O roubo com emprego de arma de fogo na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: Uma visão crítica

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Visão crítica à atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, no tocante ao reconhecimento da majorante do emprego de arma de fogo no roubo

           

            Analisando-se as figuras delitivas previstas no Código Penal Brasileiro, é possível notar uma destacada proteção conferida ao patrimônio[1]. Basta que se verifique, por exemplo, que a pena mínima cominada à receptação qualificada (03 anos – art. 180, §1º) supera a da lesão corporal gravíssima (02 anos – art. 129, §2º), ou que a pena máxima prevista para o furto com emprego de explosivo (10 anos – art. 155, §4º-A) é maior que a do tráfico de pessoas (08 anos – art. 149-A). Não se olvide, ainda, a existência de inúmeros tipos penais destinados à tutela patrimonial (arts. 155 a 183), organizados em um título próprio, com a previsão de diversas condutas que podem ser dispostas em uma escala objetiva de gravidade (como o dano simples, o furto, a extorsão e o latrocínio).

            No que concerne especificamente ao roubo, crime pluriofensivo e complexo, o especial tratamento punitivo se justifica pela presença simultânea da subtração patrimonial e da violação à integridade física ou psíquica da vítima, mediante a violência ou grave ameaça[2]. Quando essa ameaça é perpetrada por meio do uso de arma de fogo, o crime, sob a ótica legislativa, torna-se ainda mais grave, considerando que tal circunstância reduz a capacidade de resistência do ofendido, em face do maior risco a que fica exposto[3]. O aumento previsto para esses casos é de 2/3 (dois terços) na terceira fase da dosimetria penal, o que eleva a pena a um patamar mínimo de 06 anos e 08 meses de reclusão.

            Na visão atual do Superior Tribunal de Justiça, a majoração da pena com fulcro no §2º-A, inciso I, do artigo 157 se justifica apenas nas hipóteses em que o objeto utilizado no roubo for, de fato, uma arma de fogo com potencial lesivo. Isso porque, se consistir em uma arma de brinquedo ou em um instrumento inapto a efetuar disparos, não há efetivo perigo à integridade física da vítima. A lógica, portanto, é a de que o simulacro de arma de fogo, conquanto possa caracterizar a grave ameaça, servindo para configurar o crime de roubo na forma simples, não é suficiente para a incidência da respectiva majorante[4]. A propósito, esse caminho argumentativo levou o STJ a cancelar a Súmula 174, que previa justamente o contrário: “No crime de roubo, a intimidação feita com arma de brinquedo autoriza o aumento da pena”.

            Não basta, contudo, que se trate de uma arma de fogo verdadeira e operante. O STJ ainda exige que o instrumento esteja acompanhado de munições no momento da execução do delito, haja vista que a arma desmuniciada é inapta a produzir disparos e, por conseguinte, desprovida de potencial lesivo, equiparando-se a um simulacro[5].

            Não restam dúvidas, portanto, de que o entendimento que prevalece hoje em dia é o de que a potencialidade lesiva do instrumento constitui requisito essencial à elevação da pena.

            Dessa forma, nos casos em que a arma empregada no delito é apreendida e periciada, e o exame técnico conclui que ela estava municiada e tinha eficácia para produzir disparos, incide a majorante; do contrário, o aumento de pena deve ser afastado pelo juiz, por se tratar de um simulacro de arma ou, simplesmente, de um instrumento inapto e sem potencialidade ofensiva.

            Questão problemática, entretanto, diz respeito àquelas situações em que o objeto usado no crime não é encontrado. Pela lógica imperante no ordenamento jurídico brasileiro, em que a dúvida beneficia o réu[6], o razoável seria afastar o aumento da pena, já que poderia tratar-se apenas de um simulacro. No mais das vezes, as vítimas não têm conhecimento técnico suficiente para atestar a potencialidade ofensiva do instrumento exibido durante o crime. E, ainda que fosse uma arma verdadeira, ela poderia estar desmuniciada e inapta a produzir disparos naquele contexto, o que seria suficiente para a não incidência da majorante do emprego de arma de fogo.

            No entanto, não é esse o entendimento que prevalece. O STJ, em diversas oportunidades, já salientou que as declarações das vítimas ou de testemunhas de roubo são suficientes para a incidência da majorante, sendo dispensáveis a apreensão e a perícia técnica. Logo, se, sob o crivo do contraditório, aquele que presenciou a ação criminosa ou que teve o patrimônio subtraído, mediante grave ameaça, disser que o agente empregou uma arma de fogo na execução do delito, o juiz estaria autorizado a reconhecer a majorante prevista no §2º-A, inciso I, do artigo 157[7].

            Trata-se de linha argumentativa incoerente e destoante da lógica construída pelo próprio STJ. Não há como pressupor, sem a apreensão e o exame pericial, que a suposta arma de fogo usada no delito encontrava-se devidamente municiada e que era, de fato, idônea e apta a produzir disparos. E, sem essa comprovação cabal, a causa de aumento de pena não deveria incidir. Chega-se ao ponto de a Defesa ter que torcer para que a arma seja encontrada e periciada, pois, só então, haveria uma chance de a majorante não ser reconhecida, quando, na realidade, é do Ministério Público o ônus de provar que se trata realmente de uma arma de fogo idônea[8].

            Essa questão tormentosa ainda pode ser agravada com uma mudança promovida pelo recente Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/19). Na atual dicção do artigo 157, §2º-B, do Código Penal: “Se a violência ou grave ameaça é exercida com emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido, aplica-se em dobro a pena prevista no caput deste artigo”.

            A causa de aumento em questão pode elevar a pena do roubo a, no mínimo, 08 anos de reclusão, superior até mesmo ao homicídio simples (06 anos – art. 121, caput, do Código Penal). Deixando de lado a discussão sobre a (in)constitucionalidade dessa previsão normativa, o fato é que, para a sua incidência no caso concreto, deve ficar cabalmente comprovado que a arma de fogo é de uso restrito ou proibido.

            E não há outro meio de ser feita essa prova, senão por meio da apreensão e da perícia do armamento. Não é suficiente que a vítima ou alguma testemunha se diga conhecedora de armas e ateste que o objeto empregado era de uso restrito, ou então que o próprio acusado admita ter empregado uma arma proibida pela legislação. Considerando que existem inúmeros tipos de armamentos, rotulados com base em elementos técnicos – como se depreende do Decreto nº 9.847/19 – e que, em grande parte dos casos, os roubos evolvem poucos segundos ou minutos, as meras declarações orais são insuficientes para o reconhecimento da majorante.

            E não se pode argumentar que o acolhimento dessa tese seria obstado pelo fato de que o ordenamento jurídico brasileiro não adotou, como regra geral, o sistema de prova legal ou tarifada[9]. Ainda que se reconheça a validade e a importância de outras provas no processo-crime, a questão atinente ao tipo específico de arma demanda um conhecimento técnico e especializado, por meio da análise minuciosa do armamento, não sendo aferível sensorialmente[10]. É por isso se exige um exame feito por profissionais habilitados e capacitados, que consigam averiguar os elementos que distinguem uma arma de uso permitido da de uso proibido ou restrito (como, por exemplo, o calibre e a energia cinética projetada na saída do cano, conforme previsão no Decreto nº 9.847/19).

Pelo exposto, embora seja pacífico – e criticável – o posicionamento atual do STJ no tocante a prescindibilidade de apreensão e perícia do instrumento para o reconhecimento da majorante do emprego de arma de fogo, esse mesmo entendimento não pode prevalecer para a incidência do §2º-B do art. 157 do Código Penal. Espera-se que a jurisprudência mantenha o mínimo de coerência e lógica frente a essa inovação legislativa, sob pena de se agravar injustamente a pena do acusado com fundamento em provas inidôneas para tanto.

REFERÊNCIAS:

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo Penal. Rio de Janeiro: Campus: Elsevier, 1ª ed., 2012.

NAHUM, Marco Antonio Rodrigues. A Constituição, o roubo e a arma de fogo ineficaz. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 14, n. 166, p. 18-19, set. 2006.

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NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Forense, 17ª ed., 2017.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 8ª ed., 2010.

SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Direito Penal e propriedade privada: a racionalidade do sistema penal na tutela do patrimônio. São Paulo: Atlas, 1ª ed., 2014.

https://scon.stj.jus.br/SCON/. Acesso em 03/05/2020.


[1] SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Direito Penal e propriedade privada: a racionalidade do sistema penal na tutela do patrimônio. São Paulo: Atlas, 1ª ed., 2014, p. 14. Segundo o autor: “(...) é inegável que o legislador de 1940 outorgou ao patrimônio posição destacada: situa-se na codificação nacional apenas atrás da proteção penal da pessoa. Trata-se de um bem jurídico importante, especialmente ao se considerar o número de tipos penais aptos à sua tutela e as elevadas margens punitivas, as quais, inclusive, superam a de diversos ouros tipos alocados no título precedente”.

[2] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 8ª ed., 2010, p. 319.

[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Forense, 17ª ed., 2017, p. 980-983.

[4] Nesse sentido: HC 270.092/SP, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, j. 20/08/2015; RHC 60.372/SP, Rel. Ministro Ericson Maranho (Desembargador Convocado do TJ/SP), 6ª Turma, j. 23/06/2015; HC 299.520/SP, Rel. Ministro Jorge Mussi, 5ª Turma, j. 28/04/2015; HC 308.708/SP, Rel. Ministro Gurgel de Faria, 5ª Turma, j. 18/12/2014; HC 300.270/SP, Rel. Ministro Newton Trisotto (Desembargador Convocado do TJ/SC), 5ª Turma, j. 18/09/2014; HC 219.524/SP, Rel. Ministra Laurita Vaz, 5ª Turma, j. 15/08/2013; HC 183.166/SP, Rel. Ministra Laurita Vaz, 5ª Turma, j. 19/02/2013, DJe 28/02/2013.

[5] Nesse sentido: HC 445.043/SC, Rel. Ministro Joel Ilan Paciornik, 5ª Turma, j. 21/02/2019; HC 449.697/SP, Rel. Ministro Felix Fischer, 5ª Turma, julgado em 21/06/2018; HC 247.708/SP, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, j. 19/04/2018; AgRg no REsp 1721936/SP, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, 6ª Turma, j. 05/04/2018; AgRg no AREsp 722.298/ES, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. 13/03/2018.

[6] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo Penal. Rio de Janeiro: Campus: Elsevier, 1ª ed., 2012, 24.

[7] Confira-se: AgRg no AREsp 1617926/SP, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. 05/03/2020; AgRg no AREsp 1577607/DF, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. 05/03/2020; AgRg no AREsp 1557476/SP, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. 18/02/2020, DJe 21/02/2020; HC 534.076/SP, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, j. 18/02/2020; HC 549.595/SP, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, j. 11/02/2020.

[8] NAHUM, Marco Antonio Rodrigues. A Constituição, o roubo e a arma de fogo ineficaz. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 14, n. 166, p. 18-19, set. 2006. O autor pondera que: “Se na descrição contida na denúncia o Ministério Público afirma que o acusado usou arma de fogo para praticar o roubo (...), a acusação deve provar a eficácia da arma, para que fique demonstrado o perigo real e maior sofrido pela vítima, o que configura a majorante, e a distingue do roubo simples. Não demonstrado que se tratava de arma de fogo eficaz (fato objetivo relatado pela acusação na denúncia), a tipificação do roubo deve se subsumir ao fato efetivamente provado (grave ameaça = temor eficaz), isto é, ao art. 157, caput, do CP. Essa interpretação lógica decorre da correlação do “princípio da legalidade” (art. 5º, XXXIX, da CF) e do “postulado da proporcionalidade”, uma vez que, caso contrário, o desvalor menor da conduta de um agente (arma ineficaz, ou de brinquedo, ou simulacro de arma = ausência de rico concreto à vítima) seria punido com a pena exacerbada como se tivesse praticado conduta de desvalor maior (arma eficaz = risco concreto à vítima). Desvalores de condutas distintos com penas idênticas também ofendem o “princípio da isonomia”.

[9] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo Penal. Rio de Janeiro: Campus: Elsevier, 1ª ed., 2012, 291. Segundo leciona o processualista: “No sistema de prova legal, em sua fase rudimentar, prevaleciam as ordálias ou Juízos de Deus, bem como os duelos. A prova era revelada por Deus, e o juiz apenas seguia tal resultado. Na evolução do sistema da prova legal, passou-se para a prova tarifada, na qual a lei estabelecia, previamente, quais os meios de prova aptos a provar cada fato e qual o valor de cada meio de prova”.

[10] Com base nesse raciocínio, a Defensoria Pública de Minas Gerais aprovou o Enunciado nº 03 sobre o Pacote Anticrime, nos seguintes termos: “para a incidência da qualificadora do art. 157, §2º-B, do CP é imprescindível a apreensão e perícia da arma de fogo ou munições utilizadas na prática delitiva, visto que a distinção entre tipos de arma de fogo não é aferível sensorialmente, não se admitindo, portanto, que a falta de perícia seja suprida pela eventual confissão do acusado ou por quaisquer outros meios de prova”.

Sobre o autor
Carlos Henrique Pereira Alcântara

Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP). Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Assistente Judiciário do Tribunal de Justiça de São Paulo.

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