Semelhanças em aspectos constitucionais e penais do direito hebraico previsto no Pentateuco em comparação com o direito brasileiro atual

Considerações sobre a Bíblia como fonte de ensino jurídico

03/05/2020 às 13:39

Resumo:


  • O direito hebraico-bíblico influenciou significativamente o desenvolvimento do direito moderno, refletindo-se em várias normas e institutos aplicados no direito penal contemporâneo.

  • Os Dez Mandamentos e outras leis presentes nos cinco primeiros livros da Bíblia (Pentateuco) estabelecem valores e bens jurídicos fundamentais que são protegidos tanto no direito hebraico antigo quanto no direito penal brasileiro atual.

  • Existe uma semelhança entre as legislações hebraica e brasileira no que diz respeito à classificação e tratamento do crime de homicídio, diferenciando entre homicídio doloso e culposo, e estabelecendo penas e procedimentos específicos para cada caso.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Trata-se de considerações sobre o pentateuco, em aspectos constitucionais e penais, com vistas a comparação com o direito penal. Visa apontar semelhanças semânticas entre os dois blocos normativos e a importância do estudo do direito hebraico.

  • PRÓLOGO

“O direito é o trabalho sem descanso e não somente o trabalho dos poderes públicos, como também de todo o povo. Se abraçarmos em um momento dado toda a sua história, ele nos apresentará nada menos do que o espetáculo de toda uma nação, desenvolvendo sem cessar, para defender seu direito, tão penosos esforços quanto os que emprega para o desenvolvimento de sua atividade na esfera da produção econômica e intelectual.” Jhering “A luta pelo direito”.

Trata-se de considerações sobre os cinco primeiros livros da Bíblia em aspectos constitucionais e penais, com vistas a comparação com o direito penal. Tem como objetivo apontar semelhanças entre o direito atual brasileiro e a formação do direito hebraico-bíblico, observando a origem de alguns institutos aplicados no direito penal vigente e a importância do estudo do direito hebraico para a aplicação atual.

Não é pretensão desse estudo analisar a justiça da norma ou dos valores, mas apenas defini-los. Conforme afirma Kelsen,

“Todo sistema de valores, em especial um sistema de moral com a sua ideia central de justiça, é um fenômeno social, o produto de uma sociedade e, portanto, diferente de acordo com a natureza da sociedade dentro da qual ele emerge. (...) Como a humanidade está dividida em várias nações, classes, religiões, profissões etc., muitas vezes divergentes entre si, existe um grande número de conceitos diferentes de justiça – aliás um número grande demais para que se possa falar simplesmente de “justiça”.” (Teoria geral do direito e do Estado, Martins Editora Livraria Ltda, SP, 5ª edição, tradução Luís Carlos Borgens, Hans KELSEN, p. 11 e 12).

Embora, em tese, as leis reflitam a realidade histórica da época, casos concretos descritos na Bíblia não serão objeto de análise, já que propõe analisar o conteúdo das normas, não sua aplicação.

  • IMPORTÂNCIA E ORIGEM DAS NORMAS DO ESTADO HEBREU

Jayme de Altavila, em seu livro “Origem dos Direitos dos Povos” afirmava que “no cotejo dessa constituição político-religiosa do Velho Testamento, encontramos normas jurídicas que influíram não somente no direito que a sucedeu, como no direito moderno.” (p. 19)

O direito hebraico influenciou o direito romano, que, por sua vez, é presente na maioria dos Códigos Civis modernos; além de estar presente no cotidiano da maioria da população, já que tem sua fonte na Bíblia ou na Torah.

“Conquanto inimigo dos hebreus, Maneton reconhece-lhes os méritos legislativos que culminaram, conforme Martin Buber, professor da Universidade Hebréia de Jerusalém, em “un acontecimiento unico en la historia de la humanidad que el proceso de cristalización decisivo en el desarollo de un pueblo se consumó sobre una base religiosa”. (Martin Buber – Moises. Ed. Imán. B. Aires. 1949).  (Origem do direito dos povos, pg. 16 )

A despeito de haverem outras teorias sobre a autoria do Pentateuco, Moisés aparece como autor dos cinco livros. Embora tivesse a oportunidade de ser autoridade no Egito, foi líder e porta-voz de Deus para os hebreus. Os historiadores antigos ressaltam a importância desse homem “sem antecessores”, mas com Deus, conforme descrito a seguir:

“Los fundadores de impérios y de principados, de que están llenas las historias, abrieron y echaran los cimentos de su poder ayudados de fortíssimos ejércitos y de fantásticas muchedumbres. Moisés está solo em desiertos, y con esos seiscentos mil rebeldes, derribados en tierra por su voluntad soberana, se compone un  grande império y un vastísimo principado. Todos los filósofos y todos los legisladores han sido hijos, por su inteligencia, de otros legisladores y de más antiguos filósofos. Licurgo es el representante de la cultura intelectual de los pueblos jônios; Numa Pompilio representa la civilisación etrusca; Platón descende de Pitágoras, de los sacerdotes del Oriente. Sólo Moisés está sin antecessores.” (Donoso Cortés – Discurso académico sobre la Biblia).  (p. 16) “Minos, Sesostris, Licurgo, Numa, Solón y Zaleuco dejaron de ser respetados y obedecidos, pero la legislación de Moisés sobrevive a la de todos los pueblos de la tierra”. (S. Reinach – Orfeo – Historia General de las Religiones). (p. 16 e 17, Origem do direito dos povos).  

II.1- Da formação do povo hebreu

O Estado hebraico é oriundo de uma promessa de povo, território e soberano.

Gênesis 12 retrata a aliança estabelecida entre Deus e seu servo Abraão, de que ele seria pai de uma grande nação, por meio da qual seriam abençoados todos os outros povos da terra.

Abraão era casado com Sara, estéril, ambos avançados em idade, mas, para espanto de todos e glória de Deus, ao completar cem anos de idade, nasce Isaque, o filho da promessa.

Isaque se casou com Rebeca, que gerou filhos gêmeos: Esaú e Jacó. Mais tarde conhecido como Israel, Jacó ganhou o direito à primogenitura ao trocá-lo, com seu irmão, por um prato de lentilhas e enganar seu pai. Algum tempo depois, Jacó se casou com Lia e Raquel e teve doze filhos, cuja descendência formou as doze tribos de Israel.

Raquel deu à luz José, que foi o filho preferido de Jacó e acabou por ser vendido, pelos irmãos, como escravo a um comitiva com destino ao Egito. O Senhor foi com ele e, após muitos anos, o colocou como autoridade no Egito, de modo que salvou a nação egípcia e sua família da fome.

Em decorrência da escassez de alimento em toda a terra, Jacó terminou seus dias no Egito.

Depois que todos esses morreram, tendo mudado o faraó, o povo se esqueceu de José. Em decorrência do crescimento em número dos israelitas, os egípcios temeram os estrangeiros e os subjugaram. Foram escravos quatrocentos anos, conforme a profecia de gênesis 15, ao fim dos quais o Senhor convocou Moisés para libertar Seu povo.

Ao saírem do Egito, ainda no deserto, o Senhor confirmou a aliança feita com Abraão e reafirmou o contrato com o povo, de que eles seriam Seu povo e Ele seria o Deus deles. Israel era um povo, com um Soberano, que havia prometido um território. Constituída, então, uma nação, cujo objetivo era ser benção, seguir fielmente os estatutos de Deus e não se contaminar com as nações pagãs que encontrariam pelo caminho.

Segundo o Comentário Bíblico de Matthew Henry, sobre a aliança feita no capítulo 19 de Êxodo, “aqui temos: a data do grande concerto segundo o qual a nação de Israel foi fundada”, ou seja, no terceiro mês após a saída do Egito. (Comentário Matthew Henry, volume 1, p. 288)

Conforme a introdução do livro de Êxodo contida na Bíblia de Estudo NVI, “Deus suscitou seu servo Moisés: 1) para libertar Seu povo da escravidão do Egito, 2) para inaugurar seu reino terreno entre eles, firmando com a nação uma aliança especial, e 3) para erigir em Israel a tenda régia de Deus”.

Segundo Kelsen, Deus assumiu a obrigação de proteger seu povo em contrapartida do povo ser fiel e obedecer à Sua lei.

O Soberano de Israel é o Senhor, Criador do céu e da terra, que retirou Seu povo do Egito com mão forte, Senhor dos Exércitos, Princípio e o Fim. Vale ressaltar que, embora de origem abraâmica, quatrocentos anos foram suficientes para aprenderem as leis e costumes egípcios.

“Quando eles foram feitos um povo livre, pela primeira vez, foi para que pudessem oferecer sacrifícios ao Senhor, seu Deus, como sacerdotes. Eles estavam sob o governo imediato de Deus, e a intenção das leis que lhes foram dadas era distingui-los dos outros e empregá-los para Deus, como uma nação santa.” (...) Eles prontamente concordaram com o concerto proposto. Eles se alegrariam em obedecer à voz de Deus, e encarariam como um grande favor receberem a bênção de serem um reino de sacerdotes para Ele. Eles responderam juntos, “a uma voz”, como um único homem, nemme contraducente - sem nenhum a voz dissidente (v. 8): “Tudo o que o Senhor tem falado faremos”. Desta maneira, eles concordam com a aliança, aceitando que o Senhor fosse, para eles, o seu Deus, e entregando-se para ser, para Ele, o seu povo. Oh, se tivesse havido tal sinceridade entre eles!” (Comentário Bíblico Matthew Henry, volume 1, p. 289)

II.2- Dos livros da Lei (Pentateuco)

Os cinco primeiros livros da Bíblia são conhecidos como livros da lei. Chamados de Torah ou Pentateuco, contém a base da religião judaica e da cristã, protestante ou católica.

Na Bíblia, temos várias características de Deus. Na formação do Estado Israelita Ele é considerado chefe do Estado:

“A ideia, predominante no Antigo Testamento, de que o Direito positivo do povo judeu é idêntico à justiça divina, é a consequência do caráter teocrático de sua ideologia política. Javé é considerado o chefe do Estado. Depois que Moisés tira Israel da terra dos egípcios, ele declara na sua ação de graças: “Javé reinará para sempre e sempre” (Êxodo 15, 18). Deus é chamado “Deus de Israel” (Números 23:21; Deuteronômio 33:5; Isaías 44:6).” (Kelsen, o que é justiça?, p. 33)

É considerado, também, legislador, juiz e comandante supremo:

“Como rei de Israel, Javé é o legislador, juiz e comandante supremo. “Javé é nosso juiz, Javé é nosso comandante, Javé é nosso rei; Ele nos salvará” (Isaías 33:22). “Javé é rei. (...) Ó rei, que amas a justiça, Tu estabeleceste a equidade” (Salmos 99:1.4). A ideia de que a lei teve sua origem em um ser divino prevalece em várias nações. Mas o povo judeu, como nenhuma outra nação, realmente considerava sua lei como uma emanação direta da vontade de Deus. Foi o próprio Javé quem, segundo o Êxodo (24:12; 31:18) escreveu suas “instruções e mandamentos nas placas de pedra”, que foram “inscritas pelo próprio dedo de Deus”. (...) Mais característico ainda que a função legislativa de Javé é seu poder judiciário. (...) É Deus quem emite o julgamento por meio de instrumentos humanos. (...) Javé é um juiz ideal porque é onisciente e conhece os pensamentos e sentimentos mais secretos dos homens.” (Kelsen, o que é justiça?, p. 33, 34 e 35)

Como legislador estabeleceu normas para a nação de Israel. Assim que firmou contrato com seu povo, pronunciou os dez mandamentos e depois os entregou escritos por Ele mesmo a Moisés. Como Juiz sonda “profundamente o coração e examina a mente dos homens, a fim de entender cada pessoa de acordo com a sua atitude, conforme as suas obras!” (Jeremias 17:10, Bíblia King James)

O pentateuco revela a eleição de Israel como povo de Deus, cuja responsabilidade era a de representar o Seu reino, seguindo todas as Suas ordens. A Bíblia de Estudo NVI diz o seguinte na parte de explicação para o livro de Levítico:

“A partir da aliança do Sinai, Israel passou a ser a representação terrena do reino de Deus (a teocracia), e, como Rei, o Senhor estabeleceu a sua administração sobre toda a vida de Israel. Sua vida espiritual, comunitária e individual era regulada de tal maneira que a nação foi estabelecida como povo santo de Deus, instruída em santidade. (...) Alguns supõem que os sacrifícios do AT eram vestígios de ofertas agrícolas da remota antiguidade – o desejo humano de oferecer parte das posses à deidade como presente de amor. Os sacrifícios do AT, no entanto, foram especificamente determinados por Deus, e o seu significado decorria do relacionamento pactual entre o Senhor e Israel – fossem quais fossem suas semelhanças superficiais com os sacrifícios pagãos. Sem dúvida, incluem o conceito de dádiva, mas esse conceito também é acompanhado por outros valores, como a dedicação, a comunhão, a propiciação (aplacar a ira judicial de Deus contra o pecado) e a restituição.” (p. 158 e 159)

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O livro de Êxodo apresenta algumas das leis prescritas aos israelitas, o código da aliança, conforme esboço presente na Bíblia de Estudo NVI: (o código da aliança, segundo comentário da Bíblia de Estudo Andrews, p. 74)

“II.d- O livro da aliança (20:22 – 23:33). 1- prólogo (20:22 a 26); 2- Leis sobre escravos (21: 1 - 11); 3- Leis sobre o homicídio (21: 12-17); 4- Leis sobre lesões corporais (21:18-32); 5- leis sobre danos a propriedades (21:33 – 22:15); 6- Leis sobre a sociedade (22:16-31); 7- Leis sobre a justiça e a boa vizinhança (23: 10-19); 8- Leis sobre as estações sagradas (23:10-19); 9- Epílogo (23:20-33).” (p. 93)

O livro de Levíticos apresenta algumas das leis de Israel, sendo destacadas as “leis morais que abrangem o incesto, a honestidade, o furto, a idolatria etc (caps. 18-20) (...) e a reforma da escravidão (cap. 25)”. (Bíblia de Estudo NVI, p. 159)

O livro de Números apresenta a organização de Israel, a forma de deslocamento, a composição das tribos e suas chefias. Imperava a ordem, já que o Deus de Israel é organizado. Dessa forma, a introdução presente na Bíblia de Estudo NVI diz o seguinte:

“Partindo do Sinai, Israel sai marchando como o exército vitorioso de Deus, comandado por Ele mesmo, para estabelecer Seu reino na terra prometida, em meio às nações. O livro retrata de modo vívido identidade de Israel como povo da aliança, redimido pelo Senhor, e sua vocação como nação que serve a Deus, encarregada de estabelecer Seu reino na terra. O propósito de Deus na história é revelado de modo implícito: invadir a arena da humanidade caída e levar a efeito a redenção da sua criação – missão que também deve ocupar totalmente o Seu povo. Números também apresenta a ira de Deus que castiga e disciplina Seu povo desobediente. Israel, por causa da rebeldia (e sobretudo pela recusa de empreender a conquista de Canaã), tinha violado a aliança. O quarto livro do Pentateuco apresenta uma realidade muito séria: o Deus que fizera a aliança com Abraão (Gn 15, 17), no êxodo livrara o seu povo da escravidão (Êx 14 e 15), introduzira Israel numa aliança consigo como seu “tesouro pessoal” (Êx 19, v. esp. Êx 19:5) e revelara Sua santidade e os meios da graça para se aproximar dEle (Lv 1-7) era também um Deus de ira. Essa Sua ira estendia-se contra Seus filhos desviados, assim como contra as nações inimigas, o Egito e Canaã.” (p. 202 e 203)

Sobre o livro de Deuteronômio o comentário da Bíblia de Estudo NVI diz o seguinte:

“O relacionamento de amor entre Deus e Seu povo e entre o povo e o Senhor, como Deus soberano, permeia todo o livro. A tônica espiritual de Deuteronômio e a exortação à dedicação total ao Senhor na adoração e na obediência inspirou referências à sua mensagem em todo o restante das Escrituras”. (p. 266)

Vale ressaltar em Deuteronômio os capítulos 16 a 21, que tratam dos líderes governamentais e nação justa, e o capítulo 34 que trata da sucessão de Josué. (Bíblia de Estudo NVI, p. 267)

  • A PROTEÇÃO DE BENS JURÍDICOS COMO FINALIDADE DO DIREITO PENAL E SUA APLICAÇÃO DA NORMATIVA HEBRAICA

Conforme Rogério Greco “a finalidade do Direito Penal é proteger os bens mais importantes e necessários para a própria sobrevivência da sociedade.” (p.2) Continua dizendo:

“Com o Direito Penal objetiva-se tutelar os bens que, por serem extremamente valiosos, não do ponto de vista econômico, mas sim político, não podem ser suficientemente protegidos pelos demais ramos do Direito.” (Rogério Greco, p.2)

Outros doutrinadores entendem diferente, a exemplo de Gunther Jakobs:

“A exemplo do Prof. Gunther Jakobs, que afirma que o Direito Penal não atende a essa finalidade de proteção de bens jurídicos, pois, quando é aplicado, o bem jurídico que teria de ser por ele protegido já foi efetivamente atacado. Para Jakobs, o que está em jogo não é a proteção de bens jurídicos, mas, sim, a garantia de vigência da norma, ou seja, o agente que praticou uma infração penal deverá ser punido para que se afirme que a norma penal por ele infringida está em vigor.” (Rogério Greco, p.3)

Embora Jakobs entenda que o que prevalece é a vigência da norma, a maioria da doutrina brasileira aceita como finalidade do Direito Penal a proteção de bens jurídicos. (Greco, R., p.3)

Segundo esse raciocínio, na intenção de garantir direitos fundamentais aos indivíduos ou de proteger o sistema social são definidos preceitos basilares do ordenamento, que advém da prática social, como bens caros àquela sociedade, ou de um legislador-detentor de poder-, que estabelece novas referências.

No caso em análise, o do Estado Hebraico, temos um povo recém liberto, cuja geração nasceu escrava e convive com os costumes e leis dos egípcios, embora tenham conservado os princípios adotados por seus ascendentes, os patriarcas. São libertos por um Soberano, o Deus de Abraão, Isaque e Jacó, que os adota como povo e propõe nova forma de viver, ou seja, novos valores, novas referências, novos bens jurídicos.

“Do Egito não levou Moisés nem a ideia politeísta, nem a ideia política, porquanto, ao organizar o seu estado, não quis ser rei, nem admitir na chefia qualquer de seus filhos. A soberania do seu estado não residia na sua pessoa, nem na de seu sucessor. Residia em Jeová, que lhe dissera: - “Eu sou o Senhor Teu Deus, que te livrei da terra do Egito, da casa de servidão.” (Deut. 5:6). E, na hora em que o legislador ia fazer a transmissão do poder, essa prerrogativa divina ficou esclarecida: “E disse Deus a Moisés: - Eis que os teus dias são chegados, para que morras; chama a Josué e ponde-vos na tenda da congregação, para que eu lhe dê ordem.” (Deut. 31:14). (A origem dos povos, p. 18)

É proposto a eles o monoteísmo, ao contrário do politeísmo vivido no Egito; a não utilização de imagens de escultura para a adoração a Deus, em contraposição às pirâmides que eles construíam destinadas a preservação dos mortos, e a todo o sistema religioso adotado no Egito; a ordem de não falar o nome de Deus em vão; um dia de descanso na semana para louvar ao único Deus; a obrigação de não matar; não roubar; não adulterar; entre outras normas que voltam a ser referência para os filhos da promessa.

Ao fazerem aliança com Deus, no Sinai, concordaram em tê-lo como Soberano e em seguir as normas que Ele estabeleceu. Trata-se de um contrato social de formação do Estado Hebraico, com suas leis, valores e estruturas bem definidas. É possível afirmar, então, que os dez mandamentos constituem normas que espelham os bens jurídicos tutelados pelo Estado Hebraico, cujo legislador é o Senhor.

A Teoria Constitucional do Direito Penal entende que o direito penal só é legítimo quanto tutela valores consagrados na Constituição, ou seja, só será bem jurídico penal o valor ou a norma que a Carta Magna do Estado disser que é. Para exemplificar, o homicídio é crime no ordenamento jurídico brasileiro porque a Constituição da República de 1988 assegura o direito à vida.

No capítulo 20 de Êxodo (início do código de leis) tem-se a instituição do decálogo como decorrência de um valor supremo, o que pode ser entendido como bem jurídico do Estado Hebraico: “Deus pronunciou todas estas palavras, dizendo: “Eu sou Iaweh teu Deus que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão.” Ou seja, define-se como bem jurídico, como premissa primordial do ordenamento hebraico, a definição de quem é o Deus e Soberano deles. A partir de quem Deus é, todas as normas são estabelecidas e devem ser cumpridas.

Exemplo, porque Iaweh é o Deus dos israelitas, não se deve matar, porque Ele é o Criador, é Deus da vida; não se deve roubar, porque é Ele quem tirou o povo do Egito e é Ele quem confere bens; não se adorar outros deuses, porque Ele é o único digno de adoração; não se deve fazer imagem esculpida para si, porque Ele não se traduz em imagem; não se deve cobiçar os bens do teu próximo etc.

Da tutela desses bens jurídicos surgem várias normas, no caso do Direito Brasileiro não é diferente. A vida, o patrimônio, a honra, a integridade física, e outros, são tutelados pelo direito hebraico e pelo direito moderno. Pode-se dizer, portanto, que os bens jurídicos são bem semelhantes, até mesmo comuns.

No direito moderno, há alguns bens jurídicos que requerem tutela penal, enquanto outros são resolvidos por esferas diferentes do direito, que não atingem de forma direta o autor do delito. O direito penal é o último a atuar, é subsidiário, vige o princípio da intervenção mínima.

Pode-se falar que os Dez Mandamentos traduzem as normas mais importantes, mais relevantes e caros para o Estado Hebraico, justificando tutela penal. Como referência da semelhança entre os direitos, vide algumas das particularidades do crime de homicídio.             

  • ALGUMAS SEMELHANÇAS ENTRE O CRIME DE HOMICÍDIO NO DIREITO BRASILEIRO E NO PENTATEUCO

A Bíblia, assim como o Código Penal, faz diferença entre homicídio doloso e culposo. Para o direito penal, crime doloso é aquele em que o agente quis o resultado praticado ou assumiu o risco de produzi-lo. Enquanto que o crime culposo é aquele ao qual o agente deu causa por imprudência, negligência ou imperícia. (Art. 18 do CP).

“Se alguém ferir a outrem com instrumento de ferro, e este morrer, é homicida; o homicida será morto. Ou se alguém ferir a outrem, com pedra na mão, que possa causar a morte, e este morrer, é homicida; o homicida será morto. Ou se alguém ferir a outrem com instrumento de pau que tiver na mão, que possa causar a morte, e este morrer, é homicida; o homicida será morto. Se alguém empurrar a outrem com ódio ou com mau intento lançar contra ele alguma coisa e ele morrer, ou, por inimizade, o ferir com a mão, e este morrer, será morto aquele que o feriu, é homicida.” (Números 35:16-21)

“Porém, se o empurrar subitamente, sem inimizade, ou contra ele lançar algum instrumento, sem mau intento, ou, não o vendo, deixar cair sobre ele alguma pedra que possa causar-lhe a morte, e ele morrer, não sendo ele seu inimigo, nem o tendo procurado para o mal, então, a congregação julgará entre o matador e o vingador do sangue, segundo estas leis, e livrará o homicida da mão do vingador do sangue, e o fará voltar à sua cidade de refúgio, onde se tinha acolhido; ali, ficará até a morte do sumo sacerdote, que foi ungido com o santo óleo.” (Números 35:22-28)

“Aquele que, sem o querer, ferir o seu próximo, a quem não aborrecia dantes. Assim, aquele que, sem o querer, ferir o seu próximo no bosque, para cortar lenha, e, manejando com impulso o machado para cortar a árvore, o ferro saltar do cabe e atingir o seu próximo, e este morrer, o tal se acolherá em uma destas cidades e viverá; para que o vingador do sangue não persiga o homicida, quando se lhe enfurecer o coração, e o alcance, por ser comprido o caminho, e lhe tire a vida, porque não é culpado de morte, pois não o aborrecia dantes.” (Deuteronômio 19:4-6)

            Nas passagens acima arroladas a Bíblia introduz a figura do homicídio culposo, do vingador de sangue e da cidade refúgio. A pena para matar alguém por culpa, no Estado Hebreu, era a de morar em uma cidade refúgio até que fosse trocado o “sumo-sacerdote”, impedindo que o vingador de sangue executasse a pena pela morte.  

“Quando passardes o Jordão para a terra de Canaã, escolhei para vós outros cidades que vos sirvam de refúgio, para que, nelas, se acolha o homicida que matar alguém involuntariamente. Estas cidades vos serão para refúgio do vingador do sangue, para que o homicida não morra antes de ser apresentado perante a congregação para julgamento. (...) Serão de refúgio estas seis cidades para os filhos de Israel, e para o estrangeiro, e para o que se hospedar no meio deles, para que, nelas, se acolha aquele que matar alguém involuntariamente.” (Números 35:10-15)

            Para o homicídio culposo, o Código Penal prevê a pena de detenção de um a três anos. Se as consequências da infração atingirem o agente de tal forma que torne a sanção desnecessária, o juiz pode conceder perdão judicial, conforme o artigo 121, parágrafo 5º, do CP. Há previsão de aumento de pena se o crime resultar de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as consequências de seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante, parágrafo 4º, do art. 121, do CP.

            Ao se referir ao modo de execução do delito, quando diz que “se alguém matar outro por astúcia, tu o arrancarás até mesmo do meu altar, para que morra”, apresenta uma espécie de homicídio qualificado previsto no artigo 121 do CP, é o se segue:

            Parágrafo 2º. Se o homicídio é cometido:

  • Mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;
  • Por motivo fútil;
  • Com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;
  • À traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido;
  • Para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime;
  • Contra a mulher por razões da condição de sexo feminino;
  • Contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição.”

As formas qualificadas do homicídio são crimes hediondos, sendo insuscetíveis de anistia, graça, indulto e fiança (art. 5º da Constituição Federal e art. 323, inciso II, do Código de Processo Penal). Tem progressão de regime mais rigorosa. A prisão temporária é permitida por 30 dias, prorrogável por igual período, sendo que nos crimes não hediondos a prisão temporária é permitida por apenas 5 dias, prorrogáveis por igual período. (Lei de Crimes Hediondos – 8072; Lei de Prisão Temporária – 7960)

“Quem derrama o sangue do homem, pelo homem terá seu sangue derramado. Pois à imagem de Deus o homem foi feito.” Ao se referir a esses versículos, o Comentário Bíblico Adventista referente a Gênesis, na pág. 254, diz que:

“Deus vingaria ou puniria todo assassinato; colocando na mão do ser humano o poder judicial. (...) A injunção divina confere poder judicial ao governo temporal e coloca a espada em sua mão.” (pág. 254)

“Os que foram designados e autorizados deviam agir nessa importante questão. Anciãos dentre o povo foram indicados (Deuteronômio 21: 2, 4 6 19)”. (pág. 1123)

Da mesma forma, a Constituição Federal de 1988 atribuiu aos jurados do Tribunal do Júri o dever de julgar os crimes dolosos contra a vida. Vinte e cinco jurados, um Juiz presidente, a acusação e a defesa integram o procedimento designado para apurar a responsabilidade pela morte de alguém.

O Júri é uma garantia individual do acusado, que será julgado por seus pares. Mas esse tribunal não deixa de compor o Poder Judiciário. Ocorre no âmbito da Justiça Comum Estadual ou Federal, a depender das regras de competência estabelecidas na Constituição e no Código de Processo Penal.

Na previsão hebraica, eram indicados anciãos dentre o povo para compor o que hoje chamados de conselho de jurados.

  • CONCLUSÃO

Enfim, muitas são as semelhanças entre o direito hebraico e o direito brasileiro, principalmente quanto a seus bens jurídicos mais importantes. Não elencamos muitas delas, mas a proximidade entre as duas legislações permitem a indagação do quanto o direito hebraico é notório, importante e atual, embora traga grandes diferenças em direitos humanos.

Cabe ainda a reflexão do quanto se perde quando excluímos essa história normativa da análise do ordenamento jurídico moderno, sendo ainda mais óbvia a perda, mesmo em termos de sabedoria, na hipótese da exclusão do estudo da Bíblia em nossa sociedade.

O direito moderno deve muito ao período hebraico e às suas leis. Embora antigas, são atuais. Embora semelhantes, apresentam diferenças que levam ao questionamento e aguçam senso crítico. Ainda há muito o que estudar!

  • REFERÊNCIAS: 
  1. ALAS, Leopoldo. Prólogo - A luta pelo Direito, de Jhering. Rio de Janeiro: Editora Vecchi, 1950.
  2. BUBER, Martin. Moisés. Buenos Aires, Imán, 1949.
  3. GALANTI, P. Rafael Galanti. Compêndio de Historia Universal. Ed. Duprat. S. Paulo – 1907. 
  4. THOMAS, Henry. História da Raça Humana. Ed. Globo. P. Alegre 1941.
  5. CORTÉS, Donoso. Discurso académico sobre la Biblia.
  6. REINACH, Salomón. Orfeo, Historia General de las Religiones.
  7. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado, Martins Editora Livraria Ltda, SP, 5ª edição, tradução Luís Carlos Borgens.
  8. KELSEN, Hans [1941]. What is Justice? Trad.: E. Brandão/M.Stahel, O direito como técnica social específica. In: O que é a justiça? São Paulo, Martins Fontes: 1998. 
  9. HENRY, Matthew. Comentário Matthew Henry, volume 1, ed. CPAD, Rio de Janeiro, 2010. Tradução Degmar Ribas Júnior.
  10. BÍLIAS: tradução NVI e ANDREWS. 
  11. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. - 20º edição. Niterói, RJ: Impetus, 2016.
  12. ALTAVILA, Jayme de. Origem dos direitos dos povos. Ed. Melhoramentos. São Paulo, 1963.
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