A judicialização do medo: a função atípica e o covid-19

05/05/2020 às 15:26
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O surgimento da pandemia do novo coronavírus (Covid-19) nasce no direito brasileiro uma nova figura jurídica: A Judicialização do Medo, que amplia o conceito do ativismo judicial, onde o Poder Judiciário passa a invadir a competência de outros Poderes.

A JUDICIALIZAÇÃO DO MEDO: A FUNÇÃO ATÍPICA E O COVID-19

por Cesar Augustus Mazzoni[1]

INTRODUÇÃO

O surgimento da pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV2 ou Covid-19) trouxe ao mundo uma nova situação de ordem, onde os Poderes constitucionalmente instituídos, pós Constitucional Federal de 1988, não viveram o estado de calamidade pública ou emergência (Decreto n.º 7257/2010) ou estado de defesa (CF, art. 136) na proporção do tamanho da pandemia do Covid-19, tomando medidas com características de estado de sítio (CF, art. 137), e provocando a ação do Poder Judiciário, o qual, fugindo as regras tradicionais da hermenêutica jurídica, está agindo por receio da possibilidade de uma imputação de responsabilidade, desrespeitando a ordem constitucional.

Assim, nasce no direito brasileiro uma nova figura jurídica: A Judicialização do Medo, que amplia o conceito do ativismo judicial, uma vez que o Poder Judiciário passa a invadir a competência constitucional de todos os Entes Federativos.

A LEI GERAL DO CORONAVÍRUS: LEI 13.979/2020

Em 6 de fevereiro de 2020, o Governo Federal, diante de disseminação da pandemia do Covid-19, promulgou a Lei 13.979/2020, traçando as normas gerais de combate a emergência sanitária que poderia vir a ocorrer, caso o Covid-19 chegasse ao Brasil.

Em 26 de fevereiro de 2020 foi confirmado o primeiro caso positivo do Covid-19, no início de maio de 2020, os números de pessoas contaminadas chegam a mais de cem mil pessoas no Brasil.

Em seu artigo 1.º, a Lei 13.979/2020 define os objetivos da lei. Já no artigo 2.º traz a definição legal de isolamento e quarentena.

Por seu turno, o artigo 3.º da Lei 13.979/2020 traz as competências dos atos que deverão ser praticados nas esferas de cada competência dos Entre Federativos, sendo esse dispositivo que estou analisando, principalmente no tocante a competência municipal, in verbis:

Art. 3º  Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: 

I - isolamento;

II - quarentena;

V - exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver;

VI - restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de:

a) entrada e saída do País; e

b) locomoção interestadual e intermunicipal; 

§ 1º As medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública.

§ 7º As medidas previstas neste artigo poderão ser adotadas:

II - pelos gestores locais de saúde, desde que autorizados pelo Ministério da Saúde, nas hipóteses dos incisos I, II, V, VI e VIII do caput deste artigo;

Diante do texto objetivo, fica claro que o gestor local, quer seja Estadual, quer seja Municipal, possui a competência legal para definir e executar os atos necessários para combater a disseminação do Covid-19, dentro daquilo que a Constituição Federal já fixou.

Ocorre que, mesmo com a Lei Geral e a Constituição Federal atribuindo essa competência aos gestores locais, o Poder Judiciário vem tolhendo dos Municípios o exercício da competência legal, na defesa dos interesses locais, sob o argumento de que eles, os Municípios, são hierarquicamente inferiores às normas Estaduais, hierarquia essa que não existe, conforme vamos analisar.

Por conseguinte, promulgada a regra geral e fixada a competência legal dos gestores locais de saúde, necessário se faz dar a correta interpretação das normas, visando evitar decisões divergentes entre os Órgãos do Poder Judiciário, bem como limitar a atuação deste ao âmbito de sua competência, sem invadir a competência legal dos outros Poderes Constitucionalmente reconhecidos.

AS REGRAS DE HERMENÊUTICA DA INTERPRETAÇÃO DO TEXTO CONSTITUCIONAL.

Diante da competência fixada pelo artigo 3.º da Lei 13.979/2020, surge no campo da aplicação da lei as regras definidas pela hermenêutica jurídica, para entrelaçar as competências definidas na Constituição Federal (artigos 22, 23, 24 e 30) e a lei infraconstitucional.

E, é neste exato momento que, diante da possibilidade de uma imputação de responsabilidade por parte do Poder Judiciário, este passa a interpretar as normas sem critérios técnicos, criando assim a tese aqui proposta, da Judicialização do Medo.

Pedro Lenza (2019, p. 243), sobre as regras de hermenêutica, leciona que:

As Constituições devem ser interpretadas, função essa atribuída ao exegeta, que buscará o real significado dos termos constitucionais. Tal função é extremamente importante, na medida em que a Constituição dará validade para as demais normas do ordenamento jurídico (Kelsen). Assim, devemos decifrar o seu verdadeiro alcance, a fim de sabermos, por consequência, a abrangência de uma norma infraconstitucional. A interpretação deverá levar em consideração todo o sistema. Em caso de antinomia de normas, buscar-se-á a solução do aparente conflito através de uma interpretação sistemática, orientada pelos princípios constitucionais.

Já Gilmar Mendes (2018, p. 135), expõe o seguinte:

O método clássico preconiza que a Constituição seja interpretada com os mesmos recursos interpretativos das demais leis, segundo as fórmulas desenvolvidas por Savigny: a interpretação sistemática, histórica, lógica e gramatical. A interpretação constitucional não fugiria a esses padrões hermenêuticos, não obstante a importância singular que lhe é reconhecida para a ordem jurídica.

Dessa forma, havendo, como está, o conflito aparente das normas, o Poder Judiciário, se provocado e não por mera liberalidade, deveria estar utilizando dos critérios técnicos de interpretação da norma jurídica, levando em consideração todo o sistema e não apenas o clamor social.

O Desembargador Soares Levada[2], do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, de forma centrada, disse que as normas jurídicas devem ter interpretações teleológicas, finalísticas, e não literais, rígidas e inflexíveis. Para uma mera aplicação literal da lei nem é preciso formação em Direito, sendo bastante saber ler e escrever.”

Por conseguinte, temos que as normas jurídicas devem buscar a sua interpretação e aplicação ao caso prático, através do seu fim, com a devida razoabilidade e proporcionalidade, principalmente quando temos a colisão entre dois ou mais princípios e normas constitucionais.

COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL DOS ENTES FEDERADOS.

Com a edição de decretos regrando as atividades privadas e comerciais, trouxe a tona a questão da definição da competência constitucional comum e concorrente da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, bem como a questão da subordinação ou não entre aqueles Entes Federativos.

O Poder Judiciário, diante desse conflito constitucional, vem decidindo com o entendimento ao caso concreto, mas fugindo ao texto legal da Constituição Federal e da doutrina clássica, fixando que há subordinação dos Municípios as normas Estaduais, quando não há essa subordinação.

Jose Affonso da Silva (1998, p.481), sobre a competência comum e concorrente, leciona de forma majestosa:

Comum, cumulativa ou paralela, reputadas expressão sinônimas, que significa a faculdade de legislar ou praticar certos atos, em determinada esfera, juntamente e em pé de igualdade, consistindo, pois num campo de atuação comum às várias entidades, sem que o exercício de uma venha excluir a competência de outra, que pode assim ser exercida cumulativamente (art. 23); concorrente, cujo conceito compreende dois elementos: possiblidade de disposição sobre o mesmo assunto ou matéria por mais de uma entidade federativa; primazia da União no que tange à fixação de normais gerais (art. 24 e seus parágrafos); suplementar, que é correlativa da competência concorrente, e significa o poder de formular norma que desdobrem o conteúdo de princípios ou normais gerais ou que supram a ausência ou omissão destas (art. 24, §§ 1º a 4º).

Gilmar Mendes (2018, p. 1354), sobre a competência comum, ensina que:

Para a defesa e o fomento de certos interesses, o constituinte desejou que se combinassem os esforços de todos os entes federais; daí ter enumerado no art. 23 competências, que também figuram deveres, tal a de “zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público”, a de proteger o meio ambiente e combater a poluição, melhorar as condições habitacionais e de saneamento básico, a de proteger obras de arte, sítios arqueológicos, paisagens naturais notáveis e monumentos, apenas para citar algumas competências/incumbências listadas nos incisos do art. 23. Essas competências são chamadas de concorrentes, porque os vários entes da Federação são tidos como aptos para desenvolvê-las. A Carta da República prevê, no parágrafo único do art. 23, a edição de leis complementares federais, para disciplinar a cooperação entre os entes tendo em vista a realização desses objetivos comuns. A óbvia finalidade é evitar choques e dispersão de recursos e esforços, coordenando-se as ações das pessoas políticas, com vistas à obtenção de resultados mais satisfatórios Se a regra é a cooperação entre União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, pode também ocorrer conflito entre esses entes, no instante de desempenharem as atribuições comuns. Se o critério da colaboração não vingar, há de se cogitar do critério da preponderância de interesses. Mesmo não havendo hierarquia entre os entes que compõem a Federação, pode-se falar em hierarquia de interesses, em que os mais amplos (da União) devem preferir aos mais restritos (dos Estados).

Já sobre a competência concorrente, Gilmar Mendes (2018, p. 1355), explana que:

A Constituição Federal prevê, além de competências privativas, um condomínio legislativo, de que resultarão normas gerais a serem editadas pela União e normas específicas, a serem editadas pelos Estados-membros. O art. 24 da Lei Maior enumera as matérias submetidas a essa competência concorrente. A divisão de tarefas está contemplada nos parágrafos do art. 24, de onde se extrai que cabe à União editar normas gerais – i. é, normas não exaustivas, leis-quadro, princípios amplos, que traçam um plano, sem descer a pormenores. Na falta completa da lei com normas gerais, o Estado pode legislar amplamente, suprindo a inexistência do diploma federal. Se a União vier a editar a norma geral faltante, fica suspensa a eficácia da lei estadual, no que contrariar o alvitre federal.

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Por fim, sobre a competência dos Municípios, Gilmar Mendes (2018, p. 1357) diz que:

Aos Municípios reconhece-se o poder de auto-organização, o que significa reconhecer-lhes poder constituinte, expresso nas suas leis orgânicas, limitadas tanto por princípios da Constituição Federal como da Constituição estadual, nos termos do art. 29 da CF. As competências implícitas decorrem da cláusula do art. 30, I, da CF, que atribui aos Municípios “legislar sobre assuntos de interesse local”, significando interesse predominantemente municipal, já que não há fato local que não repercuta, de alguma forma, igualmente, sobre as demais esferas da Federação. Consideram-se de interesse local as atividades, e a respectiva regulação legislativa, pertinentes a transportes coletivos municipais, coleta de lixo, ordenação do solo urbano, fiscalização das condições de higiene de bares e restaurantes, entre outras. Aos Municípios é dado legislar para suplementar a legislação estadual e federal, desde que isso seja necessário ao interesse local, no desempenho da competência disposta no art. 30, II, da Constituição.

Alexandre de Moraes (2018, p. 447), sobre a competência concorrente, explana que:

No âmbito da legislação concorrente, a doutrina tradicionalmente classifica-a em cumulativa sempre que inexistirem limites prévios para o exercício da competência, por parte de um ente, seja a União, seja o Estado-membro, e em não cumulativa, que propriamente estabelece a chamada repartição vertical, pois, dentro de um mesmo campo material (concorrência material de competência), reserva-se um nível superior ao ente federativo União, que fixa os princípios e normas gerais, deixando-se ao Estado membro a complementação. A Constituição brasileira adotou a competência concorrente não cumulativa ou vertical, de forma que a competência da União está adstrita ao estabelecimento de normas gerais, devendo os Estados e o Distrito Federal especificá-las, através de suas respectivas leis. É a chamada competência suplementar dos Estados-membros e Distrito

Federal (CF, art. 24, § 2º).

Sobre a competência Municipal, Alexandre de Moraes (2018, p. 451) leciona que:

A função legislativa é exercida pela Câmara dos Vereadores, que é o órgão legislativo do município, em colaboração com o prefeito, a quem cabe também o poder de iniciativa das leis, assim como o poder de sancioná-las e promulgá-las, nos termos propostos como modelo, pelo processo legislativo federal. Dessa forma, a atividade legislativa municipal submete-se aos princípios da Constituição Federal com estrita obediência à Lei Orgânica dos municípios, à qual cabe o importante papel de definir as matérias de competência legislativa da Câmara, uma vez que a Constituição Federal não a exaure, pois usa a expressão interesse local como catalisador dos assuntos de competência municipal. As competências legislativas do município caracterizam-se pelo princípio da predominância do interesse local, consubstanciando-se em: competência genérica em virtude da predominância do interesse local (CF, art. 30, I); competência suplementar (CF, art. 30, II). Apesar de difícil conceituação, interesse local refere-se àqueles interesses que disserem respeito mais diretamente às necessidades imediatas do município, mesmo que acabem gerando reflexos no interesse regional (Estados) ou geral (União). Dessa forma, salvo as tradicionais e conhecidas hipóteses de interesse local, as demais deverão ser analisadas caso a caso, vislumbrando-se qual o interesse predominante (princípio da predominância do interesse). O art. 30, II, da Constituição Federal preceitua caber ao município suplementar a legislação federal e estadual, no que couber, o que não ocorria na Constituição anterior, podendo o município suprir as omissões e lacunas da legislação federal e estadual embora não podendo contraditá-las, inclusive nas matérias previstas do art. 24 da

Constituição de 1988. Assim, a Constituição Federal prevê a chamada competência suplementar dos municípios, consistente na autorização de regulamentar as normas legislativas federais ou estaduais, para ajustar sua execução a peculiaridades locais, sempre em concordância com aquelas e desde que presente o requisito primordial de fixação de competência desse ente federativo: interesse local.

Já Pedro Lenza (2019, p. 775), com o seu notório conhecimento, sobre a competência concorrente, nos ensina que:

A competência não legislativa, como o próprio nome ajuda a compreender, determina um campo de atuação político-administrativa, tanto é que são também denominadas competências administrativas ou materiais, pois não se trata de atividade legiferante. Regulamenta o campo do exercício das funções governamentais, podendo tanto ser exclusiva da União (marcada pela particularidade da indelegabilidade) como comum (também chamada de cumulativa, concorrente, administrativa ou paralela) aos entes federativos. Em relação à competência comum (cumulativa, concorrente administrativa ou paralela), de maneira bastante interessante, o art. 23, parágrafo único, estabelece que leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional. O objetivo é claro: como se trata de competência comum a todos, ou seja, concorrente no sentido de todos os entes federativos poderem atuar, o objetivo de referidas leis complementares é evitar não só conflitos como também a dispersão de recursos, procurando estabelecer mecanismos de otimização dos esforços. Diante dessa constatação, surge a questão: e se ocorrer conflito entre os entes federativos durante o exercício das demais competências previstas no art. 23, qual a solução a adotar? Nesse caso, observam Mendes, Coelho e Branco que, “se o critério da colaboração não vingar, há de se cogitar do critério da preponderância de interesses. Contudo, vale a pena destacar voto do Min. Fachin no julgamento de questão envolvendo a proibição do amianto ao sustentar que o federalismo cooperativo “não se satisfaz apenas com o princípio informador da predominância de interesses”, devendo observar os preceitos de subsidiariedade e proporcionalidade. Conforme expressa, “de acordo com a primeira (subsidiariedade, acrescente-se), o ente político maior deve deixar para o menor tudo aquilo que este puder fazer com maior economia e eficácia. Já de acordo com a segunda (proporcionalidade), é preciso sempre respeitar uma rigorosa adequação entre meios e fins. A proporcionalidade poderia ser utilizada, portanto, como teste de razoabilidade para soluções de problemas envolvendo competência de nítida orientação constitucional. Interpretando, pois, os princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade nesses termos, seria possível, então, superar o conteúdo meramente formal do princípio e reconhecer um aspecto material, consubstanciado numa presunção de autonomia em favor dos entes menores (‘presumption against preemption’), para a edição de leis que resguardem seus interesses”

Assim, com a ocorrência do conflito entre as normas Municipais e as Estaduais sobre a possibilidade ou não sobre os interesses locais, o Poder Judiciário vem dando prevalência sobre a Legislação Estadual, sob a justificativa que os Municípios são hierarquicamente inferiores aquelas normas e devem respeitá-las.

Para fundamentar o seu entendimento, muitos julgadores citam a decisão proferida nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 672 e a Ação Direita de Inconstitucionalidade de nº 6341-DF, ambas em curso no Supremo Tribunal Federal, que entendeu pela hierarquização das normas dos Municípios para as do Estado. Porém, em tais decisões fixaram a competência geral da União para legislar sobre o Covid-19 e fixou a competência comum, concorrente e suplementar dos Estados e Municípios, mas sem promover a hierarquização das normas ou mesmo fixar a subordinação dos Municípios as determinações do Estado.

Entretanto, pela doutrina citada acima, fica clarividente que as decisões do Poder Judiciário estão desrespeitando as normas de hermenêutica da Constituição Federal, dando outro sentido ao regramento das competências, violando os princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, presunção de autonomia em favor dos entes menores e do informador da predominância de interesses, uma vez que os Municípios têm competência e autonomia para regulamentar os interesses locais, ainda que de forma suplementar e, até mesmo, contrária à legislação, conforma a previsão legal dos artigos 23, inciso II, 24, inciso XII, §§ 1º a 4º, 30, incisos I e II, todos da Constituição Federal.

Não se pode aferir um caso concreto de uma região, cujos casos de contágios e disseminação do Covid-19 estão elevados, com outra região, onde os casos de contágio são mínimos ou, até mesmo, inexistentes.

Além disso, outros fatores de risco, segundo a Organização Mundial de Saúde, devem ser levados em consideração, para a defesa dos interesses locais.

Portanto, uma vez que o Poder Judiciário nega a Competência Constitucionalmente Originária ao Município de decidir sobre os interesses locais, determinando o cumprimento de uma norma, sob o argumento do Município ser hierarquicamente inferior ao Estado, surge à teoria da Judicialização do Medo, para evitar a possibilidade de quaisquer tipos de responsabilidade, decorrente do não exercício do controle administrativo externo.

CONCEITO DA JUDICIALIAÇÃO DO MEDO

Para se chegar ao conceito de Judicialização do Medo, necessário se faz analisar as definições clássicas de Ativismo Judicial, Judicialização e Administração Pública do Medo, que tanto se assemelham, mas não se coincidem.

Por Ativismo Judicial, a doutrina entende que é uma escolha de um modo específico e proativo que o Poder Judiciário possui de interpretar a Constituição, expandindo seu sentido e alcance, ou mesmo restringindo estes, no momento em que as demandas sociais não são atendidas pela Poder Legislativo, buscando assim o Poder Judiciário concretizar os fins constitucionais, interferindo no espaço de atuação de outros poderes.

Já o termo Judicialização é a resolução de questões de grande repercussão política ou social pelo Poder Judiciário e não pelos Poderes Legislativo ou Executivo, no exercício regular de suas funções instrumentais típicas, levando o Judiciário a se pronunciar sobre as questões que lhe são apresentadas, as quais não seriam de sua competência originária, mas sim dos demais Poderes, ultrapassando a sua competência.

Por fim, o conceito de Administração Pública do Medo, ou Administração do Medo, nos é apresentado pela Irene Patrícia Nohara (2020, p. 1032):

É a situação em que, diante da proliferação dos controles (social, administrativo, pelo Ministério Público, legislativo, com o auxílio do Tribunal de Contas e judicial), que dão ensejo a diversas oportunidades de responsabilização, por processo disciplinar, por improbidade administrativa, por ação de responsabilização, por ações penais, etc., como regra geral, sem que haja bis in idem, o gestor começa a ficar com receio de manejar com segurança as oportunidades de agir, em virtude da possibilidade de se lhe imputar uma responsabilidade e de ser condenado mesmo quando agiu da melhor forma ante aos obstáculos e ao contexto da realidade enfrentado.

Decorrente disso, temos o artigo 28 da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro, que, desde abril de 2018, passou a imputar ao agente público a responsabilização por suas decisões ou opiniões técnicas em casos de dolo ou erro grosseiros.

Diante de toda essa reflexão, defino o conceito da Judicialização do Medo como: a situação em que, de um modo proativo, o Poder Judiciário passa a interpretar a Constituição Federal, alterando o seu alcance e aplicação, diante de situações sociais atendidas por outros Poderes, em especial o Poder Executivo, para justificar seus fins constitucionais, interferindo assim na competência constitucional e de agir daqueles Poderes, com receio de se lhe imputada uma responsabilidade e, até mesmo, de ser condenado, em razão de sua atuação só o fazer por provocação, ante as ações dos Entre Federativos a quem lhe compete à fiscalização e o controle, ainda que aqueles estejam agindo da melhor forma ante a realidade enfrentada.

CONCLUSÃO

Portanto, é possível constatar que o Poder Judiciário está tomando decisões atípicas, violando de forma expressa a Constituição Federal e as leis infraconstitucionais, por receio de ser responsabilizado ao não exercer o controle externo da administração pública, invadindo a competência exclusiva dos demais Poderes, principalmente do Poder Executivo, ao exigir o cumprimento de uma legislação eivada de vício material de constitucionalidade, quando não pratica, por si próprio, atos de governança, que são privativos dos ocupantes de cargos eletivos.

E, frente a essa superatividade do Poder Judiciário, nas a figura jurídica da Judicialização do Medo, conforma assim definido, tão somente para afastar qualquer possibilidade de ser responsabilidade pelo colapso no sistema de saúde pública.

O conceito aqui proposto da Judicialização do Medo e as regras claras das competências e, principalmente seus conceitos e limites, serão exaustivamente enfrentados pela doutrina e jurisprudência, até que se consolide no sistema jurídico pátrio qual a função instrumental típica e atípica de cada Poder, principalmente diante de uma situação excepcional, por via das chamadas ações constitucionais, como, por exemplo, Mandado de Injunção, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental e Ação Direita de Inconstitucionalidade.

              Diante de todo o exposto, enquanto não há definição e a delimitação das competências constitucional, não pode o Poder Judiciário, sob o fundamento do receio de ser responsabilizado, praticar atos de competência dos outros Poderes Constitucionalmente Instituídos, sob pena de nulidade e sujeito ao controle da legalidade pelo próprio Poder Judiciário junto a instâncias superiores.

REFERÊNCIAS

DANTAS, Paulo Roberto de Figueiredo. Direito Processual Constitucional. – 9. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2019.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanela. Direito Administrativo. - 32.ed. Rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2019.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. – 23. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

MAZZA, Alexandre. Manual de Direito Administrativo – 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2019.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro – 42ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2016.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo – 30ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2013.

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 13. ed. rev. e atual. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. - 34. ed. - São Paulo : Atlas, 2018.

MOTTA, Fabrício. LINDB no Direito Público: Lei 13.655/2018 / Fabrício Motta, Irene Patríca Nohara. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. – (Coleções soluções de direito administrativo: Leis comentadas. Série I: administração pública; volume 10 / Irene Patrícia Nohara, Fabrício Motta, Marcos Praxedes, coordenação)

NOHARA, Irene Patrícia. Manual de Direito Administrativo. – 10. ed. ver., atual. e ampl. – São Paulo: Altas, 2020.

SILVA, José Affonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 15ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 1998.


[1] Cesar Augustus Mazzoni é advogado e parecerista, pós-graduado em Direito Administrativo e Direito Empresarial pela rede de ensino LFG/Anhanguera. Docente em Direito Administrativo, Direito Processual Constitucional e Hermenêutica Jurídica na Faculdade de Ensino Superior Santa Bárbara e na Faculdade de Cerquilho.

[2] Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Órgão Especial. Mandado de Segurança Cível, Processo nº 2077099-17.2020.8.26.0000, proferido em 27 de abril de 2020.

Sobre o autor
Cesar Augustus Mazzoni

Advogado e parecerista (2002), pós graduado em direito empresarial (2013) e direito administrativo (2018). Professor no Curso de Direito da FAESB - Faculdade Santa Barbara de Tatuí. Professor no Curso de Direito da Faculdade de Cerquilho - FAC. Especializado em Direito Aeronáutico, Administrativo, Contratos e Empresarial.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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