitos e práticas sociais rudimentares, aquarteladas na inconsciência do analfabetismo disfuncional. Tomaremos duas dessas situações.
A primeira situação traz um sujeito dizendo, em sala de aula, em tempos recentes, que há um “método mais metódico” a ser ensinado, prevalecente em tudo aos demais. Isto seria letal para qualquer amizade, porque professor de universidade pública não pode, jamais, dizer uma coisa dessas.
Pode-se aderir a este ou àquele método, pode-se até caminhar na absorção de mais de um deles, caso o objeto de análise exija maior sofisticação. Pode-se adotar este ou aquele método em razão de escolhas eletivas; pode-se avaliar que um método, em relação a muitos outros, nos pareça mais profundo e preciso. Entretanto, todos os métodos são metódicos, enquanto metodologia balanceada, específica, ou naturalmente não serão métodos e metodologias.
Com isto estamos a dizer que a análise do bolsonarismo requer cuidado, um esforço muito grande por caminharmos nas areias movediças da conjuntura que se faz de um instante a outro.
Nenhum clichê dogmático, por mais que se embrenhe em críticas construtivas – tipo “método mais metódico” –, poderá ser validado no esforço de se apreender ao menos uma parcela do bolsonarismo enquanto movimento político-jurídico e psicossocial.
O segundo exemplo não se refere a um determinada pergunta que poderia facilmente ser formulada, mas, mais apropriadamente, às circunstâncias que recobrem a resposta. No caso, liga-se à formação social desse país, que é bizarro em certo sentido, tanto quanto nos permite a comparação da cultura nacional a um ornitorrinco.
A questão formulada dizia assim: por que alguns homens deixam a unha do dedinho crescer, bem grande? Um asco para as mulheres e para os homens também. Perfeito. Esse hábito, que logo se converteu em prática social – por isso perdura até hoje –, advém da escravidão.
Os trabalhadores, normalmente homens, proletários e famintos livres e pobres, via de regra “mulatos” ou imigrantes da primeira leva – contudo, desligados do trabalho manual do “eito escravista”, da roça vigiada pelo capitão do mato –, deixavam a unha do dedinho crescer. E por que?
Exatamente para demonstrar que, apesar de muito pobres, não eram limitados ao trabalho mais embrutecido. Exemplo notável: quem já viu um cobrador de ônibus – isso já seria raro – e ainda mais com a unha do dedinho crescida? Pois isto ocorre não para facilitar a contagem do dinheiro.
Simplesmente, a unha crescida serve para demonstrar que qualquer trabalho manual, além daquele subordinado em suas tipificações sociais, a partir das respectivas classes sociais, o indivíduo se negará a realizar. Ou seja, o cobrador de ônibus jamais trocará um pneu furado do ônibus porque, obviamente, irá quebrar a unha do dedinho.
É a Casa Grande fazendo reflexos perversos nas mãos e nas mentes dos dominados, nas Senzalas que viraram favelas. Mais ou menos como os escravos que carregavam o estojo dos médicos, metros à frente, na Grécia antiga – ou o que continuamos a ver com as babás que acompanham as passeatas dos “patrões”, mas um metro atrasadas e de avental branco.
Esse é o país do bolsonarismo: sem eira, nem beira. A visão dessa “eira”, uma saliência na parte superior dos sobrados dos coronéis, e que sinalizava uma sombra, à beira do telhado alto da casa, ainda sinaliza seu poderio econômico. É o que o bolsonarismo apelidou de “velha política”. A mais velha prática política que o movimento introjetou e repercute em total desfaçatez.
O bolsonarismo “denigre” a Política, o “fazer-se política”, em dois sentidos que se locupletam: primeiro, ao denegrir imputa-lhe o preconceito, a partir de algo que adveio da “negritude”, sendo esta comparada incessante ao escravismo: “negro que não fez na entrada, faz na saída” – e por aí vai.
Só que dizer “denegrir” (aos ouvidos moucos) soa como sofisticação, linguagem sofisticada que, apoiada na política racista, indica, para agravar a cena da discriminação e do preconceito racial, que “a política não é lugar para pobres e negros”.
Assim, vemos outra vez a ausência de eira e beira, sem acesso ao conhecimento capaz de exaurir o escravismo enquanto “inconsciência”, porque é o racismo manifesto. No entanto, como ficou claro, a pseudo linguagem rebuscada nada mais faz do que revelar um tipo de “burrice solene”: dizer-se solenemente, do alto do racismo, o que em verdade é pura ignorância dos fatos.
Isto fica ainda mais evidente ao analisarmos sob a ótica dos negros-pobres, os mais duramente afetados pelo racismo manifesto (e que será ainda pior na condição da mulher negra e pobre), sobretudo, porque são alvo da política “denegrida” pelo racismo, e assim se apresentam sucumbidos na negação de uma educação pública de qualidade e crítica que lhes permita, minimamente, compreender o alcance racista do verbo “denegrir”.
Suas, nossas casas pobres, cortiços, favelas, comunidades, palafitas, “dormitórios” de papelão e zinco embaixo de pontes e viadutos, não tem cobertura de nada. O sonho da casa própria, servindo-se do olhar burlesco do rococó dos antigos casarões com eira e beira, não existe. Nenhum sonho deve prosperar no fascismo, só a desilusão da distopia: onde já se viu uma mulher negra, empregada doméstica, viajar a Nova Iorque? Pois esta é a avaliação ministerial do bolsonarismo.
Este artefato mental, cultural, político, não deixa de ser o mobiliário do Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, e em todos os tempos – o mesmo vazio de conhecimento e de consciência social e política. Mobiliário reduzido a um “criado mudo”. Originários dos negros e das negras que não falavam nada, e serviam de pé, os senhores e as senhoras da Casa Grande.
Criados mudos e às vezes cegos, porque se as senhoras sentissem ciúmes de alguma criada da Casa Grande, mandava-lhe cegar os olhos, como punição por ter chamado a atenção do Seu Senhor. Salvo detentores do capital financeiro, o bolsonarismo segue sem eira, nem beira. Seguimos sem eira, nem beira, cegos e mudos também na política.
Para os aderentes ao bolsonarismo não existe Política, maiúscula, como espaço público revigorador das práticas e das intuições políticas, porque não reconhecem a Polis, enquanto construção e afirmação da emancipação política. Neste mesmo sentido, vislumbra-se a Constituição Federal de 1988 como uma lei qualquer, comum, que se fez e que se pode desfazer ao bel prazer.
Não se vê, portanto, a CF88 como uma Carta Política, porque isto demandaria, precisamente, conhecimento jurídico rudimentar e consciência política. E como é que podemos esperar tal elaboração mental, conceitual, epistemológica dos que nunca tiveram nenhuma eira, nem beira e assim, historicamente, sempre compuseram o analfabetismo disfuncional – e cegos e mudos para a realidade?
Agora, atualizando-se a questão da unha crescida do dedinho, quantos desses cegos e mudos, “denegridos” em dignidade humana, perfilam alegremente nas fileiras do bolsonarismo e do fascismo que lhes segue, e ao serem perseguidos, porém, também se postam complacentes, no jogo duro do empobrecimento cultural?
Nesta hipótese, se o bolsonarismo é resultado do descaso absoluto da história política nacional, por outro lado, poucos inocentes serão ali encontrados. A história pode ser perfeitamente analisada pelas “franjas”, pela ação dos coadjuvantes, ou pelos próprios “atores de segunda categoria” social ou enquanto capacidade de representação política, entretanto, somos todos copartícipes, cúmplices (de um modo ou de outro), dessa textura recontada um milhão de vezes.
 

Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Informações sobre o texto

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