Barreiras Comerciais como Política Protecionista na Guerra contra o Coronavírus

29/04/2020 às 14:59
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A pandemia da covid-19 provocou uma corrida internacional por equipamentos, instrumentos e suprimentos, forçando as nações reformularem suas políticas de comércio exterior com medidas protecionistas excepcionais como tábua de salvação para população.

O surto infeccioso tem provocado grandes baixas e milhões de infectados ao longo do globo, esgotando a capacidade do sistema de saúde de diversas nações para lidar com a crise.

Tendo em vista ainda não existir maneiras de profilaxia para combater efetivamente o vírus de forma preventiva, os Estados Internacionais têm investido em medidas repressivas: aumento de leitos de UTI, compra de EPIs, ventiladores artificiais, construção de hospitais, etc.

O mês de abril inaugura o período de aceleração do contágio no Brasil, onde o sistema de saúde pode entrar em colapso por não conseguir suportar e alojar a quantidade de pacientes em estado grave.

Entre os principais sintomas da covid-19, destacam-se: febre, tosse e dificuldade de respirar. Nos casos mais graves, existe a necessidade de utilização de aparelhos de ventilação, objeto que se tornou imprescindível em qualquer UTI para lidar com a pandemia.

Pensando nisso, diversas nações já começaram a disputa internacional de importação para compra dos referidos aparelhos.

Nesse cenário, os jornais de grande circulação noticiaram que a pandemia tem provocado um quadro caótico por suprimentos e equipamentos, como tábua de salvação diante da guerra contra o coronavírus.

A disputa internacional teve seus ânimos exaltados quando a Alemanha acusou os Estados Unidos de “pirataria moderna” pela prática baseada no oferecimento de quantias maiores com pagamentos adiantados para aquisição de materiais que já haviam sido faturados e objeto de contrato por esses países, “pulando a fila” de espera e desviando o curso regular das mercadorias.

Tal prática também foi reportada pelo Brasil e pela França, onde se afirmou que os norte-americanos vêm fazendo propostas financeiras mais altas do que as já assinadas entre os países e as fornecedoras.

Adotando uma postura protecionista, duramente criticada, o Presidente Trump proibiu a exportação de máscaras pela empresa americana 3M, recorrendo à lei da época da Guerra da Coreia, com fim de garantir o estoque nacional para demanda interna.[1]

Nos momentos de crise, guerras e pandemias, tende-se a flexibilizar direitos e interpretações, fragilizando, como se percebe, as relações internacionais comerciais com práticas desleais, acabando por prejudicar as nações mais afetadas e carentes.

Justamente para evitar tais desrespeitos e visando estabelecer um comércio internacional livre e mais transparente foi criado em 1947 o GATT – General Agreement  on Tariffs and Trade[2], que traz alguns princípios básicos que devem reger todas as relações negociais:

1- Não Discriminação

É o princípio básico da OMC. Está contido no Art. I e no Art. III do GATT 1994 no que diz respeito a bens e no Art. II e Art. XVII do Acordo de Serviços. Estes Artigos estabelecem os princípios da nação mais favorecida (Art. I) e o princípio do tratamento nacional (Art.III). Pelo princípio da nação mais favorecida, um país é obrigado é estender aos demais Membros qualquer vantagem ou privilégio concedido a um dos Membros; já o princípio do tratamento nacional impede o tratamento diferenciado de produtos nacionais e importados, quando o objetivo for discriminar o produto importado desfavorecendo a competição com o produto nacional.

2- Previsibilidade

Os operadores do comércio exterior precisam de previsibilidade de normas e do acesso aos mercados tanto na exportação quanto na importação para poderem desenvolver suas atividades. Para garantir essa previsibilidade, o pilar básico é a consolidação dos compromissos tarifários para bens e das listas de ofertas em serviços, além das disciplinas em outras áreas da OMC, como TRIPS, TRIMS, Barreiras Técnicas e SPS que visam impedir o uso abusivo dos países para restringir o comércio.

3- Concorrência Leal

A OMC tenta garantir não só um comércio mais aberto mas também um comércio justo, coibindo práticas comerciais desleais como o dumping e os subsídios, que distorcem as condições de comércio entre os países. O GATT já tratava destes princípios nos Art. VI e XVI, porém estes mecanismos só puderam ser realmente implementados após os Acordos de Antidumping e Acordo de Subsídios terem definido as práticas de dumping e de subsídios e previsto as medidas cabíveis para combater o dano advindo destas práticas.

4- Proibição de Restrições Quantitativas

O Art. XI do GATT 1994 impede o uso de restrições quantitativas (proibições e quotas) como meio de proteção. O único meio de proteção admitido é a tarifa, por ser o mais transparente. As quotas tarifárias são uma situação especial e podem ser utilizadas desde que estejam previstas nas listas de compromissos dos países.

5- Tratamento Especial e Diferenciado para Países em Desenvolvimento

Este princípio está contido no Art. XXVIII bis e na Parte IV do GATT 1994. Pelo Art. XXVIII bis do GATT 1994, os países desenvolvidos abrem mão da reciprocidade nas negociações tarifárias (reciprocidade menos que total). Já a Parte IV do GATT 1994 lista uma série de medidas mais favoráveis aos países em desenvolvimento que os países desenvolvidos deveriam implementar. Além disso, os Acordos da OMC em geral listam medidas de tratamento mais favorável para países em desenvolvimento.

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Posteriormente, o GATT foi substituído pela OMC – Organização Mundial do Comércio em 1995, principal instância para administrar o sistema multilateral do comércio.

É importante distinguir as práticas negociais desleais das barreiras comerciais. Embora não haja uma definição precisa, barreira comercial pode sem entendida como qualquer lei, regulamento, política, medida ou prática governamental que imponha restrições ao comércio exterior.

As barreiras comerciais podem ser divididas em duas categorias: i) barreiras tarifárias (imposto de importação, taxas diversas); ii) barreiras não-tarifárias (licenciamento, procedimento alfandegário, medida antidumping, medidas compensatórias, medidas de salvaguarda, medidas sanitárias...).

Dentre as barreiras não-tarifárias, destaca-se a medida de salvaguarda, que tem como objetivo aumentar, temporariamente, a proteção da demanda doméstica, que esteja sofrendo prejuízo grave ou ameaça.[3]

Como se pode perceber, a utilização da Defense Product Act pelo Governo Norte-Americano visando impedir a exportação de máscaras da maior fabricante do mundo gera uma barreira comercial, pode ser enquadrada como uma medida protecionista de cunho excepcional e lícita perante a comunidade internacional, prevista no art. XIX do GATT.

Tal política nacionalista, regida pelo forte instinto de sobrevivência, pode incentivar condutas similares pelas nações vizinhas, incutindo um sentimento de estado de necessidade e salve-se quem puder.

Do ponto de vista micro, Trump, como gestor público, está fazendo tudo que está ao seu alcance para angariar o máximo de recursos possíveis para abastecer a necessidade norte-americana, podendo sua conduta ser interpretada como patriota para alguns.

Postura semelhante pode ser identificada no Brasil quando a União realizou a decretação de requisições administrativas com vistas a impedir que fabricantes nacionais realizassem a exportação de diversos ventiladores pulmonares, garantindo assim a utilização no território brasileiro.[4]

Nesse mesmo sentido é a lei nº 13.993/20, publicada em 24/04/2020, que proíbe a exportação de produtos médicos, hospitalares e de higiene essenciais ao combate à epidemia do coronavírus no Brasil:

Art. 1º  Fica proibida a exportação de produtos médicos, hospitalares e de higiene essenciais ao combate à epidemia de coronavírus no Brasil, enquanto perdurar a Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2).

§ 1º  Sem prejuízo da inclusão de outros produtos por ato do Poder Executivo, ficam proibidas as exportações, nos termos do caput deste artigo, dos seguintes produtos:

I - equipamentos de proteção individual de uso na área de saúde, tais como luva látex, luva nitrílica, avental impermeável, óculos de proteção, gorro, máscara cirúrgica, protetor facial;

II - ventilador pulmonar mecânico e circuitos;

III – camas hospitalares;

IV - monitores multiparâmetro.

§ 2º  Ato do Poder Executivo poderá excluir a proibição de exportação de produtos, desde que por razão fundamentada e sem prejuízo de atendimento da população brasileira.

Art. 2º  Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação

No panorama macroeconômico, apesar das barreiras comerciais poderem desgastar, em curto prazo, o campo político dos blocos econômicos, relações internacionais, não há outra medida repressiva capaz de ser adotada por parte dos Chefes de Estado com fins de minimizar ou compensar os efeitos da disseminação.

O mundo está diante de um estado de inexigibilidade de conduta diversa por parte dos governantes num contexto de escassez de recursos, suprimentos e equipamentos médicos.

É importante ressaltar que se trata de um estado de calamidade global, exceção relevante de força maior apta a enrijecer a política mercantil com barreiras comerciais, visando, justamente, a perpetuidade e manutenção de seu povo, preocupação número um de qualquer país.

 


[1] https://www.msn.com/pt-br/noticias/mundo/eua-s%C3%A3o-acusados-de-pirataria-e-desvio-de-equipamentos-que-iriam-para-alemanha-fran%C3%A7a-e-brasil/ar-BB12a8b7?ocid=msedgntp

[2] GATT – Acordo Geral de Tarifas e Comércio, referente a uma série de acordos de comércio internacional destinados a promover a redução de obstáculos às trocas entre as nações.

[3] http://www.mdic.gov.br/index.php/comercio-exterior/defesa-comercial/205-defesa-comercial-2/o-que-e-defesa-comercial/1781-salvaguarda-as-medidas-de-salvaguarda

[4] Processo nº 0802886-59.2020.4.05.000

Sobre o autor
Filipe Reis Caldas

Advogado Tributarista. Bacharel em Direito pela Faculdade Marista. Pós-graduado em Direito Público pela Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF. Pós-graduando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET. Membro da Comissão de Assuntos Tributários da OAB/PE.

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