Resumo: Nos Estados de inspiração liberal o Direito dependia essencialmente do legislador. Contudo, com a conformação do Estado Social, não evolui sem o agente julgador. Devido à transformação da realidade social, a expansão do papel do juiz é uma exigência da sociedade. Mas um juiz apartado da lei e desvinculado da Constituição transforma-se num instrumento de tirania. Este trabalho objetiva alertar sobre a necessidade de um ativismo moderado, sob pena de incorrermos em arbitrariedade e decisionismo.
Palavras-chave: Liberalismo. Constitucionalismo. Neoconstitucionalismo. Ativismo Judicial.
1. Introdução
A Revolução Francesa, de cunho iluminista, influenciada diretamente pela guerra de independência dos Estados Unidos da América, possui, em suas origens, a separação dos poderes sistematizada pelo Barão de Montesquieu. Este, em 1748, sustentou a denominada “teoria da divisão dos poderes”, a qual influenciou o direito constitucional americano e europeu, sendo acolhida pela precitada revolução liberal burguesa de 1789.
Montesquieu, além de uma divisão de funções, defendia a ideia de uma recíproca limitação dos poderes, os quais deveriam ser exercidos por órgãos distintos. Perfilhava que não haveria liberdade caso os poderes legislativo e executivo não fossem separados do poder de julgar.
Aliás, para o filósofo francês, que considerava visíveis somente os Poderes Legislativo e Executivo, os juízes, de seu tempo e país, eram tão somente a “boca que pronunciava as palavras das leis”. A legislação tinha de ser clara e completa a fim de não permitir eventual ingerência judicial atinente à interpretação das normas edificadas pelos representantes do povo. Na hipótese de falta de clareza, de inteligibilidade da lei ou de ausência desta, o agente julgador obrigatoriamente deveria apresentar a situação ao Legislativo visando à realização da “interpretação autorizada”.
Registre-se, no cenário revolucionário francês prevalecia o entendimento de que nenhum juiz podia interpretar a legislação conforme a sua própria vontade, tornando-se, conforme afirmam Sarlet, Marinoni e Mitidiero (2015, p. 884), “imprescindível limitar a atividade do Judiciário, subordinando-o de forma rígida ao parlamento, cujos habitantes deveriam representar os anseios do povo”.
Resumindo, ao Parlamento cabia a tarefa de interpretar a lei e ao juiz incumbia apenas a obrigação de aplicar a lei cegamente.
À vista disso, indaga-se: No Brasil de hoje, os julgamentos devem ser somente um texto exato da legislação? Os juízes estão apenas interpretando ou também criando o Direito?
Espera-se, para a elaboração de uma resposta às suprarreferidas indagações, que o presente trabalho possa contribuir de alguma forma, principalmente levando-se em conta o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) das ações declaratórias de constitucionalidade n.os 43, 44 e 54, pretendendo-se, por meio destas, que o tribunal declare a compatibilidade da regra contida no artigo 283 do Código de Processo Penal (CPP) com o disposto no inciso LVII do artigo 5º da vigente Constituição Federal.
2. A concepção montesquiana mecanicista da função judicial
Os Estados absolutistas, no final da Idade Moderna, conheceram a contenção do poder por intermédio das Constituições emanadas de um movimento político e jurídico denominado Constitucionalismo Moderno, desencadeado pelas revoluções liberais. Segundo Norberto Bobbio (2005, p. 18), “[...] o Estado liberal se afirma na luta contra o Estado absoluto em defesa do Estado de direito e contra o Estado máximo em defesa do Estado mínimo”.
A propósito, a ascensão política da burguesia é incontestável, desempenhando no curso da história um papel eminentemente revolucionário – e o jusnaturalismo moderno, especialmente com o suporte teórico dos iluministas, teve influência marcante sobre as revoluções burguesas liberais: a britânica, a norte-americana e a francesa.
Não é à toa que Claudio Gurgel e Agatha Justen G. Ribeiro (2011, p. 6) afirmam que existe “[...] um caminho percorrido pela burguesia até a conquista do Estado. Este caminho é construído por sua ação econômica, revolucionária [...]”.
Note-se que o constitucionalismo liberal marcou o princípio da era das Constituições. Recebeu influência de pensadores (John Locke, Montesquieu, Rousseau) que inspiraram as revoluções norte-americana e francesa, movidas, primordialmente, por interesses comerciais e econômicos.
Com fundamento nesse contexto histórico, Jorge Reis Novais (2006, p. 86) assevera que “[...] só no processo de luta do constitucionalismo liberal contra o Estado absoluto é que surge e triunfa a ideia da divisão de poderes como especialização jurídico-funcional e, sobretudo, ela se legitima em função da garantia da liberdade individual [...]”.
Nessa esteira, é oportuno consignar que Montesquieu sistematizou, em termos definitivos, as distintas funções estatais, organizando-as junto a diferentes organismos do Estado, perfilhando a ideia de um poder restringido, exercido de forma moderada. E a prática dos revolucionários franceses concordava com Montesquieu no sentido de reduzir o poder de julgar à condição de instrumento de reprodução das palavras da lei.
Conforme explica Novais (2006, p. 94), “[...] a divisão dos poderes traduzia-se concretamente na estrita subordinação do juiz aos ditames da lei emitida pelo Parlamento [...]” – sem possibilidade, frise-se, de censura judicial em relação aos atos parlamentares.
Mendes e Branco (2011, p. 53), aliás, destacam que “[...] os revolucionários franceses devotavam especial desconfiança aos juízes, vistos como adversários potenciais da Revolução”, e nessa atmosfera de descrença,
[...] a atividade do juiz cingia-se tão-somente a declarar mecanicamente o direito, valendo-se apenas dos instrumentos da lógica dedutiva, sem envolver, nessa declaração, sua impressão ou valoração pessoal. E isso era natural, uma vez que, no Estado Liberal, o Direito dependia essencialmente do legislador (CUNHA JR., p. 350).
Tem-se, pois, concluindo este tópico, que o Estado Legislativo, com fulcro no império da lei, também vinculava o Poder Judiciário – e o pertinente julgamento devia ser um texto exato da legislação vigorante, razão pela qual Montesquieu inferiu que o poder de julgar era um “poder nulo”, cabendo somente ao Poder Legislativo a incumbência de criar o Direito.
3. O agir do Judiciário com a transformação do Estado brasileiro
A Primeira Guerra Mundial, conquanto não determine o término do Constitucionalismo, desassocia este movimento do liberalismo. A codificação liberal e a não existência de Constituição econômica serviram como mola propulsora para a exploração dos mais fracos e vulneráveis pelos mais fortes, ocasionando reações e contendas propiciadoras do Estado Social.
A igualdade teórica e absoluta do Estado Liberal abriu espaço para a desigualdade real e o surgimento das injustiças sociais. No Estado em que tudo é permitido, o mais forte oprime o mais fraco. O Estado Liberal realmente gerou grandes injustiças. Esse quadro, somado à Revolução Industrial, deu impulso ao surgimento dos direitos humanos de 2ª geração (SIQUEIRA JR., 2010, p. 53).
Pois bem. Nascido da luta pela conquista dos direitos sociais de segunda dimensão, o Estado de Bem-Estar Social, também denominado Estado providência, de perfil essencialmente intervencionista, entra em cena se opondo ao liberalismo, e haja vista essa mudança de configuração estatal, Clèmerson Merlin Clève (1993, p. 304, apud CUNHA JR., 2008, p. 350) assenta que no referido Estado Social moderno o Direito “não sobrevive, não se aperfeiçoa, não evolui nem se realiza sem o juiz”.
Cunha Júnior (2008, p. 350), em reforço, defende que ao juiz compete a função de criar o Direito. Se não se reconhece isso, na sua ótica, não poderia o magistrado cumprir sua verdadeira missão, que é a de dirimir conflitos.
De se notar, porém, fechando este ponto, que alguns estudiosos apresentam impedimento à criação judicial do Direito, tendo em vista o seu viés antidemocrático. Conforme coloca Cunha Júnior, alguns autores objetam a criação do Direito pelo Judiciário uma vez que “pode conduzir, mais cedo ou mais tarde, ao Estado totalitário, transformando o Judiciário em instrumento de tirania” (CUNHA JR., 2008, p. 356).
4. O neoconstitucionalismo e a expansão do papel do juiz no Brasil
Reprisando, embora a Primeira Guerra Mundial não represente o término do Constitucionalismo, trouxe um novo modelo de Estado, reputado social e intervencionista na sociedade e na economia nela praticada. Mais tarde, com o fim da Segunda Guerra Mundial, surge outra etapa no Constitucionalismo, com a denominação de “neoconstitucionalismo”, cujo marco filosófico é o declínio do positivismo jurídico, proporcionando “[...] a passagem da Lei e do Princípio da Legalidade para a periferia do sistema jurídico e o trânsito da Constituição e do Princípio da Constitucionalidade para o centro de todo o sistema” (CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 10).
Houve uma reaproximação entre o Direito e a Ética, o Direito e a Moral, o Direito e a Justiça, com a consequente tutela da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais. Decisões flagrantemente apartadas da justiça, como as que permearam o fascismo e o nazismo, não podiam persistir.
É importante consignar que o marco histórico do neoconstitucionalismo, no Brasil, foi a Constituição de 1988. E uma consequência forte desse novo direito constitucional foi um maior protagonismo do Poder Judiciário exigindo o cumprimento do texto magno, diploma este que vincula todos os Poderes constituídos do Estado.
Ao precitado protagonismo do Judiciário vem sendo dado o nome de “ativismo judicial” – que não raras vezes se mostrou prejudicial. No tocante às normas constitucionais definidoras dos direitos sociais e à criação de políticas públicas sociais, há aplausos no que tange à pertinente prestação jurisdicional, mas também são perceptíveis as críticas acerca do ativismo do órgão judicante.
Para os críticos, consoante pontua Martins (2017, p. 75), a postura ativa do Judiciário
[...] acaba por prestigiar as classes mais abastadas da sociedade. Isso porque, os mais instruídos poderão acionar o Judiciário por meio de remédios constitucionais e outras ações com o escopo de concretizar seus direitos, que a maioria inculta sequer sabe ser titular.
Por oportuno, no que pertine às chamadas políticas públicas, Eloisa de Mattos Höfling (2001, p. 31) adverte:
Estado não pode ser reduzido à burocracia pública, aos organismos estatais que conceberiam e implementariam as políticas públicas. As políticas públicas são aqui compreendidas como as de responsabilidade do Estado – quanto à implementação e manutenção a partir de um processo de tomada de decisões que envolve órgãos públicos e diferentes organismos e agentes da sociedade relacionados à política implementada. Neste sentido, políticas públicas não podem ser reduzidas a políticas estatais.
A propósito, levando-se em conta a efetivação dos noveis direitos sociais, Cunha Júnior (2008, p. 352) coloca os juízes como corresponsáveis pela feitura das supramencionadas políticas públicas dos Poderes Legislativo e Executivo.
Desse modo, diferentemente do Judiciário “invisível”, “nulo” e “inanimado”, tal como concebido pela clássica teoria da separação dos Poderes, devemos necessariamente reconhecer a extraordinária grandeza e vigor do “atual” e “renovado” Poder Judiciário, como garantia do Estado Constitucional Democrático [...] (CUNHA JR., 2008, p. 353).
Note-se que desde o advento das Constituições do México, de 1917, e da Alemanha, de 1919, percebe-se uma crescente judicialização da política, vez que as Constituições passaram a contemplar finalidades e diretrizes políticas, transformando em questões jurídicas os assuntos da esfera política.
À vista desse conjunto de circunstâncias, “o crescimento do Poder Judiciário deve-se, curiosamente, ao crescimento dos outros Poderes quando da conformação do Estado Social” (CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 352).
Frise-se, ninguém nega que o Judiciário tem exercido um papel relevante no que atine à omissão inconstitucional. Afinal, quando os Poderes Legislativo e Executivo mostram-se inertes, incapazes de garantir o cumprimento adequado dos direitos fundamentais sociais, em afronta nítida de suas obrigações constitucionais, cabe inevitavelmente a ingerência do Judiciário.
Contudo, finalizando o assunto, é certo que a judicialização radical da política, o ativismo judicial imoderado, não obstante movido de uma cota de boa intenção, está a agravar a desigualdade social brasileira, permitindo que tão somente os que têm acesso ao Judiciário se beneficiem de recursos públicos decorrentes das necessárias políticas públicas.
Considerações finais
Outrora, o “[...] princípio da separação dos Poderes atuava para constranger o poder de julgar a uma posição de menor influência” (MENDES; BRANCO; 2011, p. 54). Hodiernamente, de forma diversa, tendo em vista toda a transformação social histórica, o Judiciário é considerado um poder “que se dota de melhores condições para assegurar a efetividade dos direitos fundamentais, particularmente quando se apresenta quadro de ameaça ou violação dos mesmos [...]” (CUNHA JR., 2008, p. 354).
Todavia, é forçoso enfatizar que o demasiado ativismo judicial, em determinadas circunstâncias, tem tornado os juízes legisladores e, em alguns casos, seres injustos que atuam de forma mais rígida que a lei.
Advirta-se que não se está pretendendo que a magistratura atual seja uma mera pronunciante das palavras da lei, em concordância com a visão montesquiana. O que se pretende é um ativismo moderado, prudente e responsável.
Registre-se, “inovar o sistema normativo constitui função típica da instituição parlamentar” (ADI 1.063/MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 18/5/1994, Plenário, DJ de 27/4/2001), e nada tem a ver com a função jurisdicional.
A vigente Constituição brasileira, pela primeira vez, consagrou o chamado princípio da presunção de inocência, proclamado, em 1948, na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Em 2011, uma novel redação dada ao artigo 283 do CPP põe cobro a qualquer dúvida: não se pode mais prender alguém somente como efeito de uma condenação, enquanto não houver o trânsito em julgado.
Recentemente, em 24 de outubro do corrente ano, o plenário do STF deu continuidade ao julgamento de três ações declaratórias de constitucionalidade (n.os 43, 44 e 54) que questionam a prisão após condenação em segunda instância. A Ministra Rosa Weber justificou seu voto contrário assentando que a redação constitucional concernente à presunção de inocência não dá acesso livre aos intérpretes. Na sua ótica, “STF é o guardião da Constituição, não seu autor. Quando o juiz é mais rígido que a lei, ele é injusto. Não fomos investidos de autoridade para declarar inconstitucional a própria Constituição”.
Percebe-se que a precitada julgadora foi contrária à recusa da legalidade constitucional – e não há como discordar do seu entendimento. A propósito, o Ministro Celso de Mello afirmou que “o que está em jogo é o exame de um direito fundamental, conquista histórica da cidadania em face do Estado, que costuma ser combatido por regimes opressores. [...] Nada recompensa o rompimento da ordem constitucional”.
É fato: ao magistrado é proibido romper com o legalismo e o papel constitucional preciso. A Corte Suprema (STF) não pode, de forma alguma, reescrever a Constituição ou ser mais dura que a legislação.
O Ministro Luiz Fux deu o quarto voto a favor de permitir o referido aprisionamento após condenação em segunda instância. Segundo ele, “o direito não pode viver apartado da realidade”. Ora, esquece-se o ilustre magistrado de que as decisões hodiernas também não podem ser flagrantemente apartadas da justiça, como as que permearam o fascismo e o nazismo.
Um valor a ser considerado é o constante no art. 3º, I, do texto magno vigente, segundo o qual um dos objetivos do Estado brasileiro é construir uma sociedade justa. Conforme a Ministra Rosa Weber consignou no julgamento conjunto das citadas ações declaratórias de constitucionalidade, “quando o juiz é mais rígido que a lei, ele é injusto” – e injustiça não condiz com o que deve ser perseguido pela República.
Importa esclarecer, por último, que os reclamos da população desejosa por mudanças sociais são legítimos e aceitáveis. Afinal, a impunidade é intolerável. Porém, as decisões judiciais não podem resultar de caprichos ou idiossincrasias. Sentimentos de justiça e de equidade são imprescindíveis. Um juiz criador do Direito, completamente livre de vínculos, fazendo ouvidos moucos e olhares poucos à Constituição e à lei, torna-se um ditador – e, conforme profetizou Rui Barbosa, “[...] a pior ditadura é a ditadura do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer’’.
REFERÊNCIAS
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GURGEL, C.; RIBEIRO, A. J. G. Marxismo e políticas públicas. 35° Encontro Anual da ANPOCS. https://anpocs.com/index.php/papers-35-encontro/gt-29/gt18-25/1029-marxismo-e-politicas-publicas/file
HÖFLING, Eloisa de Matos. Estado e políticas (públicas) sociais. São Paulo: Caderno Cedes, ano XXI, n° 55, novembro/2001.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011.
NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do estado de direito. Coimbra: Edições Almedina, 2006.
NUNES JÚNIOR, Flávio Martins Alves. Curso de Direito Constitucional. 1. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e direito constitucional internacional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. ampl. São Paulo: Saraiva, 2015.
SIQUEIRA JÚNIOR, Paulo Henrique; DE OLIVEIRA, Miguel Augusto. Direitos humanos e cidadania. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.