É de conhecimento notório os efeitos do Corona-vírus (Covid-19) na economia, sensibilizada pela paralização parcial das exportações e importações da China e de outros países atingidos pela pandemia, além da grande variação das bolsas de valores ao redor do globo (com perdas acumuladas de 20% desde o início do ano) e uma retração de US$ 2 trilhões na economia global devido ao momento de estagnação causado pelo vírus. (2)
No Brasil não é diferente. Já observamos a quarentena em diversas cidades, fechamento de estabelecimentos, medidas para suspensão dos contratos de trabalho ou redução de jornada, concessão de crédito rotativo com redução de juros, etc. causando um efeito cíclico dessa paralisação em toda economia.
Vale lembrar que o Brasil ainda está no início dos efeitos relacionados à pandemia. Diversos países já mobilizaram esforços contingenciais para a crise econômica, com propostas para suspensão de tributos para os empresários nesse momento de retração de liquidez com a paralização dos negócios em vários seguimentos da economia.
E o empresário brasileiro? Até a presente data, o Governo Federal indicou a adoção de algumas medidas de cunho tributário para mitigação da crise econômica gerada pelo Covid-19. O Ministro da Economia indicou o diferimento por três meses das contribuições ao FGTS e da porção federal do SIMPLES. Além disso, indicou também a redução, também por três meses, das contribuições ao Sistema S, bem como a desoneração de produtos médicos e hospitalares. Em relação a débitos inscritos em dívida ativa, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional editou portaria que estabelece transação extraordinária com parcelamentos em até 97 meses e diferimento da primeira parcela para 30/06/2020, com prazo de adesão até 25/03/2020
Contudo, tais medidas não socorrem os contribuintes em relação aos débitos correntes, com vencimento para março de 2020 em diante, considerando os impactos econômicos que se delineiam para todas as linhas negócios.
Como se sabe, a restrição à liquidez das empresas pode causar atrasos em pagamentos de obrigações correntes, inclusive aquelas de natureza fiscal. Os efeitos de curto prazo da inadimplência de débitos tributários são a incidência de juros e multa moratória. Em geral, os débitos fiscais são atualizados pela taxa Selic (4,25% ao ano, atualmente) e as multas moratórias, de forma genérica, são fixadas em percentual de 20% (0,33% ao dia, até se chegar ao patamar de 20%).
No caso, a natureza da multa de mora se fundamenta na penalização do contribuinte que não respeitou o prazo legal de recolhimento do tributo devido. No entanto, nem todo pagamento a destempo é penalizado pela multa de mora. Vale o exemplo de uma dúvida sobre um dever legal de recolhimento tributário, possibilitando que o contribuinte apresente consulta formal à Fazenda, a fim de obter um posicionamento formal relativo à sua obrigação fiscal. Após ser prolatada a manifestação do titular da Fazenda sobre a obrigatoriedade daquele recolhimento, o contribuinte poderá recolher a eventual diferença de tributos devidos no período em que perdurou a consulta formal sem a aplicação de multa de mora, já que o atraso no recolhimento está relacionado a uma justificativa legítima em favor do contribuinte.
Ademais, a multa de mora é obrigatória e imposta ao infrator que, de forma livre e consciente, atrasou seu recolhimento, afastando-se sua aplicação ao contribuinte que não deu causa ao atraso no recolhimento. Uma hipótese que demonstra que a multa de mora só deve ser imposta na hipótese de o contribuinte incorrer voluntariamente no recolhimento a destempo é o pagamento de tributos suspensos por liminar ou antecipação de tutela obtida em ação judicial.
Caso a liminar ou tutela provisória seja revogada no curso de uma ação judicial, é facultado ao contribuinte recolher os tributos suspensos pelo prazo de 30 dias, sob pena de incorrer em multa de mora (artigo 63, § 2o, da Lei n. 9.430/96). Como se vê, não se pode exigir a mora do contribuinte que não recolheu o tributo no prazo em razão da exigibilidade suspensa decorrente de provimento judicial, ou seja, não deu causa à extensão do prazo de forma injustificada e reprovável socialmente.
Apenas para ilustrar que as hipóteses acima não são situações isoladas, podemos ainda citar a denúncia espontânea (art. 196 do Código Tributário Nacional). O Superior Tribunal de Justiça já confirmou a possibilidade de o contribuinte, espontaneamente, declarar um montante de tributo devido e não declarado no prazo legal, constituindo este crédito tributário com o pagamento do tributo devido e juros de mora, mas dispensada a aplicação da pena de multa de mora.
E no caso de suspensão das atividades econômicas por força maior? Os recentes atos dos entes federal, estaduais e municipais de fechar comércios, recomendar o isolamento da força de trabalho e a imposição na paralisação das atividades são situações excepcionais não causadas pelo contribuinte.
Como reconhece o Superior Tribunal de Justiça, o caso fortuito e força maior conduzem ao afastamento de responsabilidade, desde que existam dois elementos, a saber: “(a) fato necessário, ou seja, um fato estranho ao devedor e que não lhe pode ser imputado. Se o devedor teve participação na realização desse fato, o acontecimento em nada lhe aproveitará, continuando responsável pela obrigação; e (b) impossibilidade de evitar ou impedir os efeitos do fato, do que redundou tornar-se impossível o cumprimento da obrigação”. Portanto, podemos observar que a pandemia se amolda às hipóteses referendadas pela jurisprudência.
Essas medidas extremas que, invariavelmente, impedem o pleno exercício da atividade empresarial levam à razoável conclusão de que o empresário não poderá recolher seus tributos no prazo legal. No caso, não estamos falando de uma das diversas crises que o empresário brasileiro já enfrentou em nosso conturbado passado de ciclos econômicos inconstantes, mas sim uma paralisação extraordinária causada pela pandemia e refletida em medidas de supressão do livre exercício da atividade econômica, inclusive referendadas por medidas urgentes dos entes políticos.
Ora, não existe a intenção da empresa em causar o atraso no pagamento dos tributos de forma voluntária durante a pandemia, locupletando-se da mora como vantagem própria em desfavor do erário. Não há como se exigir outra conduta a não ser o não recolhimento, sendo imperioso que sobrevenha uma medida de reconhecimento desse estado de força maior pelos entes tributantes e viabilizem normas legais que identifiquem essa situação extrema de inexigibilidade de conduta adversa. Mas, enquanto a norma legal não é editada, o que fazer?
Há fundamento para se contestar a exigência da multa de mora nessas circunstâncias extraordinárias. É certo que a inexigibilidade de conduta diversa no Direito Penal é causa supralegal de exclusão da culpabilidade, afastando o poder punitivo do Estado em face do indivíduo que, “devido as circunstâncias não controladas por ele, perde o juízo de reprovação social, ou seja, age de forma que não agrida a sociedade, sendo que a generalidade de pessoas teria a mesma atitude”.
Nessa toada, importante destacar que na esfera federal, em 2012, antecipando uma eventual situação de calamidade como a vivenciada atualmente, o então Ministro da Fazenda Guido Mantega, editou a Portaria de nº. 12/2012, ainda vigente, e cujo conteúdo normativo segue reproduzido, em sua íntegra:
"Art. 1º As datas de vencimento de tributos federais administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB), devidos pelos sujeitos passivos domiciliados nos municípios abrangidos por decreto estadual que tenha reconhecido estado de calamidade pública, ficam prorrogadas para o último dia útil do 3º (terceiro) mês subsequente.
§ 1º O disposto no caput aplica-se ao mês da ocorrência do evento que ensejou a decretação do estado de calamidade pública e ao mês subsequente.
§ 2º A prorrogação do prazo a que se refere o caput não implica direito à restituição de quantias eventualmente já recolhidas.
§ 3º O disposto neste artigo aplica-se também às datas de vencimento das parcelas de débitos objeto de parcelamento concedido pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e pela RFB.
Art. 2º Fica suspenso, até o último dia útil do 3º (terceiro) mês subsequente, o prazo para a prática de atos processuais no âmbito da RFB e da PGFN pelos sujeitos passivos domiciliados nos municípios de que trata o art. 1º.
Parágrafo único. A suspensão do prazo de que trata este artigo terá como termo inicial o 1º (primeiro) dia do evento que ensejou a decretação do estado de calamidade pública.
Art. 3º A RFB e a PGFN expedirão, nos limites de suas competências, os atos necessários para a implementação do disposto nesta Portaria, inclusive a definição dos municípios a que se refere o art. 1º.
Art. 4º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação".
Veja que, à parte do fato de que a portaria reproduzida acima ainda não conta com os atos normativos regulamentadores previstos e exigidos pelo seu artigo 3º, temos que a situação de calamidade publicada exigida já se encontra instaurada e, inclusive, reconhecida por atos normativos na esfera Federal, decretos estaduais (ex. São Paulo) e municipais (ex. São Paulo), de tal forma que, ainda que a referida norma alcance apenas os tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (esfera federal), necessária a urgente e excepcional tutela jurisdicional no que tange aos tributos federais e também aos estaduais e municipais devidos a partir de fevereiro de 2020.
Por fim, o princípio da Proporcionalidade também socorre o contribuinte, no sentido de minorar ou relevar a pena ou correção social, considerando a natureza do ato infracional e em razão das circunstâncias concretas que conduziram a agir em desacordo com a norma.
Não existindo mecanismos de flexibilização da infração pela mora involuntária na hipótese de não recolhimento de tributos nessa realidade causada pelo Covid-19, cabe ao poder judiciário suprir a omissão legislativa e firmar uma norma “in concreto” ao contribuinte inserido nessa problemática, possibilitando o afastamento da multa moratória enquanto perdurar a crise.
Notas:
(1) Rodrigo A. Lazaro Pinto, sócio da FCR Law, Juiz do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo, mestrando em Tributação Internacional pelo IBDT, membro das Comissões Especiais de Contencioso Tributário e Direito Aduaneiro da OAB-SP, Pós-graduado em Direito Tributário e Empresarial, com MBA em Tributário e especialização em Business Law pela Concordia University.
(2) Fonte: Unctad, acesso: https://unctad.org/en/pages/newsdetails.aspx?OriginalVersionID=2300
(3) Schoueri, Luís Eduardo. Direito tributário / Luís Eduardo Schoueri. – 9. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2019, p. 635.
(4) REsp 922.206, rel. min. Mauro Campbell Marques; REsp 1062139, rel. min. Benedito Gonçalves; REsp 922842, rel. min. Eliana Calmon; REsp 774058, rel. min. Teori Albino Zavascki e AGRESP 200700164263, rel. min. Humberto Martins.
(5) STJ, RESP 1.172.027 – RJ, Rel. Min. Eliana Calmon, sessão de 26/08/2010.
(6) Cf. Adriana Stamato, Horácio A. Neto e M. Rita Ferragut in “Medidas de enfrentamento da Covid-19 devem afastar aplicação de multas tributárias”, Folha de São Paulo, 19/03/2020.
(7) Cf. Juliana Bonilha S. Fenato. Inexigibilidade de conduta diversa como causa supralegal de exclusão da culpabilidade. Teresina: Revista Jus Navigandi, 2014.
Fonte: https://covidfcrlaw.com.br/artigo-a-relativizacao-da-aplicacao-da-multa-moratoria-em-debitos-tributarios-ante-o-covid-19/