Covid-19: Locação e a revisão de aluguéis em momento de pandemia mundial

07/05/2020 às 07:23
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Será possível rever, ainda que provisoriamente, enquanto perdurar o isolamento social e a pandemia do vírus covid-19, os aluguéis dos imóveis?

O momento atual, de decretação de pandemia mundial por conta do vírus covid-19, tem gerado efeitos econômicos indesejados para a maioria das pessoas, inclusive para empresários que viram, da noite para o dia, em razão da recomendação de isolamento social da Organização Mundial de Saúde – OMS, seus negócios minguarem e suas receitas caírem drasticamente.

Não se olvide que o combustível da economia é o consumo, a circulação de bens e serviços. Quanto mais e com maior valor agregado for o comércio de bens e serviços, melhor para a saúde econômica das empresas. O contrário também é verdadeiro e isto vem ocorrendo por conta do período de isolamento social decretado na maioria do mundo, com reflexos graves também no Brasil, ao seguir majoritariamente as recomendações da OMC.

Já existem sinais de que, gradativamente, os negócios empresariais voltarão, ainda que parcialmente, a funcionar. Mas o impacto já foi sentido, inclusive de, no Brasil, esperar-se um Produto Interno Bruto – PIB, depois de décadas de ascensão, negativo.

Nesse cenário, de redução de receitas, muitos empreendimentos possuem várias despesas fixas, tais como o aluguel do estabelecimento empresarial. Daí cabe indagar: será possível rever, ainda que provisoriamente, enquanto perdurar o isolamento social e a pandemia de vírus, os aluguéis dos imóveis?

De início, cabe anotar que a relação contratual formada entre as partes é regida precipuamente pelas disposições de direito privado, no caso o Código Civil Brasileiro e a Lei 8.245/91 (Lei de Locações ou Lei do Inquilinato[1]).

E, assim sendo, no ramo civilista, a regra é a liberdade contratual. Por isso, as partes podem livremente, de maneira consensual, realizar as tratativas que melhor lhe aprouver, nos limites da função social do contrato e observados os princípios da probidade e da boa-fé[2].

Por conta disso, é cabível que as partes, consensualmente, diante de situação calamitosa e de força maior, como é o caso da pandemia mundial de covid-19, que afetou diversas atividades econômicas, negociar aluguel diferenciado, seja com a suspensão, redução proporcional ou compensação futura.

Com efeito, não se pode olvidar que todo o contrato deve, em regra, ser cumprido em seus estritos termos, em obediência ao vetusto brocado latino pacta sunt servanda.

Contudo, é verdade também que o contrato deve manter o seu equilíbrio durante a sua vigência (rebus sic stantibus), mormente em contratos de trato sucessivo como é o caso das locações.

Acerca disso, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho ensinam que a teoria da imprevisão decorre “do desenvolvimento teórico da cláusula rebus sic stantibus, aplicável quando a ocorrência de acontecimentos novos, imprevisíveis pelas partes e a elas não imputáveis, refletindo sobre a economia ou na execução do contrato, autorizarem a sua resolução ou revisão, para ajustá-lo às circunstâncias supervenientes”[3].

Nesse diapasão, se relação contratual se tornar excessivamente onerosa para uma das partes, com extrema vantagem para a outra, pode-se cogitar até mesmo a resolução por onerosidade excessiva, fruto da teoria da imprevisão[4], ou a modificação equitativa do contrato[5].

Por seu turno, na via judicial, admite-se que, ante um cenário imprevisível, o juiz corrija a prestação desproporcional[6]. Pondera Fábio Ulhoa Coelho[7]:

Nas obrigações negociais, considera-se que devedor e credor concordaram com as respectivas prestações por tomá-las, segundo a perspectiva de cada um, como equivalentes. Há, por assim dizer, equilíbrio entre as prestações do sujeito ativo e do passivo. Ocorre que fatores imprevisíveis podem romper o equilíbrio vislumbrado no momento da constituição da obrigação. Segundo a teoria da imprevisão, se o valor da prestação se altera significativamente em decorrência de fatores que a parte não podia antever, é justo que ela obtenha em juízo a revisão desse valor de modo a neutralizar o desequilíbrio superveniente.

Desse modo, se uma parte vem regularmente pagando aluguéis e está tolhida de uso regular do imóvel, como é o caso dos shoppings centers fechados ou com parcial funcionamento, por evento imprevisível e extraordinário, é cabível juridicamente discutir o ajustamento dos aluguéis ou das condições contratadas.

Na hipótese de a negociação não surtir o efeito almejado, pode-se levar a discussão para a seara judicial. Quanto a isso, destaca-se que já houve algumas decisões judiciais, em caráter provisório, que concederam a suspensão dos aluguéis ou sua redução proporcional durante a pandemia.

À título de exemplo, na seara federal, destaca-se a seguinte decisão[8]:

Há todo um esforço social para a paralisação das pessoas, com o intuito de diminuir a curva de contaminação; todo esse processo levou a desaceleração da economia e fechamento de setores. Todo esse cenário que define a 'calamidade pública' levou à suspensão por tempo indeterminado das atividades da parte autora no espaço conquistado nas dependências do Aeroporto Afonso Pena. (...)

A mera postergação do tempo para pagamento dos alugueres mínimos proposta pela INFRAERO tem grande probabilidade de levar à falência todas as empresas que no Aeroporto Afonso Pena desenvolvem suas atividades, de modo que após superarmos a crise sanitária não haverá lojas e restaurantes funcionando no aeroporto para os primeiros corajosos a voltarem a utilizar do avião como meio de transporte.

Desta forma, igualmente sob a perspectiva do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, em especial considerando que a concessionária é microempresa, entendo que o contrato administrativo deve permanecer suspenso até o encerramento do estado de calamidade pública.

Na justiça estadual, consta também decisão favorável[9]:

Acredito ser adequada e equânime, portanto, ao menos neste juízo inicial de delibação, a redução do aluguel para o próprio valor apresentado pelo credor, mas estendendo tal redução para os meses de abril e maio, não apenas março, devendo eventual compensação, se existir, ser verificada apenas quando do julgamento do mérito, quando se terá maiores elementos para verificar as condições econômicas do locador.

A atuação, desta forma, ao menos para mim, diminui a tensão da relação entre as partes, considerada, sempre, a excepcionalidade do quadro mundial.

Diante do exposto, DEFIRO PARCIALMENTE o pedido de antecipação dos efeitos da tutela recursal para reduzir o valor do aluguel (...)

Inobstante, não existe uma uniformidade pela concessão do desconto ou revisão do aluguel, muito embora se possa afirmar que as decisões judiciais estão pendendo a favor do locatário, pela concessão da redução temporária do aluguel.

Em sentido contrário, as decisões desfavoráveis escoram-se na não demonstração efetiva do impacto financeiro do isolamento nas atividades empresariais[10]. Por conta disso, cabe as empresas que queiram se socorrer do judiciário, por cautela, levar a demonstração dos prejuízos sofridos pelo isolamento social, apesar de ser algo que possa ser enquadrado como fato notório, visto que, ante a determinação de diversos estados de fechamento das empresas e do comércio em geral, se não há clientes, não há receitas para a pessoa jurídica, o que, por consequência, interfere na sua capacidade de honrar com os aluguéis.

De outra banda, em razão da situação calamitosa, não se pode desconsiderar que a produção legislativa brasileira neste período extraordinário tem sido intensa, com diversas propostas de inovações no mundo jurídico para enfrentamento do momento de pandemia mundial do covid-19.

À guisa de exemplo, o Projeto de Lei nº 1.179, de 2020, do Senador Antonio Anastasia, aprovado pelo Senado em forma de substitutivo apresentado pela Senadora Simone Tebet, propõe uma série de alterações legislativas, inclusive na Lei do inquilinato.

No parecer ao projeto em comento, a Senadora Simone Tebet expõe o cenário atual e faz algumas relevantes ponderações[11]:

(...) Aos olhos de nosso tempo, essas palavras soam proféticas: em todo o mundo, ricos e pobres, cidadãos de países desenvolvidos e não desenvolvidos, homens e mulheres, todos padecemos direta ou indiretamente dos efeitos da pandemia do Coronavírus (Covid-19). Criou- se uma espécie de solidariedade internacional na dor e no sofrimento que essa pandemia trouxe para a sociedade global, com grande impacto na vida econômica, na empregabilidade e na conservação dos contratos.

Inúmeras cidades de todos os continentes foram paralisadas total ou parcialmente em razão das medidas de isolamento compulsório em um cenário de guerra, marcado pela presença de uma única adversária: a pandemia.

A consequência inevitável desse ambiente excepcional e transitório é que diversas relações contratuais, societárias, de família e de outros ramos do Direito Privado foram fortemente abaladas com a superveniência desses fatos. (...)

Como tive a oportunidade de salientar, juntamente com o ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal, e o senador Antonio Anastasia, autor deste projeto de lei, em artigo publicado hoje, em coautoria, no jornal Folha de S. Paulo: há dois caminhos para a superação da crise. O primeiro é se perfaz se perfaz com aportes bilionários de recursos públicos, renúncias ou moratórias fiscais e a manutenção coativa de contratos de trabalho. O segundo é o percorrido por esta lei: a elaboração de normas emergenciais para controlar o efeito cascata da crise econômica no ambiente de negócios, com quebra em cadeia de contratos.

Quanto a este último caminho, o protagonismo do Congresso Nacional é essencial e nós parlamentares temos agido à altura das grandes expectativas do povo brasileiro. (...)

A proposição em pauta consegue, com inegável equilíbrio, criar o chamado RJET (Regime Jurídico Emergencial e Transitório) para dar conforto jurídico às mais diversas relações de Direito Privado. (...)

A proposição poderia ter adotado o caminho da moratória geral dos contratos, dilatando prazos e restringindo direitos dos credores. Esse caminho não foi adotado porque o Direito brasileiro, tanto no Código Civil quanto no Código de Defesa do Consumidor, já possui mecanismos muito eficientes para permitir a revisão judicial dos contratos. O projeto orienta-se para impedir que haja uma ampla judicialização por uso indevido da pandemia como uma cláusula geral de liberação dos deveres das partes. Medidas protetivas no âmbito de contratos de serviços regulados (transportes, telecomunicações, gás, energia elétrica e água) podem e devem ser adotadas, mas é fundamental que as agências reguladoras liderem esse processo, dada a existência de inúmeras implicações no equilíbrio econômico-financeiro de tais ajustes. (...)

Como a presente lei estabelece um regime jurídico transitório, é preciso deixar explícito o termo inicial de vigência das regras. De fato, não é intenção deste projeto criar regras permanentes. Se o fosse, estaríamos a alterar o próprio Código Civil ou outras leis, o que não é o caso. Estamos aqui apenas criando um Regime Jurídico Emergencial e Transitório (RJET) de Direito Privado. Por isso, convém acatar parcialmente as Emendas nºs 4, do Senador Marcos Rogério, e 50, do Senador Roberto Rocha, com pequenos ajustes redacionais.

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Cabe, ainda, anotar que o art. 10 do projeto, que admitia a suspensão dos aluguéis em determinados casos, não foi aprovado, ao argumento de que “ideal é deixar para as negociações privadas esse assunto”.

Do exposto, pode-se concluir que, ante momento extraordinário e imprevisível, causado por uma pandemia mundial de vírus, gerando isolamento social e impactos econômicos, a suspensão de pagamento de locação pode ser precedida de negociação e ajuste no contrato de locação, em consenso, com fundamento na liberdade de contratar das partes. Caso a via amigável não logre êxito, deve-se avaliar a conveniência e a oportunidade de levar o caso para apreciação do Poder Judiciário, com base na teoria da imprevisão. Em todo caso, a revisão provisória dos aluguéis mostra-se juridicamente admissível.

 


[1] A Lei do inquilinato é afastada em alguns casos por expressa disposição legal: “Art. 1º A locação de imóvel urbano regula - se pelo disposto nesta lei: Parágrafo único. Continuam regulados pelo Código Civil e pelas leis especiais: a) as locações: 1. de imóveis de propriedade da União, dos Estados e dos Municípios, de suas autarquias e fundações públicas; 2. de vagas autônomas de garagem ou de espaços para estacionamento de veículos; 3. de espaços destinados à publicidade; 4. em apart-hotéis, hotéis residência ou equiparados, assim considerados aqueles que prestam serviços regulares a seus usuários e como tais sejam autorizados a funcionar; b) o arrendamento mercantil, em qualquer de suas modalidades”.

[2] Art. 421 do Código Civil: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.

[3] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Curso de Direito Civil. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 358.

[4] Art. 478 do Código Civil: “Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação”.

[5] Art. 479 do Código Civil: “A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato”.

[6] Art. 317 do Código Civil: “Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação”.

[7] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil: obrigações. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 253.

[8] Processo nº 5017470-58.2020.4.04.7000/PR, 1ª Vara Federal de Curitiba/PR, Juiz Federal Friedmann Anderson Wendpap, julgado em 03/04/2020

[9] Processo nº 0707596-27.2020.8.07.0000, TJDFT, Desembargador Eustáquio de Castro, julgado em 01/04/2020.

[10] Processo 2072726-40.2020.8.26.0000. Agravo de Instrumento. TJSP. Relator Desembargador Marcos Ramos, julgado em 17/04/2020.

[11] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141306

Sobre o autor
Alexandre Santos Sampaio

Advogado. Mestre em Direito pela Uniceub - Centro Universitário de Brasília. Especialista em Direito Público pela Associação Educacional Unyahna. Especialista em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia. Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Bacharel em Administração pela Universidade do Estado da Bahia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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