Covid-19: a valorização do trabalho humano em tempos de crise econômica

26/04/2020 às 16:27
Leia nesta página:

Reflexões sobre os valores sociais do trabalho enquanto ponto de equilíbrio na busca da superação da crise e na sobrevivência do próprio modelo econômico.

Em primeiro lugar, importante destacar o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), grande eixo gravitacional do ordenamento jurídico brasileiro: isto é, o foco principal de seus institutos é a preservação da dignidade da pessoa, enquanto ser humano.

Além disto, há que se destacar também o art. 1º, IV, da CF, que prevê como princípios importantes os valores sociais do trabalho.

Nesse mesmo sentido, dispõe a nossa Bíblia Política que constituem objetivos fundamentais da República, dentre outros, a erradicação das desigualdades regionais, bem como a promoção do bem de todos, sem preconceito ou distinção da qualquer natureza.

Por sua vez, a Constituição estabelece em seu art. 5º, caput, como direitos e garantias fundamentais o direito à vida e o direito à igualdade, dentre outros. Além do mais, também merece ser trazido à baila a previsão do §1º do mesmo art 5º, o qual dispõe que os direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

Não menos importante é a previsão constante do §2º do art.5º, segundo o qual os direitos e garantias desta Constituição não excluem outros decorrentes de tratados internacionais em que o Brasil seja parte (bloco aberto de constitucionalidade).

Com esse mesmo arrimo, dispõe o art. 6º da Constituição Federal que o trabalho constitui um direito social da pessoa, isto é, dotado de importantíssimo grau de fundamentalidade, já que o trabalho dignifica o ser humano.

Até mesmo o capítulo da Constituição destinado à estruturação da ordem econômica e financeira do país dispõe que a ordem econômica está fundada na valorização do trabalho humano e tem por fim assegurar a todos existência digna.

No plano internacional, importante destacar o papel da Organização Internacional do Trabalho, constituída em 11 de abril de 1919, como parte do Tratado de Versalhes. A propósito, foi em 1998 que a OIT teve uma grande mudança de paradigma. Antes, a OIT voltava seu foco ao reconhecimento de direitos trabalhistas individuais e coletivos. Contudo, com a declaração dos princípios fundamentais do direito do trabalho de 1998, a OIT passou a focar na proteção de direitos fundamentais.

Com relação ao covid-19, não é demais lembrar que a mesma diz respeito a uma crise global, portanto necessário reforçar a importância da OIT na concretização de padrões mínimos trabalhistas internacionais para a superação dessa crise de caráter mundial.  

Daí a atual importância da OIT na preservação e efetivo reconhecimento dos direitos fundamentais dos trabalhadores.

Aliás, voltando-nos ao nosso ordenamento jurídico doméstico, é valido destacar que o art. 7º da Constituição Federal estabelece um piso de direitos sociais (proibição de retrocesso social), ou seja, sem ignorar outros que visem à melhoria de sua condição social.

É de se notar, por exemplo, o direito de irredutibilidade do salário, salvo disposição em negociação coletiva (art. 7º, VI, CF). Ou seja, com base no princípio da proteção, é inegável que o trabalhador, isoladamente considerado, constitui a parte mais vulnerável da relação de trabalho (polos assimétricos).

De fato, é inegável que o Brasil não possui uma estrutura normativa moderna preparada para lidar com o atual cenário de crise promovido pela Covid-19. Muito pelo contrário. A sociedade está atravessando um período de grandes desafios e recessão econômica, principalmente em decorrência da necessidade de isolamento social e fechamento dos mais diversos postos de trabalho.

Obviamente, os trabalhadores assalariados acabam se tornando uma das partes mais atingidas pela recessão econômica, pois dependem de sua força de trabalho para a sua sobrevivência e de sua família.

Como forma de mitigar a crise, foram editadas pelo Poder Executivo diversas medidas provisórias, dentre as quais, destaco a MP n.º 936/2020 que instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e dispõe sobre medidas trabalhistas complementares para o enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo decreto legislativo n.º 06/2020.

Em seu art. 3º, a referida Medida Provisória dispõe que será possível a redução de jornada de trabalho e de salários, bem como a suspensão do contrato de trabalho. Por sua vez, o §4º de seu art. 11 dispunha que os acordos individuais para redução de jornada e de salário ou suspensão do contrato de trabalho deveria ser comunicada ao respectivo sindical laboral no prazo de 10 dias.

Ocorre que após um questionamento judicial, o STF definiu que o acordo individual celebrado entre patrão e obreiro não depende da ratificação do sindicato dos trabalhadores, pois não se trataria de uma situação de conflito entre as partes e sim de convergência de interesses na manutenção dos postos de trabalho e da própria empresa.

Sem olvidar ao respeito da digna decisão do Excelso Pretório, há que se ponderar todos os valores constitucionais em jogo. Ou seja, é verdade que o direito de propriedade constitui uma garantia fundamental, porém esse direito deve ser exercido mediante sua função social.

Assim, durante os momentos de crise, parece razoável crer que todas as partes envolvidas (capital e trabalho) devem ceder reciprocamente parcelas de interesse para a consecução do bem comum.

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Contudo, considerando que a relação jurídica trabalhista se dá entre polos assimétricos, isto é, tendo como parte vulnerável o trabalhador, inafastável crer que justamente nos momentos de crise, a presença do sindicato laboral se mostre indispensável, em perfeita harmonia com a teoria horizontal dos direitos fundamentais.


Conclusão

O curso da história já demonstrou que a preservação dos direitos sociais dos trabalhadores é a melhor orientação para a superação da crise econômica, pois permite a estabilização das relações sociais e a própria sobrevivência do modelo econômico.

O que se vislumbra, então, é a busca de uma harmonização  entre as necessárias medidas de equilíbrio fiscal e os esforços máximos para a preservação dos direitos sociais dos trabalhadores.

Assim, faz-se necessária a adoção de medidas e soluções razoáveis que possibilitem a repartição equânime dos ônus igualmente por parte de todos os atores sociais (Estado, empregadores e empregados).

Em suma, a crise exigirá de todos os atores sociais medidas e soluções incomuns e inovadoras. Todavia, em nenhuma hipótese, é possível se vilipendiar, suprimir ou reduzir os direitos fundamentais dos trabalhadores, até mesmo por determinação constitucional (§4º, IV, art. 60, CF), já que constituem cláusulas pétreas.

Sobre o autor
Fernando Magalhães Costa

Autor do PODCAST_Fernando Magalhães: https://bit.ly/fernandomagalhaes. Servidor público federal, Analista Judiciário do TRT da 2ª Região. 2006/2012 - servidor público federal, Técnico Judiciário do TRE-SP. Atuação como Assessor Jurídico Substituto da Presidência na área de Licitações e Contratos. Membro da Comissão Permanente de Licitações e da Equipe de Apoio ao Pregão. Gestor de Contratos. 2001 - Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Lotação: Departamento de Contas Nacionais.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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