O presente estudo pretende trazer uma análise sobre o novel instituto denominado pela Lei 13.964/2019, chamada popularmente de “Pacote Anticrime”, de Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), possibilitando ao Ministério Público, subsidiado por elementos probatórios coligidos na fase pré-processual da persecução penal de estabelecer alternativas à imposição de pena privativa de liberdade, mediante a propositura de condições ao investigado, estabelecidas com enfoque na justiça consensual.
Conceitua Lima[1] tal acordo ainda à luz da Resolução n. 181 do Conselho Nacional do Ministério Público o seguinte:
“cuida-se de negócio jurídico de natureza extrajudicial, necessariamente homologado pelo juízo competente, celebrado entre o Ministério Público e o autor do fato delituoso - devidamente assistido por seu defensor -, que confessa formal e circunstanciadamente a prática do delito, sujeitando-se ao cumprimento de certas condições não privativas de liberdade, em troca do compromisso do Parquet de promover o arquivamento do feito, caso a avença seja integralmente cumprida.”
Observa-se aqui a divergência doutrinária estabelecida por Ruchester Marreiros Barbosa e Raphael Zanon da Silva em seu artigo “Delegado de polícia deve viabilizar acordo de não persecução penal”2[2] ao destacar a natureza jurídica do instituto, entendendo não se tratar de um negócio, mas de “ato jurídico stricto sensu processual e verdadeiro direito subjetivo do indiciado”, que, levado a termo, se resolve sem a imposição de pena cerceadora da liberdade.
A partir destes conceitos, o acordo de não persecução penal deve ser analisado sob o prisma constitucional, ressaltando-se o princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade, o qual passa a ser relativizado à medida que atribui o cumprimento de condições acordadas perante o Ministério Público a confissão formal e circunstanciada, que leva a um juízo de probabilidade quanto a
materialidade delitiva, eis que circundado de outras provas, tais como depoimentos de vítimas e testemunhas.
Nota-se também que os princípios do contraditório, ampla defesa e devido processo legal devem ser lidos sob a ótica da relativização, pois não se tratando de apuração apta ao arquivamento, haverá um confronto de informações entre a proposta apresentada pelo Ministério Público e a disponibilidade do acusado em anuir ou não ao pacto, cujo aceite abrevia uma longa marcha processual, submetendo-se ao crivo judicial apenas o acordo já celebrado para análise e consequente homologação.
Contudo, voltando o olhar ao estado de coisas anterior à proposta de acordo, temos o fato, apresentado como típico, antijurídico e culpável, levado ao crivo de outra autoridade para análise de imposição ou não de prisão, operando-se aqui o direito em sua mais pura essência, pois verifica-se o contato imediato com provas ainda aptas a serem colhidas e levadas ao crivo do Ministério Público para formação da “opinio delicti” e também na formação do livre convencimento da autoridade judicial.
Nessa trilha, mostra-se curial a atuação na fase do Inquérito Policial presidido pelo Delegado de Polícia, operador do direito e expert na elucidação de infrações penais, buscando trazer a lume a verdade possível ao investigar as nuances que levaram o autor dos fatos a praticar um delito, descortinando ainda a materialidade delitiva com amplo espectro de provas que podem ser postas à disposição da justiça.
Para melhor atuação nessa seara, o legislador vem munindo o Delegado de Polícia de diversos instrumentos legais, estruturando este operador do direito sempre com ênfase aos direitos e garantias fundamentais, outorgando-lhe a possiblidade de imposição da prisão após detida análise fatual e submissão a critérios técnico-legais, respeitada sua livre convicção motivada.
Assim, temos o reestilizado instituto da fiança, previsto no Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), que atribui à autoridade policial, no caso, ao Delegado de Polícia, a concessão de tal benefício ao autuado em flagrante delito, prevendo-se inicialmente nos casos de infrações penais punidas com penas de detenção ou prisão simples, modificado com a edição da Lei nº 12.403 de 4 de maio de 2011, para os crimes punidos com pena privativa de liberdade máxima não superior a 4 anos[3].
Não à toa, também editou-se a Lei 12.830/13 que ressalta em seu artigo 2º, §1º:
“§1º Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.”[4]
Aqui cabe um apontamento bastante arguto, quando referida lei aponta a condução da investigação criminal por “outro procedimento previsto em lei”, o legislador pátrio confere ao Delegado de Polícia uma gama de possibilidades, dentre elas a figura do conciliador, quando autoriza a celebração de audiências de conciliação no âmbito da Lei 9099/95, que dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais, através de Núcleos Especiais Criminais da Polícia Civil, amplamente divulgado com excelentes resultados[5].
Verifica-se a destacada atuação do Delegado de Polícia que, ao receber a “notitia criminis” de menor potencial ofensivo deliberará pela confecção do termo circunstanciando, bem como realizará audiência de conciliação com vistas a entregar ao Poder Judiciário o alicerce necessário para adequada e eficiente
prestação jurisdicional, partindo da premissa de que as partes conflitantes chegaram a termo através da conciliação conduzida pelo Delegado de Polícia.
Na outra margem, encontra-se também o respaldo legal dado ao Delegado de Polícia quando atua na investigação do crime organizado, trazendo em seu bojo infrações penais de grande potencial ofensivo, amparado pela Lei 12.850/13, a qual reforçou técnicas investigativas próprias da Polícia Judiciária conduzida pelo Delegado de Polícia, com feliz destaque para a celebração de colaboração premiada, contendo a seguinte redação no artigo 4º, §2º[6]:
“§ 2º Considerando a relevância da colaboração prestada, o Ministério Público, a qualquer tempo, e o delegado de polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, poderão requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial, aplicando-se, no que couber, o art. 28 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal).” (grifo nosso)
Reza ainda o §6º do mesmo diploma legislativo:
“§ 6º O juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor.” (grifo nosso)
Pois bem, tem-se aqui delineada exatamente a ideia da justiça negociada a partir do momento em que, atuando o Delegado de Polícia na investigação da criminalidade organizada, poderá formalizar um acordo que, da mesma forma do acordo de não persecução penal, deve revestir-se de requisitos e condições a serem cumpridas, observando sempre a indispensável manifestação do órgão ministerial e consequente homologação judicial.
Observa-se, portanto, indevida lacuna deixada pelo legislador que, lege ferenda, poderá ser equacionada com a possibilidade do Delegado de Polícia estabelecer o acordo de não persecução em infrações denominadas pela doutrina pátria de médio potencial ofensivo, delineando a inexistência de violência ou grave ameaça, pena mínima inferior a 4 anos, impossibilidade de aplicação dos institutos do acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo, caso tenha sido o investigado beneficiado nos 5 anos anteriores ao cometimento da infração, ausência de reincidência ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas, além de ter ser inaplicável nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.
Aliás, no que tange à violência doméstica e familiar contra a mulher, também se demonstra a importância do Delegado de Polícia na condução da persecução penal pré-processual ao designar-lhe para conceder medida protetiva de urgência, conforme enuncia o seguinte enunciado:
“Art. 12-C. Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida: (Incluído pela Lei nº 13.827, de 2019)
I - pela autoridade judicial; (Incluído pela Lei nº 13.827, de 2019)
II - pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de comarca; ou (Incluído pela Lei nº 13.827, de 2019) (grifo nosso)
III - pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia. (Incluído pela Lei nº 13.827, de 2019).”
Assim, inserir o Delegado de Polícia nesse contexto mostra-se extremamente producente e de encontro teleológico aos ditames da nova lei, pois obtida uma confissão do investigado, observados seus direitos constitucionais e possibilitando uma rápida solução do fato aflitivo à sociedade, deixa assim o Ministério Público e o Poder Judiciário ainda mais robustecido em sua convicção jurídica para acolhimento do acordo em tela.
Sob este prisma, pode o Delegado de Polícia, primeiro garantidor da legalidade e da justiça[7], fazendo uma análise técnico-jurídica dos elementos que lhe são informados no momento da apresentação do investigado, trazer à lume a este que, ao cumprir os requisitos legais, poderá fazer jus a um acordo a ser ratificado pelo Ministério Público, desde que confesse e concorde em se submeter a referido acordo, sem que possa tal confissão ser futuramente utilizada em seu desfavor.
Instrumentos não faltam ao Delegado de Polícia para tal mister, podendo na redução a termo das declarações do investigado, durante Inquérito Policial já instaurado, atentá-lo para a possibilidade de acordo, inserindo sua anuência ainda durante sua versão apresentada, podendo estender tal ponderação inclusive para, alternativamente à atuação da prisão em flagrante delito, determinar a deflagração da persecução penal com imediata instauração de Inquérito Policial e consequente encaminhamento ao Ministério Público.
Exemplificando tal pensamento, apresentado ao Delegado de Polícia um fato narrado como furto, cuja pena é de 1 a 4 anos de prisão, não possuindo antecedentes criminais, nem mesmo já tendo sido beneficiado com os institutos da transação penal e acordo de não persecução penal nos últimos 5 anos, poderia então ser apresentada ao detido a possibilidade de adesão ao acordo de não persecução penal, cuja concordância resultaria na imediata instauração de Inquérito Policial mediante portaria, coleta de informações plasmadas nos depoimentos da vítima e testemunhas, assim como formalização das declarações do conduzido e sua aceitação de eventual acordo, sem que houvesse seu indiciamento, encerrando-se o caderno investigativo com relatório conclusivo e remessa ao Ministério Público e Poder Judiciário, cenário este que se revela ideal, quando se busca uma justiça não apenas consensual, mas célere e eficiente.
Noutro giro, caberá também ao Delegado de Polícia quando suscitar a hipótese de acordo de não persecução penal, não somente observar os direitos e garantias fundamentais do investigado, mas, não menos importante, amparar a vítima, a fim de que seu dano seja reparado ou mesmo seja obtida a restituição da coisa, evitando-se assim o fenômeno da sobrevitimização ou vitimização secundária, pois
não bastasse o sofrimento da infração penal, ainda aguardaria o resultado de um lento e moroso processo conduzido pelas instâncias formais de controle social, o que poderia frustrar suas expectativas[8].
A reboque das considerações lançadas, o acordo de não persecução penal ainda merece sua análise sob o ângulo da moderna criminologia ao buscar com tal instrumento a prevenção especial positiva, objetivando a reflexão do autor de média infração penal a desistir da prática de novas infrações penais, reverberando na prevenção geral negativa ao conscientizar outros cidadãos sobre as consequências do acordo[9].
Objetiva-se, com tal raciocínio, incitar a comunidade jurídica a inserir o Delegado de Polícia neste debate ao abreviar a prestação jurisdicional por intermédio de justa e eficiente persecução criminal conduzida pelos seus diversos atores nas fases investigativa e processual, destacadamente àquele a quem os fatos são inicialmente apresentados e que é considerado o primeiro garantidor do cidadão, não se posicionando à margem desta nova vertente da justiça consensual ou negociada, tratada como modelo reacionário ao delito, não se olvidando quanto a sua faceta pacificadora ou restaurativa.
[1] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Volume único. 7ª edição. Salvador. Editora Juspodivm, 2019, p. 200.
[2] Disponível em:< https://www.conjur.com.br/2020-mar-17/academia-policia-delegado-policia-viabilizaracordo-nao-persecucao-penal#author>, acessado em 26/04/2020.
[3] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm>. Acessado em 26/04/2020.
[4] Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12830.htm>. Acessado em 26/04/2020.
[5] Disponível em: <https://www.policiacivil.sp.gov.br/portal/faces/pages_home/noticias/noticiasDetalhes?contentId=UCM
_044536&collectionId=358412565221033245&rascunhoNoticia=0&_afrLoop=226710550308315&_afrWindowMode=0&_afrWindowId=1bjm23cq1k_1#!%40%40%3F_afrWindowId%3D1bjm23cq1k_1%26collectionId%3D358412565221033245%26_afrLoop%3D226710550308315%26contentId%3DUCM_044536%26rascunhoNoticia%3D0%26_afrWindowMode%3D0%26_adf.ctrl-state%3D1bjm23cq1k_29>. Acessado em 26/04/2020.
[6] Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm>. Acessado em 26/04/2020.
[7] HC 84548/SP
[8] SUMARIVA, Paulo. Criminologia. Teoria e Prática. 4ª edição, revista, ampliada e atualizada. Niterói. Editora Impetus, 2017, p. 106.
[9] SUMARIVA, Paulo. Criminologia. Teoria e Prática. 4ª edição, revista, ampliada e atualizada. Niterói. Editora Impetus, 2017, p. 165-166.