A administração pública pode forçar uma pessoa a realizar testes laboratoriais, exames médicos ou a se internar em razão do Covid-19?

20/04/2020 às 11:36
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Diante do estado de excepcionalidade em que vivemos, algumas unidade da Federação estão adotando medidas extremas, a exemplo das prisões administrativas e da realização compulsória de procedimentos médicos. O ordenamento jurídico tolera tais medidas?

A administração pública pode forçar uma pessoa a realizar testes laboratoriais, exames médicos ou a se internar em razão do Covid-19?

Cabedelo, 20 de abril de 2020.

Recebi no dia 18 do corrente mês, via WhtasApp, mensagens de texto, áudios e vídeos, relatando o caso de um senhor que se dirigiu a uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento) de um dos bairros da cidade na qual resido (Cebedelo-PB), onde foi constatada pela equipe médica “suspeita” de infecção pelo Covid-19.

Consta no áudio e no vídeo que, diante da “suspeita”, a equipe médica acionou o SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência), para conduzir o senhor até o hospital de referência para a realização de testes, com intuito de confirmar a possível infecção.

Ao assistir o vídeo, percebe-se que a unidade do SAMU compareceu ao local, mas, de acordo com a pessoa que produziu a filmagem, o senhor se recusou a ser levado até o hospital para coletar o material biológico para a testagem.

O Covid-19, apelidado como “a gripe chinesa”, é uma realidade mundial que tem como principais caraterísticas a alta velocidade de contaminação e de mortalidade das pessoas do considerado grupo de risco, isto é, pessoas com mais de 60 (sessenta anos), com enfermidades cardiorrespiratórias, complicações pulmonares, diabéticos, hipertensos, etc.

De acordo com a ciência, a contaminação se dá por meio de contato com partículas de fluidos corporais da pessoa infectada, o que pode ocorrer por diversos meios, como, por exemplo, espirros, beijos, abraços, apertos de mãos, fala ou mesmo o contato com superfícies onde o vírus esteja depositado.

Estudos indicam que uma pessoa infectada pode contaminar de 03 (três) a 05 (cinco) pessoas, o que produz uma progressão geométrica que pode chegar ao controle impossível ou bastante dificultoso.

Diante dessa situação de pandemia, várias unidades da Federação declararam estado de calamidade pública, a qual coloca a unidade parcelar em uma situação de anormalidade, onde a administração pública tem sua margem de atuação alargada e flexibilizada, podendo, inclusive, utilizar-se do poder de polícia administrativo de maneira mais incisiva.

Assim, pergunta-se: em uma situação de excepcionalidade como essa, pode uma pessoa se negar à realização de exames, testagens ou internações?

A Constituição da República Federativa do Brasil estabelece como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana. Por sua vez, o art. 5º do mesmo diploma é expresso em garantir a inviolabilidade do direito à vida.

Reza o art. 196 da Constituição Federal que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução dos riscos de doença e de outros agravos...

A Lei 8.080/90 (Lei do SUS), disciplina em seu art. 2º que “A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”.

Para a presente análise, o direito à saúde pode ser visto sob um duplo aspecto: a) preservação, onde o Poder Público, em atenção ao que Jellinek classificou como “status positivo” dos direitos fundamentais, deve promover políticas públicas no sentido de prevenir e reduzir os riscos de doenças que podem afligir a população; b) proteção, quando o Estado tem que disponibilizar as melhores e mais modernas técnicas de tratamento, bem como os melhores recursos humanos e medicinais para as pessoas que já estão doentes (princípio da adequação dos serviços públicos).

Sob o ponto de vista da preservação, a saúde é um direto fundamental subjetivo, no sentido de empoderar o membro da coletividade para reivindicar do Estado medidas efetivas de acautelamento da sua vida e saúde.

Portanto, o direito à saúde não se presta a proteger apenas a pessoa doente, mas, também os demais membros da comunidade suscetíveis de serem acometidos pela enfermidade.

Como direito fundamental que é, o direito à saúde deve ser compreendido sob o ângulo da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, com aplicação desses direitos nas relações entre particulares e não apenas entre estes e o Poder Público.

De outra banda, a Constituição Federal consagra o princípio da legalidade em sentido estrito, ao estabelecer que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, entendida esta em sentido amplo, ou seja, na ideia de ordenamento jurídico, abrangendo atos normativos que não a lei ordinária ou complementar.

A condução coercitiva é matéria de reserva jurisdicional, não podendo a autoridade administrativa determinar tal medida, sob pena de cometimento, em tese, de crime de abuso de autoridade, cárcere privado ou constrangimento ilegal.

O art. 15 do Código Civil Pátrio estabelece que “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.

Já a lei 8.080/90, em ser art. 7, III, prevê a necessidade de respeito por parte dos órgãos de saúde pública à autonomia da vontade dos pacientes.

Tem-se no Congresso Nacional tramitando três projetos de lei que estabelecem o “Estatuto do Paciente”, onde consta expressamente o respeito ao princípio da autonomia da vontade do paciente.

É fato que inexiste lei em sentido estrito prevendo expressamente a condução coercitiva administrativa de pacientes para a realização de exames. Encontramos no ordenamento nacional diploma legal que expressamente autoriza a internação compulsória, trata-se da Lei 13.840/2019 que possibilita esse tipo de internação para os dependentes químicos.

Buscando regulamentar as medidas de combate à pandemia provocada pelo Covid-19, surgiu a Lei 13.979/2020, onde, no art. 3º, disciplina as medidas que as autoridades administrativas poderão tomar e, no inciso III, prevê expressamente a realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinas e outras medidas profiláticas ou tratamentos médicos específicos. Desta forma, existe diploma legal prevendo expressamente a realização compulsória dos exames médicos e testes laboratoriais, e implicitamente a internação, quando fala de outras medidas profiláticas e tratamentos médicos específicos.

Apesar da previsão legal para a realização compulsória de exames, testes e internações, a lei não disciplina a forma como serão realizadas, dizendo, apenas, que as medidas só poderão ser tomadas com base em evidência cientifica, que têm natureza temporária, que as pessoas devem cumprir as determinações, sob pena de responsabilização administrativa, civil e penal e que essas determinações necessitam respeitar a dignidade, os direitos e as liberdades das pessoas por elas atingidas.

Indaga-se, passa pelo teste da proporcionalidade usar de força física para impor o tolhimento da liberdade de locomoção para a realização de testes laboratoriais, exames médicos ou internações compulsórias?

A par da inovação legislativa, é imperioso observar o art. 5º, IX, da Constituição da República Federativa do Brasil, que estabelece que “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”. Logo de início, diga-se que não cabe classificar o período de vigência do estado de calamidade pública como tempo de perturbação da ordem interna ou guerra.

O inciso IX do art. 5º da C.F.R.F.B. consagra o direito fundamental de locomoção, ou seja, de ir, vir e ficar. Como dito, trata-se de direito fundamental de primeira dimensão, consubstanciando-se em uma liberdade negativa e cláusula pétrea prevista no art. 60, §4º, IV, da Constituição Federal e, como tal, não pode esse direito ser abolido nem mesmo por meio de emenda constitucional, só podendo através do exercício do poder constituinte originário.

É sabido que mesmo os direitos fundamentais não são absolutos, salvo o direito do brasileiro nato não ser extraditado. Tanto é assim, que o direito de locomoção é mitigado pela própria Constituição, na medita em que prevê penas privativas de liberdade para os casos de cometimento de infrações penais e para o inadimplemento voluntário e inescusável de pensão alimentícia, prevendo, também, outras possibilidades em situação de síncope constitucional.

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Assim, parece-me que o direito de locomoção só pode sofrer as limitas impostas pela própria Constituição da República, sob pena de violação de seu art. 60, § 4º, IV.

Pode-se dialogar sobre um possível conflito entre bens jurídicos constitucionalmente previstos, quais sejam, a vida das pessoas não doentes e a liberdade da pessoa doente, porém, esse conflito deve ser solucionado judicialmente através da aplicação da técnica da ponderação dos interesses, a ser realizada por um Magistrado ou Tribunal e não pelo Poder Executivo.    

No entanto, como já dito acima, o princípio da legalidade previsto no art. 5º, II, da Constituição Federal deve ser ter interpretação de forma ampliativa, englobando outros diplomas normativos, a exemplos dos atos administrativos normativos ou limitativos de condutas e atividades, provenientes do poder de polícia administrativo.

O poder de polícia é aquele que, norteado pelos princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e da indisponibilidade desse interesse, permite à administração pública fiscalizar e controlar condutas e atividades dos administrados de maneira imperativa.

Com base nesse poder, acredito, o Ministério da Justiça e o Ministério da Saúde expediram a portaria interministerial nº 5, onde abre a possibilidade de internação compulsória nos casos de infecção por Covid-19, o que serviu de motivo para que o Governador de São Paulo editasse um Decreto autorizando tal internação. Essa portaria buscou suporte normativo na Lei 13.979/2020, a qual disciplina as medidas de enfrentamento à pandemia pelo Covid-19.

Uma das características do poder de polícia é a discricionariedade, ou seja, a possibilidade da análise a respeito da oportunidade e conveniência para sua prática. Porém, discricionariedade não é arbitrariedade. Em direito, agir de forma discricionária é a possiblidade de escolha dentre as hipóteses trazidas pela lei.

Sobre o exercício do poder de polícia, veja-se o que afirma Cretella Jr apud José Carvalho dos Santos Filho (2009, p. 79): “a faculdade repressiva não é, entretanto, ilimitada, estando sujeita a limites jurídicos: direitos do cidadão, prerrogativas individuais e liberdades públicas asseguradas na Constituição e nas leis.”

Cabe observar que o Ministério Público Federal, por meio do Procurador da República Júlio José Araújo Júnior, expediu recomendação para que as prefeituras da Baixada Fluminense se abstenham de realizar internações compulsórias em razão de infecção pelo Covid-19.

Do pouco que foi dito, acredito que a medida de realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais ou internações hospitalares decorrentes de infecção pelo Covid-19 é, formal e materialmente, contrária à Constituição da República Federativa do Brasil.

Sobre o autor
Wendell dos Santos Nunes

Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande, pós-graduado pela Escola Superior da Magistratura da Paraíba (ESMAPB) e pelo Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ), atualmente exercendo o cargo de Oficial de Justiça no Poder Judiciário do Estado da Paraíba.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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