Inicialmente, deve-se entender que a noção de concubinato tem suas raízes ainda nas concepções sociais do código de 1916. “A palavra concubinato carrega consigo o estigma de relacionamento alvo do preconceito. Historicamente, sempre traduziu relação escusa e pecaminosa, quase uma depreciação moral[1]”.
Doutrinariamente, o concubinato possui duas classificações: puro e impuro. Na definição de Maria Helena Diniz:
“Será puro se se apresentar como uma união duradoura, sem casamento civil, entre homem e mulher livres e desimpedidos, isto é, não comprometidos por deveres matrimoniais ou por outra ligação concubinária. Assim, vivem em concubinato puro: solteiros, viúvos e separados judicialmente.[2] Ter-se-á concubinato impuro se um dos amantes ou ambos estão comprometidos ou impedidos legalmente de se casar. Apresenta-se como: a) adulterino, se se fundar no estado de cônjuge de um ou de ambos os concubinos, p. ex., se o homem casado mantém, ao lado da família legítima, outra ilegítima; e b) incestuoso, se houver parentesco próximo entre amantes".[3]
Nesse sentido, essa classificação não mais prospera, uma vez que o chamado concubinato puro assumiu o status de união estável, sendo utilizada a expressão “concubinato” para designar apenas o concubinato ‘impuro’. Isso é corroborado pela redação do art. 1.727/ CC 2002: "as relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato". Assim, o concubinato são aquelas relações não eventuais em que os indivíduos são impedidos legalmente de se casar não constituindo entidade familiar, mas mera sociedade de fato. Tais impedimentos vêm elencados no artigo 1521, tendo caráter incestuoso (incisos I ao V), adulterino (inciso VI) ou sancionador (inciso VII):
Art. 1.521. Não podem casar:
I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;
II - os afins em linha reta;
III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;
IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive;
V - o adotado com o filho do adotante;
VI - as pessoas casadas;
VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.”
No que tange a questão da nomeação de concubina como beneficiária em seguro de vida temos que considerar então a noção de Concubinato como ‘concubinato impuro’, pois, em relação ao antigo ‘concubinato puro’, atual ‘união estável’, o STJ já decidiu que é válida a designação de companheira como beneficiária em seguro de vida, bem como consta da permissão do art. 793 do Código Civil: “É válida a instituição do companheiro como beneficiário, se ao tempo do contrato o segurado era separado judicialmente, ou já se encontrava separado de fato”. Para o caso de concubinato ‘impuro’, temos de analisar suas hipóteses de ocorrência: concubinato adulterino e concubinato incestuoso. Há ainda concubinato na hipótese do inciso VII, art. 1521. No caso de concubinato adulterino, aquele em que um dos concubinos é casado ou já possui união estável sem separação de fato, a lei proíbe a nomeação de concubino como herdeiro ou legatário bem como veda a doação do cônjuge adúltero a seu amante, por consequência, impedindo a nomeação no seguro de vida.
Art. 1.801. Não podem ser nomeados herdeiros nem legatários:
III - o concubino do testador casado, salvo se este, sem culpa sua, estiver separado de fato do cônjuge há mais de cinco anos;
Art. 550. A doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice pode ser anulada pelo outro cônjuge, ou por seus herdeiros necessários, até dois anos depois de dissolvida a sociedade conjugal.
Por força do art. 550, o ato de doação não implica nulidade absoluta, cabendo ao outro cônjuge ou aos herdeiros necessários, formularem pedido de anulação por fraude. No entanto, os dispositivos fazem alusão à hipótese de concubinato adulterino, o que excluiria o concubinato incestuoso, situação completamente atípica, da vedação imposta pela interpretação do texto legal.
Desse modo, a priori, havendo relação de concubinato impuro, não é permitida a nomeação da concubina como beneficiária do seguro de vida, mas é aceita a nomeação de companheira (antigo concubinato puro):
DIREITO CIVIL. RECURSOS ESPECIAIS. CONTRATOS, FAMÍLIA E SUCESSÕES. CONTRATO DE SEGURO INSTITUÍDO EM FAVOR DE COMPANHEIRA. POSSIBILIDADE. É vedada a designação de concubino como beneficiário de seguro de vida, com a finalidade assentada na necessária proteção do casamento, instituição a ser preservada e que deve ser alçada à condição de prevalência, quando em contraposição com institutos que se desviem da finalidade constitucional. - A união estável também é reconhecida constitucionalmente como entidade familiar; o concubinato, paralelo ao casamento e à união estável, enfrenta obstáculos à geração de efeitos dele decorrentes, especialmente porque concebido sobre o leito do impedimento dos concubinos para o casamento. - Se o Tribunal de origem confere à parte a qualidade de companheira do falecido, essa questão é fática e posta no acórdão é definitiva para o julgamento do recurso especial. - Se o capital segurado for revertido para beneficiário licitamente designado no contrato de seguro de vida, sem desrespeito à vedação imposta no art. 1.474 do CC/16, porque instituído em favor da companheira do falecido, o instrumento contratual não merece ter sua validade contestada. - Na tentativa de vestir na companheira a roupagem de concubina, fugiram as recorrentes da interpretação que confere o STJ à questão, máxime quando adstrito aos elementos fáticos assim como descritos pelo Tribunal de origem. Recursos especiais não conhecidos. (STJ - REsp: 1047538 RS 2008/0077834-2, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 04/11/2008, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: --> DJe 10/12/2008)
No caso de concubinato adulterino, entendo porém ser necessário considerar os aspectos da relação, como a boa-fé da concubina, que, acreditando estar em relação equivalente à união estável, onde há separação de fato do companheiro casado, na verdade vive em concubinato com indivíduo casado e não separado de fato (união estável putativa). Deve -se sempre buscar soluções mais isonômicas, norteada pelos princípios da dignidade e função social do contrato. Nesse sentido, decidiram o STJ e o TCU:
CIVIL E PROCESSUAL. SEGURO DE VIDA REALIZADO EM FAVOR DE CONCUBINA. HOMEM CASADO. SITUAÇÃO PECULIAR, DE COEXISTÊNCIA DURADOURA DO DE CUJUS COM DUAS FAMÍLIAS E PROLE CONCOMITANTE ADVINDA DE AMBAS AS RELAÇÕES. INDICAÇÃO DA CONCUBINA COMO BENEFICIÁRIA DO BENEFÍCIO. FRACIONAMENTO. CC, ARTS. 1.474, 1.177 E 248, IV. PROCURAÇÃO. RECONHECIMENTO DE FIRMA. FALTA SUPRÍVEL PELA RATIFICAÇÃO ULTERIOR DOS PODERES. I. Não acarreta a nulidade dos atos processuais a falta de reconhecimento de firma na procuração outorgada ao advogado, se a sucessão dos atos praticados ao longo do processo confirma a existência do mandato. II. Inobstante a regra protetora da família, consubstanciada nos arts. 1.474, 1.177 e 248, IV, da lei substantiva civil, impedindo a concubina de ser instituída como beneficiária de seguro de vida, porque casado o de cujus, a particular situação dos autos, que demonstra espécie de "bigamia", em que o extinto mantinha-se ligado à família legítima e concubinária, tendo prole concomitante com ambas, demanda solução isonômica, atendendo-se à melhor aplicação do Direito. III. Recurso conhecido e provido em parte, para determinar o fracionamento, por igual, da indenização securitária. (STJ - REsp: 100888 BA 1996/0043529-4, Relator: Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, Data de Julgamento: 14/12/2000, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJ 12.03.2001 p. 144LEXSTJ vol. 142 p. 105RDTJRJ vol. 71 p. 114RT vol. 792 p. 214)]
‘PESSOAL. PENSÃO CIVIL. CONCESSÃO AOS FILHOS E A DUAS COMPANHEIRAS. LEGALIDADE. REGISTRO. 1. É legal a concessão de pensão vitalícia a vários beneficiários, porque amparada nos arts. 217, inciso I, § 1º, e 218, §§ 1º e 2º, da Lei nº 8.112/1990. 2. A descaracterização da união estável como entidade familiar no caso de concubinato concomitante é presunção iuris tantum, ilidível, portanto, por intermédio de provas em direito admitidas. 3. A concessão de pensão civil a duas companheiras, com a devida comprovação da união estável, pode, ressalvadas as particularidades de cada caso, prosperar, ante o caráter social do benefício previdenciário.’ (Acórdão 883/2007 – TCU –Plenário)
A situação parece ainda mais delicada no que tange o concubinato impuro incestuoso, pois, se partimos do entendimento que a vedação à nomeação da concubina como beneficiária, bem como herdeira ou legatária, é meio de proteção à família juridicamente constituída e subsistente, como tratar dos casos em que o impedimento para a união não advêm da existência de outro casamento ou união estável, mas de circunstância alheia à vontade das partes? A princípio parece não se aplicar a vedação legal, posto que não há vedação expressa à todas as hipóteses de concubinato. Principalmente em se tratando do art. 550, em que a anulação da doação está atrelada à oposição do cônjuge traído e herdeiro necessários. De igual modo, o art.1801 fala em ‘testador casado’, ‘separado de fato’, claramente se referindo ao concubinato adulterino, o que não deve se aplicar ao concubinato incestuoso, posto que não configurado o animus de dolo ou fraude contra outra família.
[1] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 5ed. São Paulo. 2009. p.163.
[2] RT 409:352
[3] RTJ 38:201; RT 458:224