Como se sabe, o contrato faz lei ou tem força de lei entre as partes que o pactuam. É a conhecida pacta sunt servanda. Daí a cláusula rebus sic stantibus, cujo entendimento é que a obrigatoriedade do cumprimento dos contratos, celebrados pelas partes, sejam cumpridos enquanto estiver mantida a inalterabilidade da situação fática que os embasou e que sirva de pano de fundo à relação jurídica. Por isso, Rebus sic stantibus pode ser lido como "enquanto as coisas estão assim".
Todavia, em virtude da evolução social e econômica da sociedade com todas as problemáticas que lhe são pertinentes, já não se vê as relações contratuais como sendo estáticas e inquestionáveis.
Essa realidade decorre da função social do contrato (Artigo 421 CC/02), cuja ideia é que o contrato pactuado, embora diga respeito apenas as partes celebrantes, produza também efeitos perante a sociedade. De modo que, os contratos celebrados não podem ofender interesse sociais.
Desse modo, diante de acontecimentos imprevisíveis e extraordinários, não imputáveis às partes, será possível que, o contrato outrora pactuado pelas partes e antes dito inquestionável pelo princípio da pacta sunt servanda, seja passível de revisão e até mesmo de resolução em suas cláusulas. Essa ideia define o que se denomina Teoria da Imprevisão.
A Teoria da Imprevisão despontou na primeira guerra mundial, em virtude da instabilidade social e econômico acarretada pelos efeitos da guerra.
O direito civil brasileiro adota a Teoria da Imprevisão. Observe-se o que dispõe o código civil de 2002:
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.
Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.
Assim, diante da instabilidade social e econômica acarretada pela pandemia do novo COVID-19, onde se determinou o isolamento social, cuja repercussão e efeitos alcançaram as esferas públicas e privadas nos três poderes e nas esferas Federal, estadual e Municipal, se nota com clareza solar a presença dos requisitos para aplicação da Teoria da Imprevisão.
Logo, a aplicação da referida teoria nos contratos de alienação fiduciária de coisa móvel é perfeitamente possível durante a crise pandêmica. (Acontecimentos extraordinários, imprevisíveis e excessividade onerosa nas relações contratuais).
Para reforçar a aplicação da referida Teoria, é importante ressaltar o impacto econômico causado pelas medidas de ordem sanitária em virtude do combate ao COVID-19, principalmente na esfera privada, tendo em vista que a atividade empresarial teve de diminuir suas atividades, a partir de funcionamentos parciais.
Sem olvidar de que algumas frentes comerciais necessitaram fechar as portas em virtude da recessão econômica acarretada pelas medidas das autoridades, no exercício do poder de polícia administrativo, para fins de saúde pública, o que acarretou sem sombra de dúvidas um grande desequilíbrio nos contratos privados.
Desse modo, diante de um contrato de Alienação fiduciária de coisa móvel, envolvendo veículos, por exemplo, nesse período de pandemia e de notória instabilidade econômica para o Brasil e em particular para alguns brasileiros, nada mais justo que seja invocada pelas partes que estejam envolvidas em algumas avença contratual do gênero, a aplicação da Teoria da Imprevisão.
A partir da análise de cada caso pode se constatar enriquecimento indevido de uma das partes na relação contratual, somado aos acontecimentos imprevisíveis e extraordinários.
Desse modo, a busca e apreensão do bem móvel (veículo) pode ser perfeitamente indeferida, afastando-se a mora do devedor a partir da aplicação da referida teoria, demonstrando faticamente que as coisas já não são como estavam no início do pacto (rebus sic stantibus).
A mora do devedor deve ser afastada nesse período em que se enfrenta mundialmente a pandemia, uma vez que a economia e a vida financeira da maioria dos brasileiros não ficaram intactas (A prova disso é o auxílio emergencial implementado pelo Governo Federal para o suporte de algumas famílias e empreendedores brasileiros).
A mora do devedor não deve ser reconhecida em alguns casos, nesse tempo de pandemia, pois ela é o grande fundamento para que se defira as buscas e apreensões de veículos nos contratos de alienação fiduciária, conforme redação do decreto-lei 911/69:
Art. 3o O proprietário fiduciário ou credor poderá, desde que comprovada a mora, na forma estabelecida pelo § 2o do art. 2o, ou o inadimplemento, requerer contra o devedor ou terceiro a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, a qual será concedida liminarmente, podendo ser apreciada em plantão judiciário. (Redação dada pela Lei nº 13.043, de 2014) (grifo nosso).
Desse modo o Poder Judiciário tem a oportunidade de ser protagonista, a partir de uma postura ativista, analisando caso a caso a situação de cada contratante, em especial os envolvidos em alienação fiduciária, onde o credor tem as prerrogativa legal de requerer a busca e apreensão do bem móvel em caso de não cumprimento da obrigação, revisando as cláusulas dos contratos com diminuição dos valores das parcelas mensais, prorrogando as datas de vencimentos das parcelas, impedindo a incidência de juros de mora e de honorários advocatícios, o que pode também pode ser feito por meio do acordo provocado.
REFERÊNCIAS:
JUS BRASIL. Princípio da boa-fé objetiva é consagrado pelo STJ em todas as áreas do direito. Disponível em:<https://stj.jusbrasil.com.br/noticias/100399456/principio-da-boa-fe-objetiva-e-consagrado-pelo-stj-em-todas-as-areas-do-direito >. Acesso em: 01 marc. 2020.
SENADO FEDERAL. Página institucional. Disponível em: <( https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/70327/C%C3%B3digo%20Civil%202%20ed.pdf)>. Acesso em 15 fev. 2020.