Deus, Estado laico e preâmbulos

A laicidade colaborativa, análise dos preâmbulos constitucionais e Deus.

27/04/2020 às 07:47
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O preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 sempre foi motivo de debate entre alunos de Direito, juristas e leigos. Objetiva-se mostrar a natureza do preâmbulo constitucional e a sua importância na área do Direito.

Introdução

O preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 sempre foi motivo de debate entre alunos de Direito, juristas e pessoas sem instrução técnica na área do Direito. Devido o debate existente a respeito do referido preâmbulo, um lado do debate sustenta que citar Deus é contrário ao Estado laico, enquanto o outro lado defende que citar Deus não desrespeita o referido Estado.

Na história do Brasil, tivemos sete constituições – para alguns, tivemos oito constituições devido a emenda n° 1 de 1969. Na maioria das constituições, como será apresentado no tópico “Desenvolvimento”, Deus foi citado. É necessário explorar no Direito Constitucional e no Religioso a possibilidade de um Estado ser laico e ao mesmo tempo citar um ser divino.

No caso da laicidade, existem espécies boas e negativas. A laicidade brasileira é o foco do presente trabalho. No laicismo, os Estados assumem uma postura de tolerância ou intolerância religiosa, diferente da laicidade, que apresenta uma posição de neutralidade perante a religião.

É necessário entender e compreender o preâmbulo da CF/88 para amenizar ou finalizar conflitos desnecessários, que são criados no mundo político e levados para o mundo jurídico. A ciência deve ser despolitizada.

Deus, Estado laico e preâmbulos 

A Constituição Federal de 1988 garante que:

Art. 5° [...]
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

E veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios:

Art. 19 [...]
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

Entende-se que o Estado brasileiro é laico, ou seja, não proíbe cultos religiosos ou igrejas, todavia, não possui relação de dependência ou aliança, e apenas colaborará quando existir interesse público. O Estado brasileiro e a igreja não se confundem e nem se misturam. O decreto n° 119-A/1890 complementa o texto constitucional porque reza que é proibida a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em matéria religiosa, além de consagrar a plena liberdade de cultos e extinguir o padroado - direito de conferir benefícios eclesiástico (MICHAELIS). No Brasil, vigora a laicidade aberta, também conhecida como colaborativa, que é comprovada pelo artigo 19 da CF/88.

A França, "exempli gratia", apresenta um modelo de laicidade radical que afronta à liberdade religiosa, o laicismo francês – também conhecido como laicidade à francesa. De acordo com a Carta da Laicidade Francesa, nos estabelecimentos escolares o uso de símbolos ou vestimentas pelas quais os alunos manifestem ostensivamente uma pertença religiosa é proibida. O objetivo dessa laicidade é sufocar e retirar a crença religiosa dos espaços públicos, até mesmo em escolas, como citado.

Ainda assim, críticos reclamam a respeito do preâmbulo da nossa constituição, que foi promulgada “sob a proteção de Deus":

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. (grifei)

Há três posições a respeito da natureza do preâmbulo da CF/88: i) tese da plena eficácia: o preâmbulo possui força normativa e esclarece a intenção daqueles que instituíram a Constituição, visto que, é derivado do Poder Constituinte Originário; ii) tese da irrelevância jurídica: o preâmbulo se situa na área política, ou seja, está fora do mundo jurídico; iii) tese da relevância jurídica indireta: o preâmbulo não possui força normativa, entretanto, auxilia na aplicação das normas constitucionais e na atividade política do governo[1].

O Preâmbulo Constitucional de 1988 representa os valores a serem respeitados e seguidos pela Constituição, pois se entende que ele é o reflexo da vontade popular após o regime militar.

Na visão histórica, é necessário dizer que uma das primeiras ações de Pedro Alvares Cabral foi organizar uma missa. A partir de 1549, com a chegada dos jesuítas da Companhia de Jesus, que fundaram diversas vilas e cidades, a presença da Igreja Católica se fortaleceu no Brasil. Conforme um relatório do instituto de pesquisa Pew Research Center, o Brasil possui 175 milhões de seguidores de Jesus, atrás apenas dos Estados Unidos, com 246 milhões [2]. Há uma influência relevante do cristianismo no Brasil.

“Todo povoado que surgia era habitado em torno de uma igreja ou capela. Daí porque são inúmeras as cidades que têm nomes de santos católicos, um Estado ostenta o nome de Espírito Santo, o Estado do Pará tem por capital Belém e o Rio Grande do Norte celebra o Natal de Jesus Cristo em sua capital”[3].

A nossa Constituição Imperial, outorgada pelo imperador Dom Pedro I - por graça de Deus - consagrara a religião Católica Apostólica Romana como oficial (art. 5°, Constituição de 1824).

DOM PEDRO PRIMEIRO, POR GRAÇA DE DEOS, e Unanime Acclamação dos Povos, Imperador Constitucional, e Defensor Perpetuo do Brazil: Fazemos saber a todos os Nossos Subditos, que tendo-Nos requeridos o Povos deste Imperio, juntos em Camaras, que Nós quanto antes jurassemos e fizessemos jurar o Projecto de Constituição, que haviamos offerecido ás suas observações para serem depois presentes á nova Assembléa Constituinte mostrando o grande desejo, que tinham, de que elle se observasse já como Constituição do Imperio, por lhes merecer a mais plena approvação, e delle esperarem a sua individual, e geral felicidade Politica: Nós Jurámos o sobredito Projecto para o observarmos e fazermos observar, como Constituição, que dora em diante fica sendo deste Imperio a qual é do theor seguinte: Em Nome da Santíssima Trindade. (grifei)

A nossa primeira constituição republicana (1891) não citava Deus no seu preâmbulo, visto que, o objetivo fora tornar o Estado brasileiro um Estado laico, tendo Rui Barbosa como elaborador da referida constituição. O deputado federal paranaense Plínio Marques apresentou duas emendas à Constituição de 1891. Uma delas propunha a inclusão do ensino religioso nas escolas de todo o país e a outra tornava o catolicismo religião oficial do Brasil. Na época, Getúlio Vargas, que era deputado federal, apresentou um abaixo-assinado que protestava contra a pressão dos padres, bispos e arcebispos que influenciavam e desejavam a aprovação das “emendas católicas” – nome dado às emendas de Plínio Marques. Muitos deputados evitaram assinar o abaixo-assinado devido a sensibilidade do assunto. Os defensores das “emendas católicas” alegaram que as medidas representariam a legítima vontade da alma nacional. Getúlio Vargas declarara: “É apenas uma parte do povo tangido pelos frades” [4]. O documento elaborado por Getúlio foi assinado por cinquenta parlamentares, que ficaram conhecidos como “acatólicos”. Para o jornal O Paiz, Getúlio argumentara: “Há apenas uma pequena parte da população brasileira que se pode dizer verdadeiramente católica, ou seja, que conhece a doutrina e aceita os dogmas desse credo. A grande massa ainda está na fase fetichista da adoração de santos milagreiros” [5].

A Constituição de 1934, teve influência da constituição alemã de Weimar, sendo vislumbrado o Estado Social (Welfare State). O texto constitucional abordava direitos trabalhistas e salário mínimo, por exemplo. A Carta continha um rol extenso de direitos fundamentais, que assegurava, verbi gratia, a liberdade de expressão. A Constituição Republicana de 1934 citava Deus no seu preâmbulo:

Nós, os representantes do povo brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para organizar um regime democrático, que assegure à Nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico, decretamos e promulgamos a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL. (grifei)

A Constituição de 1937, também conhecida como Polaca, devido sua semelhança com a constituição polonesa, omitiu o nome de Deus.

A Constituição de 1946 mencionou Deus em seu preâmbulo:

Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos, sob a proteção de Deus, em Assembléia Constituinte para organizar um regime democrático, decretamos e promulgamos a seguinte Constituição dos Estados Unidos do Brasil. (grifei)

Tanto na Constituição de 1967 quanto na emenda n°. 1, o nome de Deus foi invocado: “O Congresso Nacional, invocando a proteção de Deus, decreta e promulga a seguinte”.

Como se percebe, ao longo de nossa recente história constitucional, o constituinte brasileiro sempre invocou o nome de Deus ao entregar ao povo brasileiro sua Lei Maior. As únicas exceções ocorreram nas constituições de 1891 e 1937 [...] representando a ruptura com um país confessional na primeira e a personificação do ideal fascista autoritário na segunda [6].

O preâmbulo da Constituição de 1988 foi citado no início do artigo. O PSL – Partido Social Liberal propôs a ADI n. 2.076/A em face da Assembleia Legislativa do Estado do Acre por omissão da expressão “SOB A PROTEÇÃO DE DEUS”, exclusivamente, no preâmbulo da Constituição Acreana. O Ministro Velloso, que foi relator da referida ADI, votou pela improcedência da ação por entender que o Preâmbulo não é norma jurídica, não sendo sujeita ao binômio da validade ou invalidade, exclusivo das normas jurídicas.

“Por 78 votos a 1 foi aprovada enfim a cláusula “sob a proteção de Deus”, que hoje faz parte de nosso texto constitucional, depois de longa e não objetiva discussão, revelando duas colocações extremas, a deísta ou teísta, defendida pelos filiados às igrejas, de diversos credos; a ateísta, defendida pelo representante de partido de esquerda, que pugnou pela exclusão de qualquer referência de ordem teológica no texto. A invocação a uma força criadora, causa espiritual ou material do mundo, pode ser aceita, quer pela tese teológica, quer pela materialista”[7].

Resultados

O Supremo o Tribunal Federal – STF julgou de forma errônea o mérito da ADI 2.076, pois fundamentou sua decisão na ausência de caráter normativo do preâmbulo constitucional. O STF deveria ter julgado com base na ausência de força simétrica do referido preâmbulo, visto que, possui caráter normativo e declaratório em relação ao poder constituinte do próprio texto constitucional. Pelo princípio da simetria,
compreende-se que as leis orgânicas não devem desrespeitar a Constituição Estadual, e essa deve seguir os comandos da CF/88. O valor normativo do referido preâmbulo é no sentido de declarar os valores que deverão ser seguidos pela Constituição Cidadã. Sendo assim, é inconstitucional proposta de emenda constitucional que contraria o preâmbulo, e esse apenas poderá ser modificado em caso de nova ruptura constitucional.

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No caso do MS 24.645/DF, a decisão monocrática fora no sentido que o poder constituinte reformador não pode ser limitado pelo preâmbulo, entretanto, o referido poder é limitado, pois é derivado, subordinado e condicionado. Com a análise de julgados, doutrinas, artigos e lei, conclui-se que o preâmbulo constitucional possui caráter declarativo e normativo, pois trata-se do reflexo da vontade
popular.

Em um caso mais recente, o STF julgou procedente pedido inicial para se declarar a inconstitucionalidade de a Lei nº 1.864/2008 do Estado de Rondônia – ADI 5257/RO – pois a referida lei oficializara a Bíblia Sagrada como livro-base de fonte doutrinária para fundamentar princípios, usos e costumes de Comunidades, Igrejas e Grupos (art. 1º, da Lei nº 1.864/2008, do Estado de Rondônia). O Direito canônico pode ser visto de duas formas: (i) como o conjunto de normas da Igreja Católica Apostólica Romana, que é uma visão clássica, e (ii) como o conjunto de normas que regulam as relações de as denominações religiosas com os seus membros, verbi gratia, o estatuto. Sendo assim, com base na CF/88, não é possível que a Bíblia Sagrada seja obrigatória para as comunidades, igrejas e grupos, visto que, a escolha de um livro-base é das denominações, como no caso da Congregação Cristã no Brasil que aponta a Bíblia Sagrada como o seu livro-base (art. 19 do Estatuto da Congregação Cristã no Brasil). Na ADI 5257/RO, é possível compreender bem essa questão, pois o Estado não pode interferir nas denominações religiosas, ainda que seja para apontar um livro-base para complementar a Constituição Federal de 1988.

Na ADI 3.478/RJ, O STF julgou procedente pedido formulado para declarar a inconstitucionalidade do § 12 do art. 91 da Constituição do Estado do Rio de janeiro, visto que, conforme o ilustríssimo relator Ministro Edson Fachin, o referido Estado optou em dar preferência à pastores evangélicos para desempenharem a função de orientadores religiosos na Polícia Militar e no Corpo de Bombeiros Militar. Ainda assim, o dever de neutralidade estatal, a liberdade religiosa e de crença dos demais integrantes da carreira que não professam a mesma fé não foram desrespeitados, pois a liberdade religiosa não se trata de igualdade religiosa, isto é, o cristianismo possui uma relevante participação na história do Brasil, tendo muitos adeptos, ou seja, esta crença terá mais influência. O Estado do Rio de Janeiro não escolheu a vertente evangélica como oficial, mas compreendeu a importância de tal vertente em seu território. Caso algum integrante da Polícia Militar ou do Corpo de Bombeiros Militar possua uma fé diferente, é possível propor mandado de injunção devido ausência de norma regulamentadora que torne inviável o exercício da liberdade de crença, que é uma liberdade constitucional, não sendo possível diminuir a liberdade de crença de um grupo, que é maioria, para beneficiar outros grupos.

Com a análise de julgados, doutrinas, artigos e lei, conclui-se que o preâmbulo constitucional possui caráter declarativo e normativo, pois trata-se do reflexo da vontade popular.

Considerações finais

O preâmbulo constitucional, que tem valores judaico-cristãos, influenciou o Poder Constituinte Originário na elaboração da Constituição de 1988. Trata-se de valores judaico-cristãos porque a história aponta a relevância de Deus na construção e no desenvolvimento da sociedade brasileiro, além de a Constituição ter sido promulgada sob a proteção de Deus. Para o Ministro Alexandre de Moraes, o preâmbulo traça as diretrizes políticas, filosóficas e ideológicas da Constituição. Sendo assim, é uma de suas linhas mestras interpretativas [8]. Autores como Germán Bidart Campos e Lafferrière defendem a existência de força normativa no preâmbulo. É contraditório dizer que o preâmbulo constitucional não tem força normativa, mas ainda assim citá-lo para defender os interesses que devem ser visados para garantia da segurança jurídica do Estado e da vontade popular. Não é possível negar a importância do preâmbulo na construção da Constituição Federal. Caso as normas constitucionais sejam desrespeitadas, o preâmbulo também será desrespeitado, visto que, é um reflexo da vontade popular na CF/88.

Em virtude dos fatos mencionados, conclui-se que o preâmbulo tem força normativa, de acordo com a tese da plena eficácia que esclarece a intenção daqueles que instituíram a Constituição, pois é derivado do Poder Constituinte Originário. É necessário enfatizar que o preâmbulo é o reflexo da vontade popular na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Bibliografia

1- LOURENCINI, Antônio Rogério. O preâmbulo e a Constituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5130, 18 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58052.

2- Gospel. Pesquisa coloca o Brasil como segundo maior país cristão do mundo, atrás apenas dos EUA. Disponível em: https://noticias.gospelmais.com.br/brasil-maior-pais-cristao-mundo-eua-81014.html

3 – O 11 de agosto e a cruz de Cristo. Rocha Barros Sandoval, OVÍDIO. Migalhas, 18 de agosto de 2009. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/90963/o-11-de-agosto-e-a-cruz-de-cristo

4- Estandarte Cristão, 30 de outubro de 1925.

5- O Paiz, 10 de setembro de 1925.

6- Direito Religioso questões práticas e teóricas. Vieira, THIAGO RAFAEL e Marques Regina, JEAN. 3º edição. Vida Nova, 2020.

7 – Comentários à Constituição brasileira de 1988, página 113. Cretella Júnior, JOSÉ. 1ª Edição – 1989.

8- Direito Constitucional. De Moraes, ALEXANDRE. 13° edição. Capítulo 1, seção 6.

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