Inquietude

07/05/2020 às 10:26
Leia nesta página:

algumas linhas traçadas acerca da necessidade de alteração dos critérios para nomeação de administrador judicial em processo de falência.

                                       INQUIETUDE

 

                Dias atrás me deparei com uma matéria deveras preocupante, que bem retrata a hodierna realidade. Dela consta que os pedidos de falência, em março, aumentaram 73% comparando-se ao mês anterior, só em São Paulo[1], o que se traduz (também) em reflexo da crise sanitária mundial. Diz-se “também” porque não é de agora, neste ano de 2020, que muitas entidades estão mergulhadas em crise econômica. O país já vinha patinando (também) na seara da economia e a crise [mais uma] de saúde agravou a situação, evidente[2]. Portanto, a crise do país é questão antiga.

               Sem escolho a que se escreva, oportunamente, com mais profundidade acerca do tema a ser doravante enfrentando, tem-se que o instituto da falência é colocado em segundo plano, por dizer assim, em relação à reestruturação empresarial. A constatação é bastante fácil.

                Dito de outro modo, mas com igual alcance, há um evidente movimento pendular que oscila no tocante à proteção dos direitos/interesses de credores e devedores, mas isso tão somente na seara recuperacional.  Portanto, há certo entusiasmo em só se escrever acerca da recuperação judicial e a pletora de livros/artigos/eventos jurídicos demonstram a realidade, não carecendo gastar tinta quanto a tal tema. Enquanto isso, se avolumam os pedidos e abertura judicial de falências sem que exista esfera mais ampla de compreensão/estudo, investigação científica acerca do instituto falimentar; sem que seja substancialmente alterada a lei de regência a fim de imprimir mais dinamismo, celeridade, segurança jurídica e equilíbrio aos processos que retiram o devedor do mercado.

                  De fato, quem sabe, inexista entusiasmo, inspiração ou mesmo estímulo para que se estude de forma mais aprofundada o delicado e importante instituto, quiçá hoje esquecido[3]; decerto o tema não seja interessante para fins de investigação científica, olvidando-se também o direito comparado; possivelmente o tema falimentar não desperta interesse aos alunos do curso de Direito, justamente porque está em voga, na vitrine, a reestruturação das entidades jurídicas. Afinal, o importante é (tentar) pôr em prática os termos do art. 47 da lei de regência e recuperar as que se encontram em crise, que reúnem as exigências legais a tanto; o importante é conceder fôlego àquelas que, mesmo em estado crítico, com mínimas chances de voltar ao mercado competitivo, tentam o soerguimento.

                Entrementes, cresce o número de falências e há possibilidade de se elevar o percentual antes indicado, porquanto, a crise não tem data certa para se encerrar.  Eis o paradoxo.

                  Tome-se como exemplo importantíssimo órgão de execução que atua na falência, que é o administrador judicial. Os critérios para sua nomeação são deveras simplistas e constam do art. 21 da lei de regência[4]. Infelizmente, no ordenamento jurídico pátrio ainda não existem rígidas disposições acerca deste órgão falimentar, cuja responsabilidade é administrar patrimônio de terceiros. O singelo enunciado de tal dispositivo causa preocupação, porquanto diz tudo e nada diz. Faltou, quando da redação da Lei 11.101/05, examinar a legislação comparada (notadamente a primorosa lei francesa) para perceber que tal figura, a do administrador judicial, é fundamental e decisiva, pode-se afirmar, para o bom desenvolvimento do processo.

                Em primeiro lugar, a redação de tal dispositivo deixou de lado a amplitude constante do art. 60 do ab-rogado texto legal falimentar, ou seja, consta apenas que deve ser idôneo, mas não é extensiva a expressão, o que se lamenta[5]. Na lei anterior estava escrito; “de reconhecida idoneidade moral e financeira”. Ora, pois.

                Muito embora o atual texto nada diga, é óbvio ululante que o administrador judicial deve ter idoneidade moral e financeira, as duas, comprovadas anteriormente perante o magistrado condutor do processo falencial. O que seria uma e outra? Bem esclarece Pontes de Miranda:

‘Idoneidade moral’ é apara o exercício da função de síndico, a exatidão no cumprimento dos deveres, a probidade no trato dos dinheiros alheios. “Idoneidade financeira’ é a situação econômica que assegure aos credores e ao falido, bem como a outros interessados na falência, a indenização de qualquer prejuízo que cause à massa e, por lei, seja reparável. Não há só indenizabilidade por negligência ou má administração, de modo que se pode falar apenas em culpa[6]

A idoneidade moral tem estreita ligação com honestidade de quem se propõe ao exercício do cargo. Mais que isso, a idoneidade deita firmes raízes nas exigências constitucionais, porquanto tem a ver com art. 37 da Constituição Federal, aplicável, sem dúvida, também em relação ao administrador judicial, na medida em que é órgão de execução que exerce função pública, mesmo não sendo funcionário. Bem o diz Pontes de Miranda[7]. A idoneidade do administrador judicial não pode estar tisnada antes e durante o processo falimentar. A exigência de comportamento idôneo se impõe. Nessa esteira, bem pondera Emilio Betti:

A destinação inerente à função comporta, para o investido, o dever de desenvolver uma atividade de gestão vinculada objetivamente à preocupação com o interesse alheio e, ao mesmo tempo, uma discricionariedade técnica na apreciação dos meios idôneos para satisfazê-lo no caso concreto: discricionariedade cujo controle em âmbito jurisdicional exige uma interpretação que ultrapasse o significado literal das normas em discussão, para indaga-lo à luz do interesse a ser tutelado[8]

                Portanto, para se candidatar a órgão do processo falimentar, não bastar possuir a idoneidade moral, sendo imprescindível (também) a financeira, para fins de suportar eventual indenização a quem de direito.

                Mesmo não sendo funcionário público na acepção técnica do vocábulo, exerce função pública e aí reside a grande questão. Para se candidatar, deve comprovar que pode, se for o caso, pagar indenização - em decorrência de seus atos - na seara falencial; pode pagar as dívidas da massa falida e depois se ressarcir. É dever seu, como será visto a seguir.  

                 Em segundo, crê-se que a idoneidade financeira não é somente para fazer frente a eventual indenização, porquanto o administrador judicial tem o dever de efetuar o pagamento das despesas incorridas pela massa falida, assim que assinar o termo de compromisso. Traduzindo-se, caso inexistam recursos financeiros em caixa, deve ele arcar, por exemplo, com o custo de segurança de imóvel arrecadado, bem como outras despesas imediatas, que não podem aguardar a extração do valor dos bens, ou seja, liquidação dos ativos e entrada de dinheiro na conta da massa falida. Deve ser muito bom, gratificante, atuar em falência com ativos substanciais, dinheiro em caixa, pronto para arrecadação e posterior depósito bancário. De fato, é mais simples atuar em falência com ativos. Fica muito mais fácil e cômoda a administração da massa falida.

                Mas, o problema surge quando existem ativos arrecadáveis aqui e acolá, mas nenhum dinheiro disponível em caixa da massa falida. Aí, o administrador judicial deve (ou deveria) ter a consciência que cabe a ele bancar as despesas e depois se ressarcir da massa falida. Afinal, seu crédito é extraconcursal (o tema será objeto de outro escrito) e está escrito com todas as letras no art. 84, inciso III, da lei de regência. As despesas decorrentes da administração da massa falida são extraconcursais, devidas ao administrador judicial. Significa isso dizer, em outras palavras, que é ele quem deve pagar o custo da administração, caso inexistam recursos em caixa. Já o diz o art. 124, §1º, inc. III, do ab-rogado texto (antes era utilizado o termo “encargo” da massa falida). Portanto, não basta a pretensão de ser órgão do processo falimentar. É preciso ter idoneidade financeira e moral. Ambas, indissociáveis.

                 Prosseguindo, para que se imprima a tão almejada celeridade processual à falência, seria necessária a substancial alteração da lei no tocante ao instituto, mas não é isso que se observa, porquanto vários temas passam bem distante de projetos de lei.

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                Em primeiro lugar, a arrecadação de ativos (ainda pertencentes ao falido, que manterá a posse imprópria mediata, enquanto a massa falida ostentará a posse imediata[9]) é urgente, tanto que a lei se refere a “ato contínuo”, ou seja, imediatamente, sem demora, o quanto antes, já. A arrecadação de bens não pode ser postergada, sob pena de mais prejuízos ao universo de credores, à entidade falida e ao próprio processo falimentar como um todo. Destarte, a arrecadação é ato complexo, de caráter cogente, dever ser formalizada por pessoas profissionais, capacitadas, aptas e competentes.

                De fato, muito embora, com a abertura judicial da falência ocorra o fenômeno do penhoramento abstrato, assim denominado por Pontes de Miranda, faz-se necessária a apreensão física, por dizer assim, de todos os ativos do falido. Necessária a constrição concreta, que tem desfecho com o depósito/guarda dos ativos (art. 108, §1º da lei). O cumprimento dos artigos 108 a 110 da Lei 11.101/05 é de rigor e imediato, não pode ser deixado para depois; há de ser levado a efeito por quem de fato sabe o que está fazendo, ou seja, profissional capacitado e idôneo. Em formalizando arrecadação precária, quem o fez poderá ocasionar ainda mais prejuízos à massa falida como um todo, sendo responsabilizado, como dito algures [mais uma vez entra a questão da idoneidade financeira, a ser comprovado mesmo antes de assumir o cargo].

                Evidente que cada falência tem suas peculiaridades e vicissitudes, o que deve ser levado em conta. Há aquelas com inúmeros ativos arrecadáveis, em várias comarcas; há as que não possuem ativos. Destarte, não basta apenas a figura do administrador judicial, porquanto precisa ter equipe qualificada para fins de imediata arrecadação dos bens, estejam onde estiverem[10]. O art. 22, inc. I, letra “h” da lei de regência permite a contratação, contanto que haja prévia autorização judicial. O que não pode, s.m.j., é o administrador judicial aguardar pacientemente para dar início ao ato de sua incumbência e responsabilidade.

                        Está escrito com todas as letras na Exposição de Motivos do Dec.-Lei 7.661/45 que o êxito do sistema é confiado ao critério e zelo dos juízes na escolha do titular. A favorável repercussão da medida prenuncia o seu acerto[11].

                        Quer-se crer, destarte, que deveria haver urgente alteração da Lei 11.101/05, para fins de alteração dos critérios/requisitos/exigências [como sói ocorrer em algumas legislações estrangeiras e o regime francês poderia servir de espelho] relativos à nomeação de administrador judicial, órgão relevantíssimo no processo, cujo cargo deve recair [apenas] em pessoas com idoneidade moral e financeira.   

    

 


[1] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/rogeriogentile/2020/04/pedidos-de-falencia-aumentam-73-em-sao-paulo-no-mes-de-marco.shtml. Acesso: 04/05/2020.

 

[2] Com efeito, há pletora de textos acerca da pandemia, crises variadas etc., de modo que aqui não gastar-se tinta com tais temas, porquanto despiciendo e enfadonho.

[3] Há imperiosa necessidade de ler os clássicos nacionais, quiçá hoje esquecidos por alguns, mas que servem de inspiração e estímulo aos realmente dedicados ao estudo do direito falimentar. Há urgência de tomar conhecimento acerca das posições adotadas por Rubens Requião, Trajano de Miranda Valverde, Nelson Abrão, Carvalho de Mendonça, J. C. Sampaio de Lacerda, dentre outros de nomeada [não foram elencados os clássicos italianos]. Estes clássicos, homens de pensamento, que sempre escreveram com discrição e constância, deixaram obras perenes, orgânicas, de fôlego e que certamente serão examinadas por aqueles que realmente buscam o aprimoramento na área. Para bem compreender hoje o instituto da falência, mister entender suas origens e evolução história, ao menos no Brasil. Para que o intérprete possa chegar à sua verdade ( exatidão conhecimento e objeto) necessário se debruçar sobre obras de peso. Com isso terá visão de conjunto, contará com esfera mais ampla de compreensão e poderá opinar/escrever/dialogar com mais propriedade.

[4] O Brasil, infelizmente, não adota critérios mais densos e rígidos, qual na França, por exemplo. Em tal país há critérios/requisitos/exigências mais profundos para que a pessoa se possa intitular administradora judicial. Lá é profissão, com profunda responsabilidade. Acerca de tal tema, voltaremos, noutro artigo.

[5] Muito embora a redação anterior não fosse primorosa, ainda era melhor que a atual, simplista e superficial, que abre muitas possiblidades à atividade interpretativa.

[6] Tratado de direito privado. Parte Especial. Tomo XXIX. 3ª ed., 2ª reimpressão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1984, p. 12. Grifos no original.

[7] Op. cit., p. 6.

[8] Interpretação da lei e dos atos jurídicos: teoria geral e dogmática. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 245.

[9] Sobre o tema: Pontes de Miranda, op. cit., p. 4, dentre outras.

[10] Aqui não há espaço para discorrer a respeito de jurídicas com ativos no exterior, que se traduz em mais uma questão delicada e tormentosa no processo falimentar.

[11] LACERDA, J.C. S. de. Manual de direito falimentar. 14 edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 340.

Sobre o autor
Carlos Roberto Claro

Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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