A TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA E SUA APLICAÇÃO AO TIPO PENAL DO ESTELIONATO PREVIDENCIÁRIO

10/05/2020 às 11:28
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O presente trabalho trata-se da apresentação de apontamentos acerca da willful blindness ou teoria da cegueira deliberada, tendo como base um estudo de caso, extraído do Tribunal Regional da 4ª Região.

RESUMO

 

O presente trabalho trata-se da apresentação de apontamentos acerca da willful blindness ou teoria da cegueira deliberada, tendo como base um estudo de caso, extraído do Tribunal Regional da 4ª Região, em que se aplicou tal teoria para a condenação, na seara criminal, de indivíduo que, em tese, teria cometido a infração penal do estelionato previdenciário. Ao final de nosso estudo, conclui-se que tal instituto norte-americano não pode ser aplicado em solo brasileiro tal qual é aplicado nos EUA, pois não possuímos, em nossa legislação, em nossa doutrina e jurisprudência, elementos subjetivos hierarquizados ou escalonados em “graus de culpabilidade”, da qual se originou a willful blindness, em específico, do Knowledge. Os conceitos de cegueira deliberada e dolo eventual são diferentes, não podendo ser confundidos, razão pela qual rechaçamos o uso indiscriminado da teoria da cegueira deliberada pela jurisprudência brasileira como equivalente ao dolo eventual. Não há violação do princípio da legalidade e da proibição de interpretação analógica in malam partem. A partir do caso concreto da jurisprudência paranaense, verificando-se a aplicação da cegueira deliberada como equivalente ao dolo eventual, houve um esvaziamento do sentido original daquela, tornando-se um adorno retórico. Contudo, a cegueira deliberada não se presta somente como retórica vazia, mas pode ser usada (de forma inapropriada) pelo julgador, para tornar a fundamentação da decisão judicial “supostamente mais robusta”, quando a prova do dolo eventual não esteja de todo demonstrada num caso em julgamento, ou, também,  para se aplicar o dolo eventual em situações específicas, como a de alegação de indiferença deliberada pelo autor sobre fatos e resultados criminosos. Não se vislumbrou, no acórdão, que o agente teria assumido o risco de produzir um resultado delituoso em face do INSS, por isso, o mais correto seria inserir a conduta do réu no elemento subjetivo da culpa, na forma de negligência, afastando, a sua condenação, pois o estelionato previdenciário não prevê punição para condutas culposas. O tema da cegueira deliberada está longe de se esgotar e, sem o devido amadurecimento doutrinário e debates nos bancos universitários, torna-se insustentável defendermos a importação da teoria da cegueira deliberada pela jurisprudência brasileira.

 

Palavras-chave:  Teoria da Cegueira Deliberada. Estelionato Previdenciário. Dolo Eventual. Princípios Constitucionais Penais.

ABSTRACT

 

The present work is about the presentation of notes on willful blindness or theory of deliberate blindness, based on a case study, extracted from the Regional Court of the 4th Region, which applied this theory to the conviction, in the criminal area, of an individual who, in theory, would have committed the criminal offense of the social security estelionate. At the end of our study, it is concluded that such an American institute cannot be applied in Brazilian soil as it is applied in the USA, because we do not have, in our legislation, in our doctrine and jurisprudence, subjective elements hierarchized or staggered in “ degrees of culpability, ”which gave rise to the specific willful blindness of Knowledge. The concepts of deliberate blindness and eventual intent are different and not to be confused, which is why we reject the indiscriminate use of the theory of blindness deliberated by Brazilian jurisprudence as equivalent to eventual intent. There is no violation of the principle of legality and the prohibition of analogical interpretation in malam depart. From the concrete case of the case law of Paraná, verifying the application of deliberate blindness as equivalent to the eventual deceit, there was an emptying of its original meaning, becoming a rhetorical adornment. However, deliberate blindness not only lends itself to empty rhetoric, but can be used (inappropriately) by the judge to make the reasoning of the judicial decision "supposedly more robust" when the proof of eventual deceit is not at all demonstrated in a case in court, or, also, to apply the willful intent in specific situations, such as allegation of deliberate indifference by the plaintiff about criminal facts and results. It was not apparent in the judgment that the perpetrator would have assumed the risk of producing a criminal result in the face of the INSS, so it would be more correct to insert the defendant's conduct in the subjective element of the guilt, in the form of negligence, removing the his conviction, because the social security estelionato does not provide punishment for guilty conduct. The subject of deliberate blindness is far from being exhausted and, without due doctrinal maturity and debates in the university banks, it is untenable to defend the importation of the theory of deliberate blindness by Brazilian jurisprudence.

 

Keywords: Theory of Deliberate Blindness. Social Security Estelionate. Eventual Dolo. Penal Constitutional Principles.

 

 1 INTRODUÇÃO

 

O presente trabalho trata-se da apresentação de apontamentos ou reflexões acerca da willful blindness ou teoria da cegueira deliberada, tendo como base um estudo de caso, extraído do Tribunal Regional da 4ª Região, em que se aplicou tal teoria para a condenação, na seara criminal, de indivíduo que, em tese, teria cometido a infração penal do estelionato previdenciário. Assim, teremos como objeto de estudo a cegueira deliberada aplicada em um caso prático da jurisprudência paranaense.

Tal estudo justifica-se pelo fato de, durante o curso de pós-graduação em Ciências Criminais, efetuarmos pesquisas informais pelos sítios da Internet sobre o assunto, o que foi possível ser vislumbrado por nós a existência de uma crescente aplicação da cegueira deliberada pelos tribunais brasileiros (em especial após os casos famosos do Mensalão e da Lava Jato), a recente importação deste instituto pela jurisprudência brasileira, em termos históricos, bem como detectamos poucos estudos científicos/doutrinários, que debatessem em profundidade a temática da willful blindness, o que nos motivou a buscar por obras que, de fato, questionassem e refletissem acerca do referido tema, a fim de que possamos contribuir para a ampliação do debate crítico e para o desenvolvimento das Ciências Criminais.

Com isso, objetivamos a reflexão crítica da teoria da cegueira deliberada, tendo como base no estudo de caso concreto de um acórdão condenatório pelo crime de estelionato previdenciário. Também visamos, como desdobramento, verificar se e como tal teoria, importada dos EUA, é aplicada em nosso país, bem assim pretendemos constatar a sua relevância para a jurisprudência brasileira. Ademais, pretendemos analisá-la à luz de princípios constitucionais penais e compará-la com elementos subjetivos da infração penal – dolo e culpa – para averiguarmos se guardam alguma relação com o referido instituto norte-americano, importado pela jurisprudência brasileira, ou se se trata de um argumento meramente retórico usado pelo julgador brasileiro.

Para tal intento, usaremos, como metodologia, a leitura das mais recentes obras que abordam a willful blindness, o debate crítico em torno da cegueira deliberada e em torno do estudo de caso a ser apresentado por nós, para que, ao final, possamos tecer nossas considerações finais de forma crítica, posicionando-nos acerca do referido tema.

Assim, num primeiro momento, nos itens 2 e 2.1 de nosso estudo, exporemos o caso concreto, extraído do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, e detalharemos o tipo penal do estelionato previdenciário. Em seguida, no item 3, discutiremos sobre alguns princípios constitucionais penais importantes para o nosso trabalho, tais como o da legalidade ou da reserva legal, o da presunção da inocência e o da culpabilidade, bem como destacaremos a analogia como instrumento de integração e interpretação da norma penal. Já no item 4 serão tecidas importantes reflexões sobre os elementos subjetivos da conduta da infração penal que são o dolo e a culpa, elementos esses que farão o contraponto com a cegueira deliberada. No tópico 5 e seus subtópicos 5.1 e 5.2 de nosso estudo, faremos apontamentos sobre a teoria da cegueira deliberada, partindo da demonstração de suas possíveis origens e primeiras aplicações pela jurisprudência brasileira, para que, na sequência, possamos tratar de sua conceituação teórica original e seus desdobramentos no Brasil. Nos itens 5.3 e 5.4, discutiremos sobre a decisão/solução apresentada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região tocante ao nosso estudo de caso e apresentaremos alguns problemas apresentados quando da aplicação da wilfull blindness. Por fim, no item 6, em considerações finais, faremos um breve resumo do que foi discutido, neste trabalho, e teceremos nosso posicionamento crítico sobre a aplicação da teoria da cegueira deliberada ao caso concreto.

  

2 DO ESTUDO DE CASO SOBRE A CEGUEIRA DELIBERADA APLICADA PELO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª EM JULGADO ACERCA DA INFRAÇÃO PENAL DE ESTELIONATO PREVIDENCIÁRIO

 

Apresentaremos, neste item, o caso prático, extraído da jurisprudência paranaense, em que a cegueira deliberada fora aplicada num julgado, em grau de recurso de apelação, pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), para a condenação de um réu pelo cometimento do crime de Estelionato Majorado em face do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), autarquia federal, conforme o disposto do Art. 171, § 3º, do Código Penal.

Tal julgado fora fruto de denúncias apresentadas pelo Ministério Público Federal do Estado do Paraná, em virtude de investigações da conhecida operação denominada “Caduceu”, símbolo da contabilidade, representado por um bastão entrelaçado por duas serpentes e um elmo alado. Segundo consta dos noticiários, por volta do ano de 2006, a Polícia Federal deu cumprimento a 19 mandados de busca e apreensão em escritórios de contabilidade e de advocacia, de sete cidades do Paraná, acusados de fraude na Previdência Social. A "Operação Caduceu" aconteceu em Londrina, Curitiba, Foz do Iguaçu, Paranavaí, Lidianópolis, Ivaiporã e Jardim Alegre. Segundo o Jornal Gazeta do Povo, ao todo, 120 empresas estavam sendo investigadas por terem se envolvido com cerca de 900 vínculos trabalhistas fraudados, causando um prejuízo de mais de R$ 7 milhões. Segundo informações, divulgadas pela Polícia Federal, a quadrilha agia da seguinte forma: pegava o CNPJ de empresas ativas e inativas e registrava um funcionário que estava prestes a se aposentar. Mesmo sem trabalhar, o funcionário entrava com o pedido de aposentadoria junto à Previdência. Esse é, pois, o contexto em que se insere o nosso estudo de caso.

Destarte, para que possamos apresentá-lo de forma detalhada, entendemos ser importante a citação da ementa do julgado, que assim segue:

 

EMENTA: DIREITO PENAL. ESTELIONATO PREVIDENCIÁRIO. ARTIGO 171, § 3º, DO CÓDIGO PENAL. "OPERAÇÃO CADUCEU" RECEBIMENTO INDEVIDO DE APOSENTADORIA POR TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO. MATERIALIDADE, AUTORIA E DOLO CONFIGURADOS. TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA (grifo nosso). TESE DE AUSÊNCIA DE DOLO AFASTADA. IN DUBIO PRO REO INAPLICÁVEL. CULPA OU ERRO DO INSS. INEXISTÊNCIA. ALEGAÇÃO DE INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA AFASTADA. CONDENAÇÃO MANTIDA. CONTINUIDADE DELITIVA. INEXISTÊNCIA. CRIME PERMANENTE. PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA SUBSTITUTIVA. REDUÇÃO. REPARAÇÃO CIVIL DO DANO. 1. A percepção de benefício previdenciário decorrente de fraude perpetrada contra a Previdência Social configura estelionato majorado pelo § 3º do artigo 171 do Código Penal. 2. A materialidade e a autoria estão comprovadas pelos documentos constantes nos autos do Inquérito Policial, sobretudo pelo processo administrativo instaurado pelo INSS, demonstrando o recebimento indevido do benefício previdenciário de aposentadoria por tempo de contribuição pelo réu, mediante a informação ao INSS de vínculos empregatícios inexistentes. 3. As provas constantes nos autos demonstram a consciência, pelo réu, da irregularidade do benefício que lhe foi concedido, mediante a inserção de vínculos empregatícios falsos no CNIS, restando afastada a tese de ausência de dolo. 4. Aplicável ao caso a teoria da cegueira deliberada, segundo a qual o sujeito assume o risco de estar auferindo vantagem ilícita, ao não tomar as precauções devidas. No caso, as circunstâncias fáticas indicavam ao apelante a possibilidade de a aposentadoria estar sendo concedida ilicitamente, porém ele, ao que se vê, optou por não verificar a regularidade de sua concessão. (grifo nosso) 5. Inaplicável o princípio do in dubio pro reo. A simples negativa do dolo, dissociada do contexto probatório, não tem o condão de modificar a sentença condenatória. 6. A alegação de culpa exclusiva do órgão concessor, por não observar autenticidade dos documentos apresentados para concessão de benefício, não merece acolhida, pois o acusado usou de ardil para iludir a autarquia, constante na inserção de vínculos empregatícios falsos, mantendo-a em erro, razão por que não há falar em culpa desta. Ainda, não é dado ao segurado valer-se de eventual "erro" ou falha do órgão concessor para beneficiar-se ilicitamente, causando prejuízo ao ente público. 7. Da mesma forma que incumbe à acusação provar a existência do fato e demonstrar sua autoria, é ônus da defesa, a teor do artigo 156 do Código de Processo Penal, demonstrar a veracidade das teses invocadas em seu favor. 8. Restando a materialidade, a autoria e o dolo demonstrados pela prova dos autos, deve ser mantida a condenação. 9. O estelionato praticado em detrimento do erário público constitui crime permanente em relação ao beneficiário da fraude. Afastado, de ofício, o aumento de pena decorrente da continuidade delitiva, com a consequente redução das penas. 10. A prestação pecuniária substitutiva é fixada de modo a não a tornar excessiva, inviabilizando seu cumprimento, tampouco diminuta a ponto de mostrar-se inócua. 11. Prestação pecuniária reduzida no caso de ofício, de acordo com a condição financeira do réu, e de forma a viabilizar seu pagamento. 12. Afastado o valor mínimo para reparação dos danos, fixado na quantia correspondente à soma dos benefícios indevidamente recebidos pelo réu, uma vez que o apelante recebe atualmente benefício previdenciário por idade, sobre o qual estaria sendo efetuado desconto mensal para reparação dos valores indevidamente auferidos. (TRF4, ACR 5029683-04.2017.4.04.7000, SÉTIMA TURMA, Relatora CLÁUDIA CRISTINA CRISTOFANI, juntado aos autos em 25/04/2019)

 

O caso a ser analisado, sob a ótica da teoria da cegueira deliberada e seus desdobramentos, trata-se de imputação feita pelo Ministério Público Federal em face de um indivíduo, morador na cidade de Londrina, no Estado do Paraná/PR,  que contratou um suposto profissional, na área previdenciária, para orientá-lo a pleitear o benefício previdenciário de aposentadoria. Conforme consta dos autos, o réu entregou-lhe toda a documentação necessária para que este suposto especialista pudesse realizar o pedido do benefício pleiteado. Pelo que consta, o réu não tinha conhecimento acerca da possibilidade ou não da concessão do benefício previdenciário, pois, em casos como estes, demanda certo conhecimento técnico para cálculos de contribuição e de tempo de serviços prestados a empresas, razão pela qual procurou o indivíduo, a fim de que este pudesse intervir no pedido do benefício, pagando-lhe, a título de honorários pelos serviços prestados, a quantia de R$ 3.000,00, o que, em momento algum, consta, nos autos, que teve a intenção de obter o benefício previdenciário de forma fraudulenta. Ademais, o réu disse, nos autos, que os documentos apresentados ao profissional eram todos lícitos e verídicos, porém não sabe quais as medidas ou meios que este profissional tomou para obter a concessão do benefício previdenciário. Assim, o único objetivo do acusado era tão-somente perceber o benefício previdenciário pleiteado, sem intenção de cometer qualquer crime contra a autarquia federal. Portanto, não tinha qualquer conhecimento da suposta falsificação de documentos, pois teria agido de boa-fé, para que lhe fosse concedido o aludido benefício, bem como afirmou ser pessoa leiga, simples e, considerando a sua vida, não haveria como imputar-lhe a vontade de cometer crime. No dia 06.06.2003, o profissional contratado pelo réu, de posse de uma procuração, protocolou o pedido de aposentadoria por tempo de contribuição junto à Agência da Previdência Social localizada em Assis/SP. Para tal intento, o indivíduo utilizou vínculos empregatícios inexistentes e fraudulentos, sem a anuência ou conhecimento do réu. O INSS, desconhecendo tais irregularidades, deferiu a concessão do benefício de aposentadoria entre os períodos de 01.06.2003 a 31.01.2013, ou seja, quase 10 anos, período em que o acusado recebeu seu benefício sem qualquer oposição da autarquia federal.

Após investigações e a denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal, em sede de primeiro grau, o réu foi condenado à pena de dois anos, nove meses e 10 dias de reclusão em regime inicialmente aberto, bem como ao pagamento de multa de 60 dias-multas, na fração de 1/30 do salário-mínimo, pela prática do crime previsto no artigo 171, § 3º, c.c. artigo 71, ambos do Código Penal. A pena privativa de liberdade fora substituída por duas restritivas de direito, consistentes em prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária no valor de R$ 10.000,00. Também foi fixado o valor mínimo para a reparação dos danos, correspondente à soma dos benefícios indevidamente recebidos pelo réu, em R$ 301.239,00.

Inconformado, o réu apelou da decisão ao TRF da 4ª Região, requerendo a absolvição pela falta de provas, sustentando, ademais, a falta de conhecimento sobre a falsificação das informações, a inexistência de provas robustas de inveracidades nos documentos apresentados pelo acusado na concessão de seu benefício previdenciário. Ademais, em suas razões recursais, afirmou que, havendo dúvidas quanto à fraude de concessão do benefício, não se pode atribuir ao réu o dolo de induzir a autarquia federal em erro, razão pela qual deveria ser aplicado o princípio constitucional do in dubio pro reo, previsto no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal. Em caso de dúvida, deve ser em prol do acusado, pois o juízo condenatório deve basear-se em um lastro de certeza. Em defesa, aduziu que, diante da insuficiência de provas pela acusação, não cabe a condenação do denunciado eivada de dúvidas. Ressaltou, ainda, que incumbe à acusação produzir prova robusta a demonstrar com certeza a autoria e o dolo do agente, não bastando apenas indícios. Ressaltou, ademais, que não há falar em reparação de danos, vez que o réu recebia o benefício de boa-fé, não podendo ser responsabilizado por um crime que não cometeu. Assim, apontou a culpa exclusiva do INSS, por não observar os meios e autenticidade dos documentos apresentado para a concessão de benefícios, já que faz isso diariamente, gerando impossibilidade de reparação de danos ou devolução de valores, uma vez que o benefício possui caráter alimentar. O sentenciado, a todo momento, agiu de boa-fé, não tinha qualquer intenção de obter vantagens às custas do INSS, e somente requereu o benefício por meio do profissional contratado para tanto e, com sua concessão, matinha o sustento de sua família.

Ao apelo recursal foi dado parcial provimento para afastar a fixação do valor mínimo para reparação dos danos e para reformar a sentença de ofício, bem como para afastar a continuidade delitiva, reduzindo a pena privativa de liberdade, de multa e o valor da prestação pecuniária substitutiva. Assim, a relatora do processo manteve a condenação do réu em um ano e oito meses de reclusão, em regime inicial aberto, e pagamento de 39 dias-multa, no valor unitário de 1/20 do salário mínimo vigente ao tempo do fato, substituída a pena privativa de liberdade por duas restritivas de direito, consistentes em prestação de serviços à comunidade, pelo mesmo tempo da condenação e prestação pecuniária no valor de cinco salários mínimos vigentes na época do efetivo pagamento. Percebe-se, portanto, que o TRF da 4ª Região apenas afastou a continuidade delitiva e o valor de reparação de danos causados ao INSS, mantendo-se, no mérito, a sentença do juízo de primeira instância. Eis, portanto, o caso.

 

2.1 Da Infração Penal do Estelionato Previdenciário

 

Inicialmente, antes de adentrarmos sobre a análise da cegueira deliberada, faz-se necessário apresentar o tipo penal do estelionato e sua majorante que é o estelionato previdenciário. Isto porque o objeto de nosso trabalho insere-se nesse contexto, ou seja, o Tribunal Regional, por meio de seu juízes, aplicou a Willful Blindness  ao tipo penal em comento, o que veremos, em tópicos posteriores, se foi a mais acertada decisão.

O referido tipo se encontra no Título II, “Dos Crimes Contra o Patrimônio” do Código Penal. Este é, portanto, o bem jurídico tutelado pela norma proibitiva do Art. 171: o legislador pátrio pretendeu, ao inseri-lo do Código Penal, proteger, assim como outros tipos penais, o patrimônio privado e o público.

Para fins de ilustração, exporemos o texto que define o estelionato, bem como sua majorante relacionada ao Estelionato Previdenciário:

 

Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:

 Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis.

[...]

§ 3º - A pena aumenta-se de um terço, se o crime é cometido em detrimento de entidade de direito público ou de instituto de economia popular, assistência social ou beneficência. (grifo nosso)

 

O tipo penal do estelionato trata-se de prática de uma fraude, em que o agente induz a vítima a um engano para que esta, iludida, entregue-lhe, voluntariamente, seu patrimônio ao autor dos fatos. Masson (2017, p. 605) descreve bem a origem da palavra “estelionato”, ao dizer que deriva do latim “stellio”, que significa “camaleão”, ou seja, ao lutar pela sua existência ou sobrevivência, o indivíduo vale-se de meios fraudulentos (disfarces). Assim, as tais fraudes são a forma dissimilada do camaleão para viver.

Quis o legislador, ao inserir o tipo penal do estelionato, tutelar a inviolabilidade do patrimônio, seja público ou privado, sendo certo que o objeto material é qualquer pessoa física ou jurídica ou coisa ilicitamente obtida pelo agente.

Quanto ao núcleo do tipo, “obter”, é necessário esclarecer que é composto pela expressão “obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro”. Destarte, o núcleo “obter”, nesse contexto, significa ter lucro indevido, provocado intencionalmente pelo engano por parte do agente sobre a vítima, que, na ingenuidade ou imbuída de sua torpeza ou ganância, contribui para a finalidade do criminoso sem notar que está sendo ludibriada, bem como sem notar que seu patrimônio está sendo lesado (MASSON, 2017, p. 606).

Já o núcleo “induzir” consiste em persuadir a vítima por meio de criação de uma situação ou narrativa falsa para que acredite. Com relação ao verbo “Manter”, como o próprio nome diz, significa permanecer a vítima em engano/equívoco. Desse modo, o agente obtém a vantagem econômica de forma ilícita conduzindo, induzindo ou mantendo a vítima em engano.

O termo “erro”, no contexto do artigo 171, do Código Penal, consiste na falsa percepção da realidade tida pela vítima que fora enganada, o que a faz, voluntariamente, produzir a manifestação de vontade viciada pelo engano/erro, mas desejada pelo agente do crime, como, por exemplo, dispor de seu patrimônio pessoal e repassá-lo, voluntariamente, ao agente, que de outro modo não o faria (MASSON, 2017, p. 606).

Quanto aos meios empregados fraudulentos para induzir ou manter a vítima em engano, temos o “artifício”, o “ardil” e “qualquer outro meio fraudento”. O “artifício” é denominado pela doutrina de fraude material, pois o agente utiliza de algum instrumento ou objeto físico para enganar a vítima, a fim de que seja induzida a erro e lhe entregue o bem pretendido pelo criminoso. É uma simulação ou dissimulação capaz de induzir ou manter uma pessoa em erro, de modo que esta não tenha uma imediata percepção da falsa aparência material que lhe cause erro. Tal percepção errônea da realidade decorre de um aparato material que dá a ilusão de uma veracidade. Exemplo: “A” veste-se com o uniforme de uma oficina mecânica para que “B” voluntariamente lhe entregue seu automóvel.  Já o “ardil” é chamado pela doutrina de fraude moral, vez que surge de uma conversa enganosa introduzida pelo agente ou por seus comparsas, a fim de ludibriar a sua vítima. Em outras palavras, é uma mentira provida de argumentos e discursos com aparência de verdade, atuando sobre a inteligência ou sentimento da vítima e nesta criando uma percepção errônea da realidade. Exemplo: “A” alega ser especialista em relógios automáticos e convence “B” a lhe entregar seu relógio para limpeza de rotina (MASSON, 2017, p. 607). Quanto ao último, inserido no tipo penal como “qualquer outro meio fraudulento”, trata-se, em verdade, de uma fórmula genérica, aberta, ampla, referindo-se a qualquer outra atitude que não seja o artifício ou o ardil, apto a provocar ou manter alguém em erro, para a obtenção de vantagem ilícita. Masson (2017) nos traz um interessante exemplo que se enquadra nesta fórmula genérica, qual seja: “Tem-se como exemplo o silêncio, como na hipótese em que um comerciante entrega ao cliente troco além do devido, mas este nada fala e nada faz, ficando com o dinheiro para si” (MASSON, 2017, p. 607).

Com relação ao elemento do tipo “vantagem ilícita”, a doutrina nos ensina que se trata de vantagem econômica, pois, como já mencionado, o estelionato é um crime contra o patrimônio. Ademais, trata-se de “ilícita”, porque não está amparada tal vantagem por nenhum direito. Por sua vez, o elemento do tipo “prejuízo alheio” trata-se de um dano patrimonial sofrido pela vítima ludibriada. Assim, importante frisar que, para a configuração do delito de estelionato, não basta apenas a obtenção de vantagem ilícita, exige-se ainda o prejuízo ao ofendido.

O sujeito ativo da referida infração penal pode ser qualquer pessoa, conforme aponta a doutrina pátria, podendo ser tanto o responsável pelo emprego da fraude, como aquela beneficiada pela vantagem ilícita. Já o sujeito passivo do crime pode ser qualquer pessoa, física ou jurídica (de direito público ou de direito privado). Ademais, importante destacar que a vítima deve ser pessoa certa e determinada, pois o tipo penal fala em “prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro” (MASSON, 2017, p. 613).

Com relação à consumação do estelionato, dizemos que é um crime de duplo resultado, vez que depende de dois requisitos, quais sejam: a obtenção da vantagem ilícita e do prejuízo alheio. Inclusive a doutrina aponta que este é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça.

Ademais, por classificação, trata-se de um crime material, pois sua consumação depende da lesão patrimonial e do prejuízo ao ofendido (duplo resultado naturalístico), bem como de um crime instantâneo, pois ocorre em momento determinado, pois não se protrai no tempo (MASSON, 2017, p. 616).

Por fim, abordaremos diretamente o § 3º do Art. 171, que é a espécie de estelionato da qual extrairemos nosso estudo de caso da jurisprudência paranaense, para a análise da aplicação da teoria da cegueira deliberada.  Tal espécie é chamada pela doutrina de “Estelionato Previdenciário/Agravado ou circunstanciado”, tratando-se, em verdade, não de um delito autônomo, mas de uma causa de aumento de pena de um terço se o crime é cometido em detrimento de entidade de direito público ou de instituto de economia popular, assistência social ou beneficência. Como o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) é uma autarquia de direito público, pode ser sujeito passivo do crime em comento, havendo, neste caso, a incidência da causa de aumento de pena da terceira fase da dosimetria da pena. Por essa razão, ao tratarmos, no meio jurídico, desta causa de aumento de pena, popularmente a denominamos de “Estelionato Previdenciário”. Tal aumento na pena, na terceira fase da dosimetria da pena, justifica-se, pois quis o legislador proteger o patrimônio público, quando o estelionato ofende tanto os bens patrimoniais da União, dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, bem como suas autarquias e entidades paraestatais, institutos de economia popular, assistência social ou beneficência. Ademais, fundamenta-se tal majorante, pois, com a lesão ao patrimônio público e ao interesse social, toda a coletividade é prejudicada (MASSON, 2017, p. 655). Insta destacar, no caso do Estelionato Previdenciário, que, em que pese a vítima seja determinada (INSS), os indivíduos ofendidos pela conduta delituosa são inúmeros e indeterminados, atingindo a generalidade de pessoas, pois, ao lesar o dinheiro da autarquia federal, o agente está causado prejuízo a todos os beneficiários do INSS. Contudo, como regra, embora os termos “generalidade” e sujeitos “indeterminados” não se enquadrariam como elementos ínsitos ao delito de Estelionato, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula n.º 24, pacificando tal celeuma, nos seguintes termos: “Aplica-se ao crime de estelionato, em que figure como vítima entidade autárquica de Previdência social, a qualificadora do § 3.º do art. 171 do Código Penal”. 

 

3 DOS ASPECTOS GERAIS ACERCA DE ALGUNS PRINCÍPIOS (CONSTITUCIONAIS) PENAIS E DE INSTRUMENTO DE INTEGRAÇÃO DA NORMA PENAL

 

Antes de aprofundarmo-nos sobre o debate da solução dada pelo TRF da 4ª Região, bem como sobre o conceito e aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada e seus desdobramentos, no caso ora apresentado, devemos apontar que o Direito Penal e Processo Penal pátrios são construídos sobre base principiológica com raízes constitucionais fortes, razão pela qual explicitaremos aqueles mais significativos para o nosso trabalho. Em toda e qualquer análise jurídico-legal de um caso concreto é de suma importância que o operador do Direito a faça sob a égide da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, sob pena de se romper com seus princípios norteadores, fugindo-se às garantias nela impostas.

Ressalta-se, por oportuno, que não esgotaremos o assunto, haja vista o número quase infinito de princípios em nosso ordenamento jurídico, bem assim as centenas de livros que tratam do assunto, razão pela qual pinçamos aqueles que entendemos importantes para o desenvolvimento de nossa tese nesta obra.

Para iniciarmos a nossa reflexão, é preciso entendermos que os princípios são mandamentos centrais de um sistema normativo. Tratam-se de normas jurídicas básicas que traduzem importantes valores constitucionalmente protegidos, funcionando como alicerce de todo o ordenamento jurídico, servindo, ademais, de diretriz para a intepretação e a aplicação das regras integrantes do ordenamento pátrio. Por isso, os princípios são encarregados da mesma função de outras normas jurídicas, que é a de regular e resolver casos concretos.

A ordem jurídica constitucional não é composta apenas por princípios expressos em seu texto legal, mas também por princípios que subsistem de forma latente em seu interior, que são os princípios implícitos. O texto normativo não exaure a norma, sendo possível extrai-la mesmo onde não haja texto (SILVA, 2011, p. 48).  Desse modo, é lícito concluir que os princípios são encontrados por meio da interpretação e concretização judicial das normas constitucionais.

Os princípios implícitos são reconhecidos, expressamente, pela Constituição Federal de 1988, na denominada cláusula de reserva, prevista no artigo 5.º, § 2.º, in verbis: “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tradados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.  Por isso, o trabalho interpretativo tem descoberto vários princípios implícitos na Constituição Federal brasileira, como, por exemplo, os princípios da intervenção mínima, da insignificância, da subsidiariedade, da fragmentariedade e da ofensividade, todos do Direito Penal. O fato de não estarem expressos no texto constitucional não desnatura sua característica de princípio, tampouco sua força normativa, pois todos se encontram ínsitos no ordenamento jurídico pátrio.

Todos os princípios – explícitos ou implícitos – são dotados de relevância para a coerência do conjunto de normas. Assim, diz-se que os princípios devem ser considerados os fios condutores dos diferentes segmentos da Constituição Federal, dando unidade ao sistema normativo (NUCCI, 2015, p. 28). Desse modo, os princípios não afrontam direitos e garantias fundamentais, ao contrário, os harmonizam e os protegem.

Destarte, parte-se da ideia de valorização e supremacia dos princípios constitucionais penais, a qual deve ser enaltecida e lançada como meta para a composição com as demais normas do sistema (NUCCI, 2015, p. 29). Nesse sentido, na esfera penal, é preciso respeitar a primazia dos princípios, pois lida-se com a liberdade individual e, indiretamente, com vários direitos fundamentais (NUCCI, 2015, p. 30).

Os princípios fundamentais em matéria penal constituem verdadeiras garantias do cidadão perante o jus puniendi e estatuem o que a doutrina chama de “Direito Penal mínimo”, dirigido exclusivamente para aqueles fatos sociais que demonstram materialmente a necessidade de uma repressão penal (SILVA, 2011, p. 79).

Adiante, é importante realizarmos apontamentos sobre alguns princípios constitucionais penais, em especial o da legalidade ou da reserva legal, o da presunção da inocência e o da culpabilidade, bem como mister destacarmos a analogia como instrumento de integração e interpretação da norma penal, para que possamos embasar nosso estudo acerca da discussão da Teoria da Cegueira Deliberada aplicada a ao caso concreto.

Torna-se relevante o debate ora em questão, sob a ótica dos princípios que norteiam o ordenamento jurídico, haja vista que compõem um amplo escudo protetor da liberdade individual no Estado Democrático de Direito, a qual deve ser perseguida como primado no Direito, para que o Estado não se torne um instrumento, nas mãos erradas, para o cometimento de arbitrariedades e abusos no âmbito penal.

 Ao cometer uma infração penal, o agente lesa um bem jurídico tutelado pela lei penal, gerando o poder-dever do Estado de puni-lo, associado ao interesse punitivo da vítima e da sociedade. 

Ainda que desejável a intervenção estatal na punição do infrator, é preciso perseguir a liberdade do indivíduo como um bem supremo, portanto, como regra no Estado Democrático de Direito e não exceção. Portanto, é imprescindível que o poder estatal seja limitado (domado) por normas constitucionais e legais. Nesse sentido, é que erige, de forma importante, o princípio da legalidade em sentido estrito (ou da reserva legal), segundo o qual “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, conforme o disposto no Art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988 (CFRB/88). O Código Penal Brasileiro também possui a mesma previsão em seu art. 1º, dispensando maiores comentários. Estão unidos a este princípio outros dois, quais sejam: o da anterioridade e o da taxatividade (NUCCI, 2015, p. 90). Isto significa dizer que um indivíduo só pode cometer uma infração penal se, antes, houver um tipo penal, descrevendo a conduta incriminadora numa norma ou conjunto de normas penais. Do mesmo modo, tal indivíduo só sofrerá uma sanção penal (uma pena), se esta estiver descrita no preceito secundário da norma penal incriminadora. Em outras palavras, somente se pode considerar que determinado indivíduo cometeu um delito (num primeiro momento), se este estiver previsto em lei e, ainda, só poderá sofrer uma pena, se esta também estiver prevista em lei. Aliás, diga-se: não é qualquer norma (decreto, portarias, leis municipais, regimentos, etc.), mas somente aquela lei emanada do Poder Legislativo Federal, dentro de sua esfera de competência, prevista na CRFB/88, em seu artigo 22, inciso I, in verbis: “Compete privativamente à União legislar sobre: I – direito civil, comercial, penal (grifo nosso), processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho”. Por este motivo é que se diz que, em matéria penal, o princípio da estrita legalidade é também chamado de “reserva legal”, já que a lei penal que cria tipos penais deve ser matéria reservada (e de competência) ao Poder Legislativo Federal, no caso, ao Congresso Nacional. A definição da infração penal e de sua pena é reserva de lei, não podendo ser oriunda de normas infralegais, conforme ressaltado acima. É desse modo, então, que o Estado Democrático “joga às claras” com a sociedade, apontando-lhe quais as condutas que devem ser proibidas e merecerem sanção penal, criando figuras delituosas antes de qualquer fato lesivo ocorrer, conferindo, assim, segurança e certa previsibilidade na atuação estatal face a todos os membros da sociedade (NUCCI, 2015, p. 90). Dentre os objetivos do princípio da estrita legalidade ou da reserva legal, destaca-se o de afastar de todos os indivíduos de uma sociedade os abusos e a arbitrariedade Estatais.

Decorre do referido princípio outro, chamado de “anterioridade da lei penal”, segundo o qual exige-se a existência anterior de uma lei penal ao cometimento de um fato delituoso. Para que os indivíduos de uma sociedade (destinatários da lei penal) saibam previamente quais são os ilícitos tutelados pelo ordenamento jurídico pátrio, os quais devem se abster para não os cometer e para que não lhe sejam cominadas penas/sanções penais. Diante desta breve explicação, podemos extrair que o legislador pátrio designado em nossa Constituição Federal de 1988, competente para criar normas incriminadoras, deve, ao mesmo tempo, definir as condutas que devem ser consideradas criminosas (preceito primário), bem como a sansão imposta em caso de descumprimento da norma proibitiva criada (preceito secundário na norma penal). Destarte, atrelada à figura típica incriminadora, descrita do fato proibido, encontra-se enredada a medida da punição em formato de pena privativa de liberdade, restritiva de direitos ou pecuniária (NUCCI, 2015, p. 136). Mas e quando se se tratar de lei incriminadora mais benéfica ao acusado/sentenciado? A nossa Constituição Federal de 1988 deu solução a isso, ao prever, em seu Art. 5º, inciso XL, que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Nesse mesmo sentido, o Código Penal Brasileiro determina, em seu art. 2º, parágrafo único, que “A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”. Neste inciso, estão insculpidos dois princípios de suma importância: o da irretroatividade da lei penal (regra) e o da retroatividade da lei penal, desde que se mais benéfica ao réu (exceção). Isto significa que, caso hoje seja criada uma lei penal incriminadora, esta não poderá atingir fatos ocorridos antes de tal lei entrar em vigor, salvo se esta norma for mais benéfica ao réu. Assim, as leis benéficas:

 

[...] podem ser editadas após o cometimento da infração penal, pois têm aplicabilidade imediata, retrocedendo no tempo para beneficiar o acusado.

Nada mais justo, visto serem garantias ao indivíduo, contra a força do Estado, tanto a legalidade, quanto a anterioridade. O mesmo se diga da retroatividade da lei benéfica. Nesse quadro, vê-se o entrelaçamento dos princípios constitucionais: a anterior previsão de crime, em formato de lei, afiança ao destinatário da norma a distinção entre o que é relevante e o que não é, no universo penal; entretanto, todas as mudanças positivas, sob o ponto de vista individual, alcançam indiciados, réus e condenados, com o objeto de abonar a justa aplicação da lei, sempre atualizada, conforme as necessidades concretas (NUCCI, 2015, p. 137)

 

Ressalta-se, por oportuno, que o princípio da irretroatividade da lei penal, como regra, tem como escopo a garantia estatal do direito adquirido, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito, nos termos do Art. 5º, inciso XXXVI, da CFRB/88. Noutro giro, a retroatividade da lei penal em benefício do réu significa:

 

[...] a possibilidade de conferir efeitos presentes a fatos ocorridos no passado, modificando, se preciso for, situação jurídicas já consolidada, sob a égide de lei diversa. Esta retroação da norma provocadora de inovações no cenário penal, somente pode ocorrer quando auxiliar, proteger e melhorar a situação do réu ou sentenciado (grifo nosso) (NUCCI, 2015, 139).

 

Dessa maneira, pode-se dizer que o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, utilizando-se de uma metáfora, “quebra o muro (quase impenetrável) da coisa julgada”.

Outro princípio caro ao ramo do Direito Penal é o da responsabilidade subjetiva ou da culpabilidade. Segundo esse princípio, não se pode atribuir determinada responsabilidade criminal sem que o agente tenha agido e produzido algum resultado a título de dolo ou culpa. E o Código Penal Brasileiro é taxativo ao afastar a responsabilidade objetiva, em seu art. 19, in verbis: “Pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente.”  Assim, para ser responsabilizado penalmente, a princípio, o agente deve agir, infringindo a norma penal proibitiva, premido de vontade/intenção de produzir determinado resultado incriminador (dolo) ou, ao menos, assumir o risco de produzi-lo, quando tal resultado for previsível (dolo eventual) ou, ainda, o agente, por negligência, imprudência e imperícia, tenha agido e provocado o resultado censurável pela norma penal (culpa). Com isso, não basta que:

 

O agente simplesmente realize um fato, mesmo quando decorrente de sua vontade consciente. Torna-se essencial buscar-se, no seu âmago, o elemento subjetivo, formado por manifestações psíquicas, emocionais, racionais, volitivas, e sentimentais, em perfeito conjunto de inspirações exclusivas do ser humano. Cuida-se de uma expressão espiritual, demonstrativa de particular modo de ser e agir, constitutivo do querer ativo, apto a atingir determinado resultado. A mera realização de uma conduta, geradora de certo evento no campo naturalístico ou de resultado no cenário jurídico, é insuficiente para detectar o intuito humano de delinquir, vale dizer, de contrariar as regras impostas em sociedade (grifo nosso) [...] (NUCCI, 2015, p. 316-317)

 

Em suma, além de outros elementos que constituem a infração penal, um indivíduo só pode ser responsabilizado quando: a) quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo (dolo); ou b) deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia (culpa). Tais requisitos do dolo e da culpa estão insculpidos no art. 18 do Código Penal Brasileiro e serão aprofundados num tópico próprio acerca da teoria do crime.

Nesta senda até aqui traçada, é imprescindível que se busque a denominada intervenção mínima na seara penal, visto ser o Direito Penal a esfera de poder máximo que viabiliza formas enérgicas de sanções coercitivas à pessoa (NUCCI, 2015, p. 216). Destarte, a lei penal não deve ser encarada como a primeira opção para a resolução dos conflitos de interesses contrapostos, caso contrário privilegiar-se-ia a brutalidade, o despotismo de um Estado descontrolado que imporia a reprimenda da restrição da liberdade individual a todos os erros cometidos pelo indivíduo. Embora se viva sob o império da estrita legalidade penal – nullum crimen nulla poena sine lege –, a sua aplicação não pode ser revestida de abuso e exagero, pois choca-se com a liberdade individual, que é o paradigma da sociedade democrática.

A intervenção do Direito Penal é necessária para a proteção à coletividade quando o delito consubstanciar em um injusto mais grave, ou seja, deve ser uma infração que merece a sanção penal. Isso significa que a pena deve ser reservada para os casos em que constitua o único meio de proteção suficiente da ordem social frente aos ataques relevantes (MIRABETE; FABRINI, 2013, p. 104).  Diz-se, com isso, que o Direito Penal é ultima ratio, isto é, a aplicação da lei penal deve ser excepcional, o último recurso de proteção e resolução de conflitos da sociedade, não podendo servir como um instrumento de interesses particulares ou políticos do momento para conter o clamor público exacerbado pela mídia ou, ainda, para servir de instrumento punitivo deliberado pela falta de instrumentos de inteligência, de aparato de profissionais e de métodos nos órgãos de persecução penal. Por isso, entende-se que não se devem incriminar os fatos em que a conduta não implique risco concreto ou lesão a nenhum dos bens jurídicos reconhecidos pela ordem normativa, evitando-se o excesso punitivo, sobretudo com a utilização abusiva da pena privativa de liberdade (MIRABETE; FABRINI, 2013, p. 104).

Já o princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade encontra-se insculpido no artigo 5.º, inciso LVII, da Constituição Federal: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.  Assim, deve-se destacar que o estado natural do ser humano, seguindo-se o princípio da dignidade da pessoa humana, base do Estado Democrático de Direito, é a inocência. O indivíduo nasce inocente, permanecendo nesse estado por toda a sua vida, salvo quando comete uma infração penal e o Estado consiga promover a condenação criminal, seguindo a estrita legalidade. A doutrina afirma que o estado de inocência é indisponível e irrenunciável, constituindo parte integrante da natureza humana. Por isso, se presume a inocência, ou seja, supõe, de antemão, que qualquer indivíduo indiciado ou réu é “não culpado”. Em outras palavras, a inocência é regra e a culpa é exceção. Assim, cabe ao Estado provar a culpa do indivíduo (NUCCI, 2015, p. 333-334). Caso contrário, em caso de dúvida razoável acerca do cometimento de uma infração penal pelo réu ou indiciado, há de se prevalecer o estado de inocência, consagrando-se o brocardo jurídico importante, chamado in dubio pro reo – na dúvida, absolva-se o réu.

Tocante ao instrumento de integração e interpretação da norma penal insculpido na analogia, é importante pontuarmos algumas reflexões que se entrelaçam aos princípios constitucionais penais acima estudados. Assim, temos que o ato de integrar o sistema normativo significa completá-lo ou preenchê-lo, de modo a se tornar coerente e satisfatório, ainda que que o sistema normativo pretenda ou busque ser uno, perfeito e inteiro, capaz de solucionar todo e qualquer conflito (NUCCI, 2015, p. 102). Ocorre que, em vários casos, tal inteireza ou perfeição não se concretiza, surgindo, desse modo, lacunas nos casos concretos para os quais não existem uma norma previamente criada e em vigência. Com isso, tal lacuna é preenchida com o uso da analogia, valendo-se de norma correlata, aplicável a situação similar, integrando o sistema e todo e qualquer caso concreto poderá ser resolvido dentro dos limites legais (NUCCI, 2015, p. 102). Conforme bem pontuamos, em razão do princípio da estrita legalidade/reserva legal, no âmbito penal, o emprego da analogia é mais restrito e complexo, vez que o Direito Penal é regido pela lei em sentido estrito, não se podendo, via de regra, a elementos correspondentes. Assim, em nosso ordenamento jurídico, é admitido o uso da analogia em favor do réu – in bonam partem - já que prevalece seus interesses (lembrando que sempre o Estado Democrático de Direito deve ter como escopo a liberdade e a inocência do réu). Porém não é possível aceitar a analogia em prejuízo do acusado – in malam partem. Isso ocorre, também, porque existe a finalidade dos direitos e garantias fundamentais em proteger o indivíduo contra eventuais abusos e excessos do Estado.

 

4 DAS REFLEXÕES ACERCA DOS ELEMENTOS SUBJETIVOS DA CONDUTA NA INFRAÇÃO PENAL: o Dolo e a Culpa

 

Prima facie, adiantemos que, neste tópico, não esgotaremos todos os institutos e/ou elementos que compõem a infração penal, vez que se trata de um terreno extremamente fértil e poroso, composto de várias teorias e posicionamentos doutrinários. Ademais, mister destacar que, ante a (de)limitação deste trabalho, fizemos alguns recortes e pinçamos aquilo que entendemos necessário para a compreensão e discussão da conceituação e da aplicação da cegueira deliberada em nosso estudo de caso. Assim, antes de debatermos e esmiuçarmos a cegueira deliberada, demonstraremos os elementos subjetivos do dolo e da culpa da conduta que compõe o delito de forma bem didática e concisa, vez que é, em seu bojo, que se instala a discussão acerca da problemática aplicação e transplante da cegueira deliberada pela jurisprudência brasileira.

O critério analítico de crime aponta quais os elementos que compõe a estrutura do crime. Nesse sentido, há diversas correntes que entendem que o crime possui quatro elementos, como o fato típico, a ilicitude, a culpabilidade e a punibilidade (conceito quadripartido do crime). Porém, como bem aponta Masson (2017, p. 203), “Essa posição quadripartida é claramente minoritária e deve ser afastada, pois a punibilidade não é elemento do crime, mas consequência da sua prática [...]”. Portanto, o crime existe independentemente da punibilidade. A doutrina aponta para o conceito tripartido do crime, tendo este como elementos estruturantes o fato típico, a ilicitude e a culpabilidade. A tripartição do crime, segundo a doutrina pátria, foi definida por Hans Welzel, criador do finalismo penal. Segundo este autor, a culpabilidade acrescenta ao de ação antijurídica – tratando-se de uma ação dolosa ou não dolosa – um novo elemento, que a transforme em delito (MASSON, 2017, p. 203). Importa, neste trabalho, dizer que adotamos a teoria de Welzel e, por tal motivo, entendemos que o dolo e a culpa devem compor o fato típico dentro do elemento da conduta.

Para o finalismo, criado por Hanz Welzel, a conduta é um comportamento humano, só que consciente e voluntário, dirigido a um fim, por isso, o seu nome de “finalista”, vez que leva em consideração a finalidade do agente. Assim, o dolo e a culpa, que pela teoria clássica estariam na culpabilidade, foram realocados para o interior da conduta. (MASSON, 2017, p. 247).

O primeiro elemento subjetivo da conduta a ser analisado é o dolo, o qual consiste num elemento psicológico humano e do tipo penal, nele implícito, consistente na vontade e consciência de se realizar os elementos do tipo penal incriminador.  Para entendermos o dolo, mister abordarmos as três teorias acerca deste instituto, quais sejam: teoria da representação, teoria da vontade e a teoria do assentimento.

Por teoria da representação do dolo, entende-se que, para que haja a sua configuração, basta a previsão do resultado, não se preocupando com a vontade do agente, já que não interessa, para essa teoria, se o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo. Em outras palavras, basta que o agente tenha antevisto o resultado. Por esta razão, reside a crítica de que tal teoria deve ser afastada, pois ela confunde o dolo com a culpa consciente (MASSON, 2017, p. 301).

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Já a teoria da vontade consiste na exigência da previsão do resultado e da vontade de produzir o resultado pelo agente. A terceira teoria diz respeito ao assentimento. Segundo tal teoria, complementar a teoria da vontade, haverá dolo quando o agente quis produzir o resultado, bem como assumiu o risco de produzi-lo. Desse modo, percebe-se que o nosso Código Penal adotou tanto a teoria da vontade, quanto a teoria do assentimento, conforme se verifica em seu Art. 18, in verbis: Diz-se o crime:  I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo (grifo nosso).

Como se viu, o dolo é composto de dois elementos: a consciência ou elemento cognitivo/intelectual e a vontade ou elemento volitivo. Por consciência ou elemento cognitivo, entendemos que traduz o conhecimento dos elementos dos elementos objetivos do tipo penal (exemplo: matar alguém) e por elemento volitivo ou vontade é o desejo de realizar a conduta típico.  E não é só. Vamos além:

 

O elemento cognitivo consiste no efetivo conhecimento de que o resultado poderá ocorrer, isto é, o efetivo conhecimento dos elementos integrantes do tipo penal objetivo. A mera possibilidade de conhecimento, o chamado “conhecimento potencial”, não basta para caracterizar o elemento cognitivo do dolo (grifo nosso). No elemento volitivo, por seu turno, o agente quer a produção do resultado de forma direta – dolo direito – ou admite a possibilidade de que o resulta sobrevenha – dolo eventual (STJ – AgRg no Resp 1.043.279/PR. Ministra Relatora: Jane Silva, 6ª Turma, julgado em 14.10.2008).

 

Quanto às espécies de dolo, elencadas pela doutrina, temos, em primeiro lugar, o dolo direito, também denominado de determinado, intencional, imediato ou incondicionado, é aquele em que o agente dirige sua conduta querendo/desejando um determinado resultado. Já o dolo indireto consiste no agente não ter vontade dirigida a um resultado determinado e, por tal, a doutrina o subdivide em duas espécies: dolo indireto alternativo e dolo indireto eventual. Expliquemos melhor.

No dolo indireto alternativo tem o agente a consciência e vontade de praticar o resultado, porém, deseja um ou outro resultado, não importa qual seja. Clássico exemplo é do indivíduo “A” que quer matar ou lesionar seu desafeto “B” por golpes de faca. Estará caracterizado o dolo indireto alternativo se o agente se contentar com qualquer um dos dois resultados: a morte ou a lesão corporal. No caso em apresso, o agente sempre responderá pelo resultado mais grave, em virtude da teoria da vontade, já que se teve vontade de praticar também um crime mais grave (no caso a morte), por ele responderá, ainda que na forma tentada, segundo a doutrina.

Já o dolo indireto eventual consiste no agente não querer o resultado previsto por ele, mas assume o risco de produzi-lo. E por ele responderá, em virtude de o Código Penal adotar a teoria do assentimento em seu art. 18, I. Assim, o agente, embora não tenha a intenção de causar determinado resultado criminoso, ele não se importa ou, para ele, não faz diferença, caso venha ocorrer tal resultado, assumindo um risco previsto e previsível. Para aferição se o que houve foi dolo direto ou indireto eventual, segundo a doutrina, pode-se realizar a formulação de um princípio criada por Reinhart Frank, chamado de “teoria positiva do conhecimento”: haverá dolo eventual quando o agente diz a si mesmo: “seja assim ou de outra maneira, suceda isto ou aquilo, em qualquer caso agirei”, revelando sua indiferença em relação ao resultado produzido (MASSON, 2017, p. 305). No caso do dolo eventual, parte da doutrina tece algumas críticas, apontando ser um instituto inócuo, já que para prová-lo teria de entrar na mente do autor dos fatos. Contudo, para outra parte da corrente doutrinária, tal alegação não procede, vez que o instituto do dolo não se encontra limitada no psiquismo humano, mas, ao contrário, nas circunstâncias do caso concreto, como, por exemplo, meios empregados, situações precedentes ao delito, comportamento do agente após o cometimento da infração penal, etc. Como bem pondera na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: “O dolo eventual, na prática, não é extraído da mente do autor, mas, isto sim, das circunstâncias. Nele, não se exige que o resultado seja aceito como tal, que seria adequado ao dolo direto, mas, isto sim, que a aceitação se mostre no plano do possível, provável” (STJ - Resp 247.263/MG, Ministro Relator: Felix Fischer, 5ª Turma, julgado em 05.04.2001).

A doutrina aponta para outras espécies de dolo, como, por exemplo o dolus bonus e dolus malus. Tal divisão relaciona-se aos motivos do crime, podendo aumentar a pena, como no caso do motivo torpe, ou diminui-la, como se no delito praticado por relevante valor social ou moral.

Ademais, existem o dolo de propósito e o dolo de ímpeto/repentino. O primeiro ocorre quando advém de uma reflexão do agente antes da prática criminosa, como ocorre nos crimes premeditados. O segundo, ao contrário, é caracterizado por um agir movido por violenta paixão ou excesso de ânimo, fruto de um pensar quase instantâneo, não havendo intervalo entre a cogitação do crime e a sua execução. Tal espécie de dolo é comumente mencionada pela doutrina nas práticas de crimes passionais.

Há outra classificação que merece ser citada a título de esclarecimento: dolo genérico e dolo específico. Tal classificação, segundo consta da doutrina pátria, possuía relevo quando havia maior debate entre a teoria clássica e a finalista do crime. Destarte, dolo genérico era a simples vontade do agente na prática de uma conduta, sem qualquer finalidade específica. Já, para a configuração do dolo específico, era necessária uma finalidade específica, como o próprio nome traduz. Masson (2017, p. 308) traz o exemplo da injúria. Para que o agente incorra nesta infração penal não basta a atribuição à vítima de qualidades negativas, mas é necessário que tal conduta tenha a finalidade específica de macular a honra subjetiva da pessoa ofendida.

Existe, ainda, o chamado dolo presumido ou dolo in re ipsa, que seria uma espécie de responsabilização objetiva do agente, não havendo necessidade a comprovação de que o agente quis ou assumiu a produção de um resultado delituoso. Em nosso ordenamento jurídico não pode ser admitida tal espécie de dolo.

A doutrina traz, ademais, outras duas importantes classificações de dolo, a saber: dolo de dano e dolo de perigo. O dolo de dano, também chamado de lesão, ocorre quando o agente quer ou assumiu o risco de produzir uma lesão a um bem jurídico tutelado, exigido pela prática de um crime de dano, como exemplo, a lesão corporal. Nesse caso, o agente ao agir conscientemente e com vontade de praticar o resultado da lesão corporal, incorrerá neste tipo de dolo de dano e, possivelmente, no crime do Art. 129 do Código Penal. O dolo de perigo, ao contrário, para que ele ocorra, basta o agente querer ou assumir o risco de apenas expor a perigo de lesão um bem jurídico tutelado. Exemplo: no delito de perigo de contágio venéreo, previsto no Art. 130, do Código Penal, basta que o autor dos fatos queria expor alguém, por meio de relações sexuais ou de ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber estar contaminado. (MASSON, 2017, p. 308-309). Nota-se, nesse caso, que o dolo de perigo contém contornos do dolo eventual, já que, pela conduta descrita do tipo penal do Art. 130, ao que parece, o agente teria assumido o risco de produzir um resultado, basta atermo-nos nos elementos do tipo penal em comento: “Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado”.  Assim, de maneira bem clara, se o autor sabe que está contaminado, por exemplo, pelo vírus HIV, mas não se importa com o resultado (se a virtual vítima contrairá ou não o vírus), assumiu, de certa forma, o risco de produzir um resultado.

A doutrina ainda nos aponta para o dolo de primeiro e de segundo graus. O dolo de primeiro grau é definido quando o agente conscientemente dirige a sua vontade de produzir um único resultado e de atingir um único bem jurídico tutelado. Como exemplo, podemos citar o assassino de aluguel que é contratado para matar “C” e, mediante tiros certeiros de arma de fogo, acaba por dar cabo a sua vida. O dolo de segundo grau, por sua vez, também chamado de “consequências necessárias”, ocorre quando a vontade do agente é dirigida a provocar determinado resultado, pouco se importando se, por meio de sua ação, provoque outros resultados em outros indivíduos. Seria o que se chama de efeitos colaterais. (MASSON, 2017, p. 309). Podemos citar, como exemplo, o indivíduo “A” quer matar seu desafeto “B”, e, para isso, sabendo que “B” viajará de avião a São Paulo, “A” implanta uma bomba no assento em que seu desafeto sentará. Durante o voo a bomba explode matando, além de “B”, todos os demais passageiros e tripulantes da aeronave. Assim, mesmo não querendo atingir as outras vítimas, ou não desejando os efeitos colaterais de imediato, mas certamente ocorrerá, caso se concretize o resultado pretendido.

Temos também, no âmbito doutrinário, o chamado dolo geral/por erro sucessivo ou dolus generalis ocorre quando o indivíduo acredita ter produzido o resultado desejado, pratica uma nova conduta com finalidade diversa, porém, constata-se que foi esta nova conduta que produziu de fato o resultado almejado. Para o Direito Penal, em tese, é irrelevante a natureza acidental, já que o que importa é que o agente queria o resultado e o alcançou ainda que sob nova conduta. O exemplo típico é o de “A” que quer matar “B”, seu desafeto, sobre uma ponte. Ao atirar, pensando que “B” estava morto, joga-o da ponte, com o propósito de ocultar o cadáver. Contudo, dias depois, a polícia encontra o cadáver e constata-se que a causa mortis foi de afogamento ou asfixia e não em virtude dos tiros da arma de fogo. O autor deve responder pelo homicídio consumado, pois houve a somatória de todos os elementos que compõe o crime: fato típico, conduta dolosa, nexo de causalidade, consciência da ilicitude, antijuridicidade e culpabilidade. Talvez a discussão em relação a essa espécie de dolo se daria no emprego ou não de alguma qualificadora (emboscada, motivo torpe, etc.). Para uma corrente doutrinária poderia haver, sim, a ocorrência de alguma qualificadora se ficar comprovada que o agente a utilizou para consumar seu intento (como exemplo, a emboscada). Já para outra corrente, não se aplicaria qualificadora alguma, já que se deve levar em consideração o meio que levou à consumação do delito, que não era o meio (no caso a asfixia ou afogamento) desejado pelo agente.

Por fim, mas não sem esgotarmos o assunto, temos três espécies de dolo: antecedente, atual e subsequente. O dolo antecedente existe desde o início da execução do crime. O Dolo atual ou concomitante é o dolo, no qual persiste durante todo o desenrolar dos atos executórios da conduta delitiva. Já o dolo subsequente ou sucessivo consiste no agente ter a intenção de provocar o resultado criminoso depois de ter iniciado uma ação de boa-fé. Em outras palavras, o agente, no início, age conforme o ordenamento jurídico, de boa-fé, mas, depois de um certo tempo, dentro da cadeia sucessória de eventos, passa a agir de forma ilícita, praticando um crime.  Masson (2017), explica a diferença entre o dolo antecedente e o subsequente da seguinte forma:

 

A diferença entre o dolo antecedente e o dolo subsequente é relevante para a distinção dos crimes de apropriação indébita (CP, art. 168) e estelionato (CP, art. 171). Na apropriação indébita, o agente comporta-se como proprietário de uma coisa da qual tinha posse ou detenção. Recebeu o bem licitamente, de boa-fé, mas posteriormente surge o dolo e ele não mais restitui a coisa, como se seu dono fosse. O dolo é subsequente. Exemplo: “A” vai a uma locadora da qual é filiado e toma emprestado um DVD, de forma correta. Após assistir ao filme, do qual gosta muito, e aproveitando-se que está se mudando de país, decide ficar com o bem para si, e não mais o devolve, dolosamente. Já no estelionato o agente desde o início tem a intenção de obter ilicitamente para si o bem, utilizando-se de meio fraudulento para induzir a vítima a erro, alcançando vantagem pessoal em prejuízo alheio. O dolo é inicial. Exemplo: “B” via à mesma locadora, da qual não é sócio. Apresenta documentos falsos e cria uma ficha para a locação. Pega um DVD, leva-o embora e não mais retorna para devolvê-lo. (MASSON,2017, p. 310-311).

 

É importante lembrarmos, ademais, que, em nosso Código Penal, na parte geral, prevê-se que o dolo é presumido no tipo penal, enquanto a culpa deve ser expressa. Em outras palavras, quando o legislador quer que o autor de um suposto delito seja punido a título de culpa, ele o diz expressamente no tipo penal, enquanto o dolo já é presumível, dispensando qualquer expressão no referido tipo penal. É o que se extrai do Art. 18, inciso II, Parágrafo Único, do Código Penal: “Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente”. Isso significa que, em regra, pune-se o crime a título de dolo, exceto de vier expressa a culpa na lei.

Adiante, tocante à culpa, outro elemento que compõe a conduta típica, exporemos os seus elementos, as suas modalidades e, por fim, traremos à baila as espécies de culpa. Antes, porém, trouxemos o conceito de culpa presente no próprio Código Penal em seu Art. 18, inciso II, in verbis: “Diz-se o crime [...] II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia”. Ante concisa definição, trouxemos uma que achamos mais completa e que será analisada em seus detalhes, senão vejamos:

 

Crime culposo é o que se verifica quando o agente, deixando de observar o dever objetivo de cuidado, por imprudência, negligência ou imperícia, realiza voluntariamente uma conduta que produz resultado naturalístico, não previsto nem querido, mas objetivamente previsível, e excepcionalmente previsto e querido, que podia, com a devida atenção, ter evitado (MASSON, 2017, p. 317).

 

A doutrina aponta que a culpa possui ao menos sete elementos: a) conduta voluntária; b) violação do dever objetivo de cuidado; c) resultado naturalístico involuntário; d) nexo causal; e) tipicidade; f) previsibilidade objetiva; e g) ausência de previsão.

No crime culposo, a conduta do agente é apenas uma conduta perigosa aceita e por ele desejada, razão pela qual é denominada de “voluntária”, isto é, querido por ele. Detalhe: o resultado desta conduta não faz parte dos elementos da culpa, mas é parte de análise do dolo, conforme já verificamos em tópicos anteriores. Ademais, o delito culposo pode ser praticado tanto na sua modalidade comissiva (por uma ação) ou omissiva (ausência de ação).

Violar o dever objetivo de cuidado significa que o autor de um delito culposo descumpriu, sem intenção, um comportamento imposto pelo ordenamento jurídico a todos os indivíduos de uma sociedade, a fim de que haja uma harmonia no convívio social. Assim, denota-se que, para viver em sociedade, o homem não pode fazer tudo o que bem entende, pois o ordenamento jurídico lhe retira algumas faculdades e impõe deveres. Ao descumpri-los, por injustificado “descuido”, poderá ser incurso num ilícito penal do tipo culposo. É justamente desse “descuido”, dito de forma atécnica e genérica, que emergem as seguintes modalidades de culpa: imprudência, negligência e imperícia. É por meio delas que o crime culposo se manifesta.

A imprudência consiste no agir do autor de forma descuidada, sem observar as cautelas necessárias para realizar alguma ação. A doutrina a chama de “forma positiva da culpa ou in agendo, pois ela ocorre por meio de uma ação, um fazer de maneira irrefletida por um indivíduo.

A negligência, ao contrário, é o não fazer algo quando a lei determina que se faça. É se omitir, a inação, razão pela qual a doutrina a denomina de “modalidade negativa da culpa ou in omittendo. Ocorre a negligência antes do início de uma conduta. Exemplo: indivíduo “A” deixa a arma de fogo municiada em local acessível a criança, que dela se apodera, vindo a matar alguém. Neste caso, tal indivíduo foi negligente, pois, ante a sua omissão prévia, ao não guardar a arma de fogo em local seguro, uma criança matou alguém, o que faz do indivíduo “A” responsável pelo homicídio culposo, pela cristalina negligência (MASSON, 2017, p. 319).

Já a imperícia, também chamada de “culpa profissional”, somente pode ser praticada no exercício de arte, profissão ou ofício, ou seja, sempre ocorre no âmbito do desempenho de uma atividade ou função em que o autor dos fatos não possui o necessário conhecimento prático ou teórico para fazê-la de forma segura e eficaz (MASSON, 2017, p. 319).

O resultado naturalístico – mudança do mundo exterior em virtude da conduta delituosa provocada pelo agente – é necessariamente involuntário, salvo na culpa imprópria.

Tocante à previsibilidade, a doutrina usa o termo “homem médio” (muitas vezes questionado pela doutrina em virtude de sua imprecisão), o qual se situa como uma pessoa “normal”, nem ousado demais, tampouco desleixado em relação às suas atitudes no meio social. Assim, para se aferir a previsibilidade do resultado naturalístico, a doutrina pátria convencionou que se deve usar como modelo o “homem médio” (homo medius). Desse modo, podemos conceituar a previsibilidade, na culpa, quando este modelo de homem (ideal), mediante um juízo de valor, nas condições em que se encontrava, teria antevisto ou previsto o resultado (MASSON, 2017, p.322).  Destarte, previsível é o fato possível em que um indivíduo normal pode antever o seu resultado. Não se trata de mera adivinhação mística. Ao contrário, em virtude de sua conduta e de elementos circunstanciais, este homo medius pode tirar conclusões seguras de que o produto (resultado) desta conduta será A ou B. E não só:

 

[...] por ser culpa o elemento normativo do tipo penal, o magistrado deve valorar a situação, inserindo hipoteticamente o homem médio no lugar do agente no caso concreto. Se concluir que o resultado era previsível àquele, estará configurada a previsibilidade a este (MASSON, 2017, p. 323).

 

 

Assim, tal previsibilidade é chamada de objetiva, por considerar o caso concreto e ter o padrão acima para sua aferição. Não há, portanto, para se analisar a previsibilidade nos delitos culposos, a submissão do julgador aos aspectos subjetivos do autor do fato, como dotes intelectuais, sociais, econômicos e culturais. Adiante, se for adotada a previsibilidade subjetiva, haveria impunidade, vez que tratar-se-ia de um aspecto interno do homem, o que jamais poderia ser provada se o agente poderia prever ou não o resultado de sua conduta. Por isso, a doutrina adotou o conceito de previsibilidade objetiva, analisada por elementos externos à mente humana, tendo como parâmetros o homem médio e perquirição pelo julgador – inclusive colocando-se no seu lugar – se, em tal caso, hipoteticamente, no caso concreto, o determinado resultado naturalístico seria previsível. Em outras palavras, para se constatar a previsibilidade, desprezam-se as condições subjetivas do agente, pois o que vale são as circunstâncias do fato, tendo como parâmetro o homem médio – leia-se: diligente.

Ao tratarmos das espécies de culpa, demonstraremos algumas formas de culpa existentes e trabalhadas pela doutrina pátria, a qual traça, como elemento diferenciador de uma e de outra, a previsão do agente no tocante ao resultado naturalístico produzido pela sua conduta. Vejamos.

Existem a culpa inconsciente e a culpa consciente. Na primeira, o agente não prevê o resultado objetivamente previsível, dentro da perspectiva do homem médio, conforme abordamos no tópico anterior. Na segunda, ocorre, quando o agente prevê o resultado previsível, mas, mesmo assim, realiza a conduta, frise-se, acreditando piamente que ele não ocorrerá, normalmente, por crer que é capaz de evitá-lo. A culpa consciente possui proximidades com o dolo eventual, mas com ele não se confunde.  Enquanto na culpa consciente o agente não quer produzir o resultado, nem assume o resultado de produzi-lo, por entender sinceramente que é capaz de evitá-lo, no dolo eventual, o agente, além de prever o resultado, como também aceita a possibilidade de produzi-lo, agindo com indiferença e, assim, assumindo o risco previsto e consentido deliberadamente (MASSON, 2017, p. 324).

Há, ainda, as espécies de culpa própria e de culpa imprópria. Entende-se por culpa própria é aquela em que o agente não quer o resultado, nem assume o risco de produzi-lo. É a culpa propriamente dita. A culpa imprópria, por sua vez, também chamada de “culpa por extensão”/ “por equiparação” ou “por assimilação”, consiste na agente que prevê o resultado, deseja a produção do resultado e o realiza, porém, a sua conduta está eivada por erro inescusável (que poderia ser evitado) quanto à ilicitude do fato. Como o agente age em erro inescusável, isto é, poderia ele ter evitado pelo emprego de prudência inerente ao dito “homem médio”, responde a título de culpa. Nesse caso, é importante frisar que:

 

Cuida-se, em verdade, de dolo, eis que o agente quer a produção do resultado. Por motivos de política criminal, no entanto, o Código Penal aplica a um crime doloso a punição correspondente a um crime culposo. O erro quanto à ilicitude do fato, embora inescusável, proporciona esse tratamento diferenciado (MASSON, 2017, p. 326).

 

 

Já a culpa mediata ou indireta é uma espécie de culpa que ocorre quando o agente produz o resultado naturalístico, culposamente, de forma indireta. Como exemplo, podemos citar o da vítima que acabara de ser torturada no interior do veículo parado no acostamento de uma via pública. Quando consegue fugir, tal vítima, ao atravessar a pista, foi atropelada e morta. Assim, o agente que a torturou responde, além do crime de tortura (dolosa), pelo resultado morte, provocado indiretamente por sua atuação culposa, pois era previsível ao agente a fuga da vítima em direção à via pública, vez que o carro daquele estava no acostamento (MASSON, 2017, p. 326-327). A doutrina também elenca outra espécie de culpa, chamada de culpa presumida ou culpa in re ipsa. Trata-se de verdadeira responsabilidade objetiva do agente, que existiu antes da entrada em vigor do Código Penal de 1940.

Insta destacar que, tocante ao estudo dessas espécies de culpa, em nosso ordenamento jurídico, não é admitida a compensação de culpas. Assim, se o indivíduo “A” ultrapassou o sinal vermelho com seu carro, colidindo-o com o automóvel de “B”, o qual estava na contramão, o que resultou lesões corporais culposas em ambos, cada um dos indivíduos responderá pelo resultado a que deu causa (MASSON, 2017, p. 329). Noutro giro, o Direito Penal pátrio admite a culpa exclusiva da vítima, o que exclui a culpa do agente.

Adiante, no estudo da culpa, a doutrina pátria nos ensina que pode haver a concorrência de culpa, quando duas ou mais pessoas contribuem, de forma culposa, para a realização do resultado naturalístico.  Assim, todos os envolvidos que atuaram de forma culposa responderão pelo resultado produzido, conforme o disposto no Art. 13, do Código Penal, in verbis: “o resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa”.

 

 5 A TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA E SUA APLICAÇÃO AO TIPO PENAL DO ESTELIONATO PREVIDENCIÁRIO

 

Antes de abordamos as possíveis origens, as aplicações aos casos concretos,  os conceitos e os elementos que compõem a willful blindness, ou  teoria da cegueira deliberada, também denominada de ostrich instructions ou doutrina da evitação da consciência (Conscious Avoidance Doctrine), é importante destacarmos que tal teoria tem ganhado terreno, nos últimos anos, em diversos julgados do País, principalmente, nos julgamentos de crimes de lavagem de capitais, bem como alimentou alguns pesquisadores a buscarem entendê-la fora do Brasil, razão pela qual nos chamou a atenção para estudá-la, sendo certo que, ao final deste tópico do trabalho, apontaremos críticas construtivas, posicionando-nos acerca de sua aplicação em um caso concreto brasileiro, para que possamos contribuir para os futuros estudos deste instituto. Para tal intento, valer-nos-emos, sobretudo, dos livros publicados por alguns pesquisadores e por nós encontrados, vez que se tratam de obras fruto de teses de doutoramento, o que denota maior rigor científico, dando maior credibilidade e aprofundamento em nosso trabalho.

 

5.1 Da Willful Blindness ou Teoria da Cegueira Deliberada: suas (possíveis) Origens e suas Primeiras Aplicações pela Jurisprudência Brasileira

 

Após descrevermos os contornos da infração penal do Estelionato Previdenciário, o qual, junto dos elementos subjetivos do dolo e da culpa, será objeto para a análise da aplicação da teoria da cegueira deliberada, iniciaremos este tópico, afirmando que, ainda que de forma não pacífica pelos doutrinadores na área do Direito Penal brasileiro, o caso R. v Sleep, em 1861, na Inglaterra, foi um dos primeiros casos de aplicação da willful blindness.  Trata-se do réu William Sleep, acusado de portar parafusos de cobre para uso naval, marcados com a seta larga, símbolo utilizado pelo Conselho de Equipamento Militar do Reino Unido, para indicar a propriedade de tais objetos das Forças Armadas. Segundo consta, Sleep era comerciante de metais e entregou ao capitão de um navio um barril para ser transportado a Helston, na Cornualha. Contudo, antes de o navio zarpar, dois oficiais da polícia do porto apreenderam o barril, nele encontrando 150 parafusos de cobre, sendo que 23 deles estavam marcados com a dita seta larga, ou seja, indicando que eram de propriedade das Forças Armadas. O réu Sleep alegou que não sabia que as peças estavam marcadas, embora tivesse reconhecido ter embalado todas pessoalmente, uma a uma, para evitar que os parafusos batessem uns nos outros e abrissem a tampa do barril, e também alegou não saber de quem havia comprado os parafusos. Assim, o réu foi condenado pelo júri, pois “[...] se entendeu que estava portando cobre marcado com a seta larga, e que, embora o júri tenha entendido não haver provas suficientes para concluir que ele sabia que alguma parte daquele cobre estava marcada, ele tinha meios razoáveis de saber das marcas” (grifo nosso). (LUCCHESI, 2018, p. 86). Sleep então recorreu à Corte, que reformou a decisão do júri, absolvendo-o, pois entenderam que Sleep não sabia que as peças de cobre estavam marcadas, não havendo conhecimento presumido por parte do réu (grifo nosso). E, sendo assim, a lei incriminadora, aplicada ao presente caso, exigia o elemento subjetivo do dolo ou, também chamado de mens rea, para a configuração do crime imputado. Mas o que deu relevo à cegueira deliberada, ainda que não tratada por essa expressão, e estimulou a sua aplicação a diversos casos, na Inglaterra, foram as considerações de dois juízes da Corte que divergiram da maioria, pois

 

[...] os juízes Crompton e Wiles consideraram que a decisão da Corte não se aplicaria aos casos em que os olhos do acusado estivessem voluntariosa e deliberadamente fechados à verdade (grifo nosso). Esses dois votos, sem qualquer impacto sobre a decisão proferida pela Corte, são considerados a origem das discussões sobre a cegueira deliberada na Inglaterra (LUCCHESI, 2018, p. 88).

 

Surge, então, a ideia da “cegueira deliberada” (ainda que de forma embrionária), pois o autor do fato fecha os seus olhos para um fato evidente ou de fácil conhecimento, de forma deliberada/voluntária/intencional, evitando, assim, investigar situações para também evitar descobrir que fatos (ilícitos ou não) que ele prefere não saber. Ainda que a teoria da cegueira deliberada não tenha sido amplamente discutida na referida decisão ou sequer tenha sido denominada como “teoria da cegueira deliberada” pelos julgadores e doutrinadores da época, entende-se que o fato em comento seria um dos primeiros a abordar os contornos iniciais desta teoria, mesmo sem qualquer rigor científico-doutrinário.

Já, nos Estados Unidos da América, Lucchesi (2018 p. 90) aponta, como possível origem da teoria da cegueira deliberada, o caso Spurr v. United States, julgado pela Suprema Corte Americana. Trata-se de uma acusação criminal em face de Marcus Antonius Spurr, presidente do Commercial National Bank of Nashville, do Estado do Tenessee, por certificar cheques sem fundos emitidos por Dobbins e Dazey, que eram comerciantes e exportadores de algodão, bem como correntistas e clientes do referido banco. No sistema financeiro americano, os bancos certificam cheques para atestar que possuem estes fundos suficientes para serem aceitos no comércio, como se fossem os cheques administrativos no Brasil. Com isso, o Banco garante a liquidez do emitente do cheque e assegura sua eventual insuficiência de recursos financeiros, responsabilizando-se a instituição financeira pelo pagamento integral ao beneficiário. Tal procedimento, regulado por lei federal americana, imputa, inclusive, como crime qualquer violação deliberada da norma, cominando pena de multa no valor de até cinco mil dólares e pena de até cinco anos de prisão. No caso em apreço, restou provado, no juízo de primeira instância, que, no período de 9 de dezembro de 1892 e 13 de fevereiro de 1893, Dobbins e Dazey não tinham saldo suficiente na sua conta bancária para cobrir quatro cheques por eles emitidos, no montante atual de cerca de dois milhões de dólares. Tal fato era de conhecimento pelo caixa do banco e de todos os seus subordinados, porém desconhecido por Spurr e pelos demais diretores do banco, pois o caixa Porterfield havia mentido acerca da real situação das contas de Dobbins e Dazey em seus relatórios à controladoria do banco e o presidente do banco apôs sua assinatura, tendo garantido a solvência dos cheques de Dobbins e Dazey, razão pela qual o réu Spurr respondeu a processo criminal perante a Justiça Federal do Estado do Tenessee, tendo sido condenado pelo júri federal por ter certificado deliberadamente cheques sem fundos.  Assim, Spurr recorreu e teve seu recurso julgado improcedente, vez que, segundo o entendimento das instâncias superiores, restou comprovado que o réu ignorou deliberadamente que o saldo bancário era insuficiente (grifo nosso). Eis, portanto, no caso americano, o embrião da discussão acerca da cegueira deliberada.

Cabe salientar que, em que pese a exposição dos dois casos acima como precursores da teoria da cegueira deliberada na Inglaterra e nos EUA, Lucchesi (2018, p. 93) afirma que não é de todo certa, porém, cita, como caso paradigmático da teoria da cegueira deliberada, no judiciário norte-americano, o caso United States v. Jewell, em 1976. Charles Demore Jewell foi acusado de tráfico internacional de drogas entre os Estados Unidos e o México. No presente caso, o réu Jewell foi preso conduzindo um veículo contendo compartimento secreto no porta-malas em que foram encontrados cerca de 50 Kg de maconha, com valor aproximado de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais). Jewell afirmou que viajou de Los Angeles a Tijuana, no México, com um amigo num carro alugado, onde fora abordado por um desconhecido que lhes ofereceu maconha para consumo pessoal e a quantia de cem dólares para levar um carro até os Estados Unidos, onde deveria ser deixado em determinado endereço com o documento e as chaves dentro do cinzeiro. Jewell aceitou a proposta, mas seu amigo não, tendo este levado o veículo alugado de volta a Los Angeles, enquanto o réu conduziu o outro veículo a pedido do indivíduo desconhecido. Consta que Jewell disse ter desconfiado de que poderia haver algo de ilícito no carro, motivo pelo qual afirmou ter olhado debaixo dos assentos, dentro do porta-luvas e do porta-malas, porém, nada encontrou. Ao ser indagado sobre o compartimento secreto existente no veículo, o réu alegou ter visto um “vazio” no porta-malas, mas não sabia o que era. Assim, Jewell foi condenado pelo crime de tráfico de drogas. Ao recorrer, o réu teve seu recurso julgado improcedente, pois a norma incriminadora do tráfico de drogas não exige conhecimento real, mas sim a consciência de uma elevada probabilidade da presença de alguma substância ilícita no conteúdo transportado pelo autor (grifo nosso). (LUCCHESI, 2018, p.94-97).

Já, no Brasil, Lucchesi (2018) nos ensina que a primeira decisão judicial referente à cegueira deliberada foi prolatada no caso nacional e internacionalmente conhecido como o “Assalto ao Banco Central de Fortaleza”. E, para entendermos de que forma a teoria da cegueira deliberada fora empregada, mister narrarmos, ainda que em apertada síntese, o caso e as decisões dadas pelos juízos de primeira e de segunda instâncias. Vejamos: na madrugada do 06 de agosto de 2005, por meio de um túnel escavado entre um imóvel próximo à sede do Banco Centra de Fortaleza, foram furtados R$ 167.755.150,00 em notas de R$ 50,00 retiradas de circulação. Os autores haviam planejado detalhadamente o furto, mas a maior parte deles não sabia como guardar tantas notas de dinheiro, que, segundo Lucchesi (2017, p. 30), perfaziam um total de 3.295.103 notas velhas de cinquenta reais, pesando 3,5 toneladas e, se se colocassem umas sobre as outras, teriam a altura de 330 metros, maior que a Torre Eiffel, em Paris. Desse modo, parte do grupo de ladrões teve a ideia de transportar o dinheiro escondido em estofamento de veículos, que seriam transportados por um caminhão cegonha. Assim, logo na quarta-feira, após o referido assalto, a Polícia Federal prendeu, no Estado de Minas Gerais, o caminhão cegonha da empresa J.E. Transportes de Veículos, que transportava, na ocasião, onze veículos. Neles foram encontrados pouco mais de três milhões e meio de reais disfarçados nos estofamentos e na lataria dos veículos, que haviam sido comprados na empresa chamada “Brilhe Car”, em Fortaleza-CE, uma concessionária de veículos multimarcas. O dono da transportadora, que era irmão do engenheiro do túnel utilizado no furto, foi até a referida concessionária, apresentou seu irmão engenheiro e outros comparsas do crime, sem nada referir-se acerca da empreitada criminosa. E, após analisar os carros expostos à venda, disse aos donos da concessionária, os irmãos José Elizomarte Fernandes e Francisco Dermival Fernandes Vieira, que enviaria uma proposta de compra conjunta de vários veículos. Poucas horas após o crime, numa manhã de sábado, o dono da empresa de transportes José Charles ligou para a concessionária, dizendo que estava com o dinheiro e ia fechar o negócio. Encontraram-se num apartamento próximo à “Brilhe Car”, usado como escritório e depósito, e, lá, José Charles indicou um saco, utilizado para carregar grãos, no piso do banco do passageiro de sua picape, estacionada na garagem. Levaram o saco até o apartamento, onde José Charles, Francisco Dermival, um dos proprietários da concessionária de carros, e Roberto André de Albuquerque Lopes, funcionário da “Brilhe Car”, contaram as notas por mais de quatro horas de sábado.  Durante a contagem, José Charles foi embora inopinadamente, confirmou que havia no saco R$ 980.000,00, não retornou, nem pediu recibo. Consta, ainda, que a referida loja de veículos vendeu, ao todo, onze automóveis, custando R$ 730.000,00, sendo que José Charles havia deixado, como crédito extra, cerca de mais R$ 250.000,00 em dinheiro, garantindo que voltaria durante a semana para comprar outros carros (LUCCHESI, 2018, p. 29-31). No caso ora apresentado, o Ministério Público Federal denunciou vários indivíduos, inclusive os dois proprietários da empresa “Brilhe Car”, esses últimos por lavagem de dinheiro, na modalidade de recebimento de valores oriundos de infração penal, com a intenção de ocultar ou dissimular a sua origem delituosa, conforme consta no tipo penal do Art. 1.º, § 1.º, inciso II, da Lei 9.613/1998. Interessante notar que na sentença penal condenatória:

 

[...] os proprietários da revendedora de veículos não sabiam que a origem do numerário advinha do furto praticado à sede do Banco Central (grifo nosso) – até porque o furto ocorreu na madrugada de sexta-feira para sábado, e o pagamento foi feito no mesmo dia, antes de se fazer conhecida a ocorrência do crime. No entanto, entendeu-se que os proprietários “certamente sabiam ser de origem ilícita os valores pagos, não tendo recusado a negociação suspeita, tampouco comunicado a transação às autoridades responsáveis, como mencionado (grifo nosso). Foram, portanto, condenados pelo crime de lavagem de dinheiro à pena de três anos de reclusão, em regime aberto, e ao pagamento de cem dias-multa, cada, no valor de dez salários mínimos (LUCCHESI, 2018, p. 32).

 

No caso ora apresentado, os donos da concessionária foram condenados com base na teoria da cegueira deliberada estudada pelo ex-juiz federal e atual Ministro da Justiça Sérgio Fernando Moro, segundo o qual tal teoria se assemelha ao dolo eventual do artigo 18, inciso I, do Código Penal Brasileiro, pois os sentenciados teriam conhecimento da alta probabilidade da origem criminosa do dinheiro, permanecendo alheios ao conhecimento pleno dos fatos (deliberadamente não queriam saber de onde vieram tanto dinheiro para a compra de vários veículos), assim agindo conscientemente de forma indiferente a esse conhecimento, assumindo o risco de produzir o resultado criminoso, no caso, a lavagem de dinheiro. Tem-se, portanto, a configuração da cegueira deliberada no caso ora apresentado, a qual é tratada como equivalente ao dolo eventual no Brasil, aplicado, principalmente, em julgamentos de crimes de lavagem de capitais. O magistrado sentenciante concluiu que pelo fato de os proprietários da “Brilhe Car” terem recebido todo aquele dinheiro sem questionamentos, não se abstendo de tal negociação suspeita, tampouco por não terem comunicado às autoridades responsáveis, agiram em cegueira deliberada ou dolo eventual. Os donos da concessionária apelaram da sentença, argumentando que o crime de lavagem de dinheiro exige o dolo direto e não eventual pelos acusados, não havendo prova suficiente para a condenação, sobretudo, considerando que, na própria sentença, foi reconhecido que os acusados não tinham conhecimento do furto praticado contra a o Banco Central de Fortaleza (conforme supracitado), quando da compra e venda dos veículos. Ao ser submetido ao Tribunal Regional Federal da 5ª Região, a sentença foi reformada. Segundo Lucchesi (2018, p. 41), o relator do caso assinalou que o delito atribuído aos proprietários da “Brilhe Car” não admite dolo eventual. E mais: segundo tal relator, exige-se no tipo penal de lavagem de capitais que os agentes saibam de fato da proveniência dos recursos do crime antecedente, razão pela qual não há como aplicar a teoria da cegueira deliberada. Nesse ponto, mister citarmos a ementa da decisão, apontada por Lucchesi (2018):

 

Imputação do crime de lavagem em face da venda, por loja estabelecida em Fortaleza, de 11 veículos, mediante o pagamento em espécie: transposição da doutrina americana da cegueira deliberada (Willful blindness), nos moldes da sentença recorrida, beira, efetivamente a responsabilidade penal objetiva; (grifo nosso) não há elementos concretos na sentença recorrida que demonstrem que esses acusados tinham ciência de que os valores por ele [...] recebidos eram de origem ilícita, vinculada ou não a um dos delitos descritos na Lei 9.613/1998. O inciso II do § 2º do art. 1.º dessa lei exige a ciência expressa e não, apenas o dolo eventual (grifo nosso). Ausência de indicação ou sequer referência a qualquer atividade enquadrável no inciso II do § 2.º (grifo nosso). (LUCCHESI, 2018, p. 41).

 

Por fim, os acusados foram absolvidos do crime de lavagem de dinheiro, tendo o TRF-5 julgado procedente o apelo dos irmãos réus por unanimidade. Assim, pelo presente caso, nota-se, claramente, que a aplicação da teoria de cegueira deliberada norte-americana, no juízo de primeira instância e o seu afastamento pelo tribunal brasileiros, trata-se, supostamente, de um equivalente ao dolo eventual que possui sua aplicação, no mínimo, problemática.

Lucchesi (2018, p. 46) afirma que o julgamento da Ação Penal n.º 470/MG, conhecida como o caso do “Mensalão”, foi, de fato, uma das principais decisões sobre a aplicação da teoria da cegueira deliberada no Brasil, pois, no voto da Ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber, foram apresentados elementos, parâmetros e os primeiros contornos mais elaborados e explícitos, para a aplicação da referida teoria no direito brasileiro. Na Ação Penal 470, a Ministra aborda a cegueira deliberada ao analisar o crime de lavagem de dinheiro, considerando ser possível imputar tal delito com base nesta teoria, pois os acusados receberam quantias exorbitantes por meio da agência de propaganda de propriedade do acusado Marcos Valério Fernandes de Souza, empresa esta contratada pelo governo federal, a pedido do Partido dos Trabalhadores. Essas quantias teriam sido recebidas “sem qualquer ressalva ou tentativa de esclarecer a origem deles – a postura típica daqueles que escolhem deliberadamente fechar os olhos para que, de outra maneira, lhes seria óbvio, ou seja, o agir com indiferença, ignorância ou cegueira deliberada” (LUCCHESI, 2018, p. 48). Assim, a Ministra Rosa Weber cita, em seu voto, os requisitos exigidos pelas cortes americanas para que esteja configurada a cegueira deliberada. São eles:

i) a ciência pelo autor da elevada probabilidade de que os bens envolvidos tinham origem delituosa, ii) a atuação indiferente do autor quanto à ciência dessa elevada probabilidade e iii) a escolha deliberada pelo autor de permanecer ignorante a respeito dos fatos, em sendo possível a alternativa. (LUCCHESI, 2018, p. 49).

 

De forma semelhante ao que já abordamos no caso julgamento em primeira instância do caso do “Assalto ao Banco Central”, conforme decisão da Ministra do STF, para a configuração do crime de lavagem de dinheiro não é necessária comprovação do dolo direto, basta o agente agir com dolo eventual, o que equipara a teoria da cegueira deliberada norte-americana ao elemento subjetivo (de construção brasileira) que é o dolo indireto. Quis a Ministra, para afastar eventual alegação de incompatibilidade entre os dois institutos (a cegueira deliberada, de origem anglo-saxã do sistema common law e o dolo eventual, de construção brasileira, no sistema civil law), demonstrar que a cegueira deliberada foi acolhida pelo Supremo Tribunal da Espanha, corte de tradição civil law, como a brasileira, equiparando-a ao dolo eventual, instituto também existente no Brasil. Para a corte espanhola a imputação penal, baseada na cegueira deliberada apresenta quatro requisitos, quais sejam:

 

i) a solicitação de atuação ou colaboração do autor por terceiro; ii) a possibilidade e o dever de conhecimento da natureza dessa atuação ou colaboração pelo autor, iii) a decisão por se manter em situação de não querer saber o que se faz e iv) a efetiva contribuição para os fatos. (LUCCHESI, 2018, p. 49).

 

Rosa Weber, em seu voto, ao analisar o dolo, previsto no artigo 18, do Código Penal, enquanto vontade consciente de produção do tipo penal objetivo e a assunção do risco de produzir o resultado delitivo, realça que não existe proibição para a aplicação do dolo eventual no tipo penal básico de lavagem de dinheiro, isto é:

 

Aduz a ministra que não se exige para nenhum tipo penal a previsão legal específica de dolo eventual para sua configuração, bastando a previsão desta categoria na parte geral do CP, contanto que o tipo não contenha fórmulas cuja disposição obste o reconhecimento do dolo eventual, tais como os tipos penais de denunciação caluniosa e receptação, cujas articulações exigem o conhecimento positivo. (LUCCHESI, 2018, p. 50)

 

A Ministra do STF alegou, em sua defesa, que não estava ampliando indevidamente o alcance do tipo penal de lavagem de dinheiro, mas estava apenas aplicando à referida infração penal institutos consagrados do Direito Penal brasileiro, entendendo que a conduta dolosa não é aquela somente quando o autor quis o resultado, mas também consiste naquela em que assume o risco de produzi-lo de maneira indiferente ao resultado de sua conduta.

É interessante notar, ademais, que Lucchesi (2018, p. 51) aponta, como ponto central, no voto de Rosa Weber, tocante à aplicação da teoria da cegueira deliberada, o grau de ciência que o agente possui no momento da conduta (grifo nosso), entendendo que não basta a mera suspeita da procedência ilícita dos bens envolvidos no negócio jurídico. Para a ministra, é necessário o concurso de três requisitos, quais sejam:

 

Primeiro, deve o autor realiza o tipo objetivo do crime de lavagem, isto é, praticar condutas de ocultação ou de dissimulação da natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade dos bens, direitos ou valores envolvidos. Segundo, ao praticar as condutas típicas, o autor deve ter ciência da elevada probabilidade de que os bens, direitos ou valores envolvidos tenham por origem algum crime antecedente de lavagem. Terceiro, deve o agente, mesmo ciente da probabilidade de origem criminosa, persistir indiferente a essa suposta origem na conduta delitiva de ocultação ou de dissimulação, evitando propositadamente aprofundar seu conhecimento quanto à origem dos bens, direitos ou valores envolvidos quando estiver em condições de fazê-lo. (grifos nossos). (LUCCHESI, 2018, p. 51).

 

Nesse ponto, Lucchesi (2018, p. 52) tece diversas críticas a respeito da interpretação dada pela Ministra Rosa Weber acerca da aplicação da teoria da cegueira deliberada em seu voto, entre elas destacamos a de que é vaga a expressão “elevada probabilidade”, já que é discutível distinguir algo suspeito de algo “provável” e de algo “certo”. Mais difícil é distinguir algo “pouco provável” de algo “provável” e de algo “altamente provável”, sem que haja algum critério objetivo para se analisar que o suposto autor dos fatos tenha “ciência de elevada probabilidade” da origem ilícita dos bens e valores com ele transacionados. Em arremate, justificou-se, portanto, a condenação dos beneficiários financeiros no chamado “Mensalão” com base no argumento de que:

 

[...] alguém “minimamente razoável recusaria o pagamento de vultoso numerário em espécie nas condições pagas ou, ao menos, preocupar-se-ia em investigar a origem do dinheiro e o motivo pelo pagamento da maneira como foi pago. Com isso, conclui ser desnecessário o conhecimento específico quanto à procedência do numerário, bastando o conhecimento de sua origem criminosa, perceptível até mesmo pela forma como o dinheiro fora entregue, em malas e em quartos de hotel. (LUCCHESI, 2018, p. 52).

 

5.2 Da Construção e da Aplicação do Conceito da Willful Blindness ou Teoria da Cegueira Deliberada

 

Iniciaremos este item de nosso trabalho, expondo a construção da teoria da cegueira deliberada nos EUA, pois é de lá que os tribunais brasileiros se valeram como fonte primordial, a fim de fundamentar suas decisões e condenações.

Inicialmente, e, para instigarmos a reflexão acerca da categoria ora estudada, os EUA e Brasil possuem sistemas jurídico-penais totalmente distintos. Nos EUA, há, em verdade, vários sistemas, ora harmônicos, ora conflitantes, uma vez que o federalismo norte-americano permite que os estados tenham competência legislativa em material penal e a União só pode legislar, em matéria penal, sobre crimes federais e seu processo (LUCCHESI, 2018, p. 66). Assim, preliminarmente, já vemos problemas de se importar ao Brasil um instituto, de cujas bases se fundam num sistema completamente diferente do nosso, sem, ao menos, passar por vários debates, discussões e reflexões doutrinários, bem como, em consagração do princípio da legalidade, sem ser legislado, definindo contornos precisos e ponderados.

Os elementos subjetivos necessários para a configuração da conduta criminosa no sistema penal dos EUA remetem ao que se chama de mens rea (mente culpada ou mente criminosa), do latim actus non facit reum nisi nes sit rea, que significa “um ato não faz a pessoa culpada, exceto se sua mente for culpada”. No Brasil, contudo, como vimos, os elementos subjetivos do tipo penal, na conduta, são divididos entre dolo e culpa, estão positivados em nosso ordenamento jurídico, bem como já há, de certa forma, uma consolidação da doutrina e da jurisprudência sobre seus conceitos e aplicações. 

Adiante, interessante notar que, para se chegar ao conceito da teoria da cegueira deliberada americana, é necessário passarmos pela análise do que de fato significa mens rea. Para Lucchesi (2018, p. 66-67), há dois sentidos, quais sejam: o primeiro, em sentido amplo, que significa algum estado mental moralmente culpável, não necessariamente aquele exigido para a punição; o segundo, em sentido estrito, e mais aceito atualmente, diz respeito ao próprio elemento subjetivo exigido para a definição do crime, necessário para a punição. Nesse diapasão, há dificuldade entre os juristas norte-americanos em estabelecer uma definição mais segura do que seja mens rea. Isto porque:

 

[...] no common law estabelecido desde o direito inglês o termo mens rea assumiu diversas definições, tais como “intenção geral criminosa”, “intenção específica”, “intenção criminosa”, “malícia”, “deliberação”, “despreocupação” e “scienter”. Para os idealizadores do Código Penal Modelo, uma importante tarefa a ser cumprida pelo Código seria suplantar o conceito unitário de mens rea por outras categorias de imputação, mais bem definidas (LUCCHESI, 2018, p. 67).

 

Nota-se que o conceito de mens rea seria insuficiente para dar conta de explicar a willful blindness ou teoria da cegueira deliberada, instituto de origem anglo-saxã ante a diversidade de definições acima apresentadas. Por mais que haja, no seu conceito, palavras como “intenção”, o que, grosso modo, remeteria ao dolo em nosso sistema brasileiro, Lucchesi (2018, p. 68) adverte que o desenvolvimento da mens rea seguiu caminho diferente, sendo certo que, em nosso sistema pátrio, tanto o dolo, quanto a culpa, possuem origens romanas, devido à influência do direito canônico.

Ademais, tentar definir de forma unívoca todos os elementos subjetivos atribuíveis aos autores de delitos dentro da mens rea tornou-se praticamente impossível. Tentou-se desenvolver uma única definição de mens rea que abrangesse diferentes atitudes e intenções exigidas dos autores para a prática de crimes, o que gerou grande confusão e dificuldade por parte dos juristas norte-americanos. Assim, a alternativa foi abandonar tal expressão latina, sendo esta substituída pelo termo culpability (que não se confunde com o termo culpabilidade empregada no Brasil), para se referir aos elementos subjetivos do crime nos EUA. Segundo Edinger (2019, p.32), “entende-se, no sistema norte-americano, que a culpability, a possibilidade de ser culpável, pode ter origens ou morais ou psicológicas”. A origem moral tem a ver com critérios sociais, a fim de se atribuir a culpa a determinado indivíduo, ou seja, vasculha-se elementos exteriores ou circunstanciais à pessoa para se verificar o elemento subjetivo de sua conduta. Já a origem de ordem psicológica está relacionada com buscar a culpa na consciência ou o estado mental de determinada pessoal, razão pela qual, esta liga-se a elementos internos do indivíduo. Assim, a culpability é interpretada dentro da moldura psicológica e não moral (EDINGER, 2019, p. 33).  Desse modo, o Código Penal Modelo ou Model Penal Code americano possui uma regra geral que define “graus de culpability”, escalonados numa hierarquia, para a imputação subjetiva de determinado ato delituoso a determinado indivíduo, quais sejam: purpose (propósito), knowledge (conhecimento), recklessness (imprudência) e negligence (negligência). A partir desses graus de culpabilidade,

 

pode-se graduar os estados mentais [...]. A hierarquia referida pressupõe, nesse sentido, que purpose se mostra mais culpável que knowledge, que, por sua vez, mostra-se um estado mental mais culpável que recklessness, que, por fim, seria determinado estado mental mais culpável que negligence. (EDINGER, 2019, p. 34).

 

Verificado, então, que a imputação subjetiva norte-americana se dá por graus hierárquicos de culpabilidade, resta-nos explorar os significados desses graus. Entende-se por purpose como objetivo consciente do autor quando pratica um fato, podendo estar relacionado tanto à conduta quanto ao resultado esperado que produza. Dessa forma, caso haja um crime que exija purpose, a natureza da conduta praticada e o resultado deve ser o objetivo consciente do autor. Em outras palavras, haverá purpose quando ou o acusado busca realizar, conscientemente, determinada conduta que seja elemento do crime, ou, ainda, quando engaja em uma conduta que terá como resultado um elemento do crime. Já o knowledge refere-se à ciência que o autor possui em relação à natureza da sua conduta praticada e à existência de eventuais circunstâncias como indispensáveis à configuração do crime. O autor que age com knowledge (conhecimento) tem ciência de que a sua conduta “quase com certeza” acarretará determinado resultado previsto em lei. (grifo nosso). Em outras palavras, o agente age tendo ciência ou quando está praticamente certo de determinado elemento do delito ou que tenha ciência da alta probabilidade da existência do fato criminoso. Nesse ponto, Lucchesi (2018, p. 73) nos alerta que é justamente dentro do conceito de Knowledge que reside o ponto central para a origem e discussão da teoria da cegueira deliberada, divergindo, portanto, de Edinger (2019) que afirma a cegueira deliberada não se encontra prevista no Código Penal Modelo dos EUA.  Em seguida, temos a recklessness (imprudência), segundo a qual o agente age com imprudência quando sua ação ou omissão desviar gravemente de um padrão de conduta que seria observado por uma pessoa comprometida com a observância das normas legais, o que, fazendo um comparativo ao Direito Penal Brasileiro, grosso modo, assemelha-se ao elemento subjetivo da culpa, na modalidade imprudência. Por último a negligence (negligência) estabelece um dever de cuidado e não de conduta, que deve ser observado por uma pessoa razoável e não uma pessoa cumpridora da lei. Assim, na negligence, o autor deveria ter ciência do risco, mas não o percebe. Conforme demonstramos, para Lucchesi (2018), a cegueira deliberada nasce, nos EUA, portanto, como substituto do elemento subjetivo knowledge (conhecimento), que é o conhecimento do autor do fato referente à natureza de sua conduta, bem como à existência das circunstâncias especiais exigido pela definição legal do crime. Também é o conhecimento pelo autor de que o resultado previsto na norma penal será praticamente certo caso pratique aquela conduta naquelas das circunstâncias (grifo nosso). (LUCCHESI, 2018, p. 78). Em outras palavras, para a configuração do knowledge em relação ao resultado, é preciso que o autor tenha conhecimento de que é praticamente certo (e não de que é totalmente certo) que haverá o resultado criminoso originado de sua conduta. Não se exige total certeza por parte do agente acerca do conhecimento do resultado por ele provocado. Já, no Brasil, ao se falar do seu equivalente proposto por doutrinadores ao dolo eventual, há conceituação diferente, já que, para que se configure o dolo eventual é necessário que o agente tenha agido como vontade e tenha certeza/ciência de que o resultado seja previsto e previsível, mas que ele assuma o risco de produzi-lo, agindo de forma indiferente quanto à produção do resultado. Em suma, diferentemente do que ocorre no Brasil, nos EUA, não há uma preocupação com a conceituação dos requisitos subjetivos do delito, separando-os em duas categorias, como do dolo (dolo direito e dolo eventual) e a culpa, mas, sim, com o estabelecimento de graus ou patamares de deliberação hierarquicamente escalonados. Grosso modo, seria como “graus de culpa” do agente ou graus em que o agente age de forma deliberada. Assim, como exemplo, Lucchesi (2018, p. 82) nos ensina que há dois extremos, sendo que, num extremo, o purpose (propósito) seria a grau máximo em que o autor dos fatos estaria envolvido com o resultado da ação delituosa (seria a conduta e resultado dolosos propriamente ditos no Direito Penal Brasileiro), enquanto, noutro, estaria a negligence (negligência), consistente numa criação pelo autor do delito de um risco inconsciente do resultado pelo autor, sendo responsabilizado apenas quando da inobservância de um padrão de cuidado, que geraria riscos intoleráveis (grosso modo, equivaleria ao conceito de culpa, na modalidade negligência do Direito Penal Brasileiro). E, entre esses extremos, estariam graus intermediários como o recklessness (imprudência) e o knowledge (conhecimento).

Ademais, insta destacar que, além dessa forma de interpretar e analisar os elementos subjetivos do crime nos EUA, que destoa totalmente da sistemática brasileira, a cegueira deliberada foi lá empregada com a seguinte finalidade:

 

[...] permitir que o autor possa ser condenado mesmo quando tal conhecimento a respeito da certeza do resultado, da natureza de sua conduta ou da presença de alguma circunstância elementar concomitante não esteja plenamente configurada. Vale dizer, aplicando-se a cegueira deliberada, os tribunais podem condenar um indivíduo nos crimes que exigem conhecimento mesmo que tal indivíduo não tenha conhecimento dele. (grifo nosso). (LUCCHESI, 2018, p.127).

 

Vemos, pois, que, além de gerar insegurança jurídica, uma decisão judicial baseada na cegueira delibera pode criar inúmeras injustiças e, quiçá, uma responsabilização objetiva. Lucchesi (2018, p.127) nos alerta sobre esse perigo ao afirmar que “Devido à inexistência de uma fonte central e unificadora do direito penal americano, não é possível se estabelecer um enunciado único e preciso do que pode ser entender por cegueira deliberada”. Ademais, “no Brasil, no entanto, não se lida com conhecimento e vontade como graus de culpability. Lidamos com elementos subjetivos do tipo penal. Legalmente, lidamos com conceitos de dolo e culpa” (EDINGER, 2019, p. 55).  No ordenamento jurídico brasileiro esses graus não possuem força normativa, tampouco é adotada pela doutrina e jurisprudência pátrias.

O autor de um crime está sob a cegueira deliberada, nos EUA, quando tem a ciência da elevada probabilidade de existência de um fato ou circunstância elementar do crime (conforme já mencionamos), mas que deliberadamente evita comprovar a existência do fato ou circunstância que configure o crime, bem como, assim agindo, não acredita na sua inexistência (LUCCHESI, 2018, p.127). Portanto, para a configurar a cegueira deliberada, nos Estados Unidos da América, lembrando, como substituto do elemento subjetivo intermediário do grau de culpa do agente, chamado knowledge (conhecimento), é preciso estar presente três requisitos, quais sejam: a) autor deve ter ciência da elevada probabilidade de existência de uma circunstância ou fato elementar do delito; b) o autor toma medidas deliberadamente voltadas a evitar comprovar a existência do fato ou da circunstância; c) o autor não acredita na sua inexistência. 

No Brasil, ao importar a cegueira deliberada, a jurisprudência pátria  convencionou ou “adaptou-a” como sendo equivalente do dolo eventual na aplicação de crimes de lavagem de dinheiro, assim (re)criando os seguintes requisitos: a) o autor tem ciência da elevada probabilidade de que os bens envolvidos tinha origem delituosa; b) age de forma indiferente quanto à ciência dessa elevada probabilidade (grifo nosso); e c) escolhe deliberadamente manter-se ignorante a respeito dos fatos, em sendo possível a alternativa (LUCCHESI, 2018, p. 129). Comparando os requisitos norte-americanos aos brasileiros, há incongruências, a começar pelo item “a”: na teoria americana, exige-se esta elevada probabilidade referente a circunstância ou fato que é elementar do delito praticado; na teoria brasileira (adaptada) exige que o autor tenha conhecimento desta elevada probabilidade de bens de origem criminosa, ou seja, pressupõe-se que tenha havido um crime anteriormente praticado. Ademais, no caso da cegueira deliberada “tupiniquim”, foi inserido um requisito inexistente ao proposto pela jurisprudência internacional, qual seja: a indiferença do autor quanto à elevada probabilidade de ocorrência do resultado. Para Lucchesi (2018, p. 130), a categoria da indiferença não é exigível no direito anglo-americano, vez que não pertence ao Knowledge, do qual advém a cegueira deliberada. Outrossim, a indiferença do autor, em relação a elevada ou alta probabilidade da realização do resultado naturalístico, é uma dentre outras características aplicáveis ao dolo eventual já existente e desenvolvido pela doutrina pátria e positivado no artigo 18, inciso I, do Código Penal, no qual adotou-se a teoria do assentimento, conforme já explicado em tópico anterior. Em outras palavras, a expressão “indiferença”, na teoria do delito brasileira, assume o mesmo aspecto relativo ao dolo eventual, que é o de prever o resultado, mas o assume, “não se importando ou pouco de se importando” com o resultado naturalístico (agindo com indiferença em relação ao resultado produzido). Isso seria a indiferença no dolo eventual. Mesmo assim, não se pode resumir o dolo eventual à simples indiferença do autor em relação ao resultado sob pena de ou limitar as possiblidades de responsabilização penal do autor ou de se ampliar inadvertida e excessivamente o conceito de dolo a partir de um conceito indeterminado/vago como “indiferença”, a depender do caso concreto. Vamos além: o termo “indiferença” poderia ser também empregado para a caracterização da culpa consciente, já que o agente pode não querer o resultado, mas pode agir de forma indiferente quanto a ele, mas acreditando piamente na sua capacidade de evitar o resultado naturalístico.

Lucchesi (2018) tece importante crítica acerca de se equiparar ou transplantar a cegueira deliberada de origem anglo-americana ao dolo eventual brasileiro:

 

Com isso, buscou-se aparentemente introjetar artificialmente um componente do dolo eventual na definição de cegueira deliberada, visando facilitar a acomodação da cegueira deliberada enquanto dolo eventual no direito brasileiro. Isso ocorre porque, ao contrário de autores que entendem a necessidade de incorporar a cegueira deliberada nos ordenamentos jurídicos nacionais a partir de propostas de lege ferenda, a jurisprudência brasileira tem entendido que a cegueira deliberada é aplicável mesmo diante da lex lata, uma vez que constituiria espécie de dolo eventual. Não é por outro motivo que Moro incorre em erro grosseiro ao afirmar que o dolo eventual vem sendo admitido nos crimes de lavagem de dinheiro nos Estados Unidos por meio da cegueira deliberada: a noção de dolo eventual, como dito, é estranha ao direito penal americano. Dolo eventual não se confunde com knowledge  (grifo nosso) [...]. (LUCCHESI, 2018, p. 130-131).

 

Desse modo, podemos afirmar que a cegueira deliberada foi criada pela jurisprudência nos Estados Unidos como substituto do knowledge e, no Brasil, como uma espécie, modalidade ou equivalente ao dolo eventual, o qual não existe nos EUA, o que, por si só, já denota a falta de compatibilidade e identidade entre si, o que seria, ao trazê-la ao nosso País com adaptações feitas pela jurisprudência, uma verdadeira impropriedade.

Ademais, se, supostamente, aceitarmos que a cegueira deliberada se trata de suposta espécie ou, até mesmo, um instituto equivalente ao dolo eventual, questiona-se, portanto, a necessidade de se desenvolver uma teoria da cegueira deliberada no Brasil, bem como a sua aplicação em solo nacional. Nesse sentido, Lucchesi (2018, p. 131) argumenta que, se o dolo eventual já é capaz de resolver por si as situações colocadas pela jurisprudência como cegueira deliberada, sem qualquer espécie de alteração legislativa, tal formulação seria de todo desnecessária, não havendo motivos para se desenvolver ou implantar no Brasil a teoria da cegueira deliberada para um preenchimento analógico de uma suposta ou eventual lacuna na lei brasileira. Pelo simples fato de ter matriz e conceito diferentes, a cegueira deliberada aplicada como equivalente do dolo eventual brasileiro já configura uma impropriedade. Vamos além: importar a teoria cegueira deliberada para o nosso ordenamento jurídico, ante a sua imprecisão conceitual, geraria insegurança jurídica, confusões em sua aplicação, bem como geraria uma possível expansão do alcance do dolo eventual, o que permitiria, eventualmente, punir o autor de um delito a título de dolo eventual (equivalente da cegueira deliberada), ao invés de puni-lo ou até mesmo absolve-lo a título de culpa (conforme a falta previsão expressa do elemento subjetivo da culpa no tipo penal).

Adiante, além do exposto, a própria locução “teoria/doutrina da cegueira deliberada” é problemática, vez que os termos “teoria” ou “doutrina”, no direito penal anglo-americano não possuem o mesmo significado quando traduzidos para a língua portuguesa, sendo, pois, falsos cognatos. Advertimos que a expressão inglesa “doctrine” (de Conscious Avoidance Doctrine) não se confunde com “doutrina”, pois a expressão inglesa é uma regra ou coleção de regras que sintetiza o conjunto de decisões judiciais em determinada área, tratando-se de precedente ou conjunto de precedentes judiciais. Assim, conclui-se que a “teoria/doutrina” da cegueira deliberada não foi uma criação e desenvolvimento teórico amadurecido nos bancos acadêmicos ou pelos doutrinadores ingleses ou americanos, com rigor científico, mas é fruto de embates processuais, a partir de definições dadas, na prática jurídica, pelos juízes aos jurados, visando instruir os julgadores de fato (o júri) a respeito da forma de aplicar o direito ao julgamento. Nesse sentido:

 

Não há escritos acadêmicos teorizando a cegueira deliberada, ou mesmo buscando compatibilizá-la com o sistema de imputação subjetivo de responsabilidade. Mesmo os tratadistas ingleses, que trazem uma abordagem neutra da temática, limitam-se a comentar a cegueira deliberada, apontando tratar de uma regra desenvolvida no seio do common law. Nesse sentido, não parece adequado tratar a cegueira deliberada como “teoria”, ou mesmo como construção “teórica”, tratando-se, em realidade, de construção prática, desenvolvida judicialmente e propagada a partir da regra de observância de precedentes na tradição jurídica da common law (LUCCHESI, 2018, p. 128-129).

 

Como contraponto a tais críticas, Edinger (2019), com uma proposta oposta em sua obra, propõe ou afirma que a cegueira deliberada americana seria o mesmo que o dolo eventual desenvolvido no Brasil, definindo a Willful blindness nos seguintes termos:

A cegueira deliberada é a qualificação de um estado de conhecimento e de vontade que indica, acima de qualquer dúvida razoável, a assunção de risco pelo sujeito (grifo nosso)a partir da constatação de que ele, deliberadamente, não buscou incrementar seu conhecimento a respeito da ocorrência de determinada situação fática subsumível a determinado elemento do tipo, a ele atribuível. (EDNGER, 2019, p. 56).

 

Nesse sentido, ao contrário do apresentado por Lucchesi (2018) em sua obra, Edinger (2019) adiciona, num conceito unívoco, a expressão “assunção de risco pelo sujeito”, o que é próprio do dolo eventual brasileiro, para tentar enquadrar ou adaptar a cegueira deliberada a este elemento subjetivo previsto no tipo penal brasileiro.

O debate fica mais interessante quando, numa tentativa de se definir contornos mais objetivos à teoria da cegueira deliberada, SYDOW (2017, p.198) cita a proposta feita por Ramon Ragués I Vallès, segundo o qual, a cegueira deliberada é composta de cinco elementos, quais sejam: a) deve o agente estar numa situação em que o agente não tem conhecimento suficiente da informação que compõe o elemento e um tipo penal em que está inserido; b) tal informação, apesar de insuficiente, deve estar disponível ao agente para acessar imediatamente e com facilidade; c) o agente deve se comportar com indiferença por não buscar conhecer a informação relacionada à situação em que está inserido; d) deve haver um dever de conhecimento do agente sobre tais informações; e e) é necessário se identificar uma motivação egoística que manteve o sujeito em situação de desconhecimento. Para SYDOW (2017), mesmo com tais critérios mais elaborados e definidos, ficaria difícil ou forçada a aplicação da teoria da cegueira deliberada num caso, por exemplo, em que uma pessoa recebe uma mala, com entorpecentes, para transportá-la a determinado lugar, recebendo, para tal, uma certa quantia em dinheiro, não verificando ou não questionando o conteúdo transportado. O transportador ao ser pego com drogas, alega desconhecer o conteúdo da mala, estando em estado de ignorância do elemento do tipo. Em tese, não se poderia atribuir responsabilidade criminal ao transportador pelo fato de que este não possui conhecimento sobre o elemento do tipo penal “transportar” ou “trazer consigo” entorpecente e o delito não existir na modalidade culposa. Assim, eventual uso do dolo eventual, como vimos anteriormente, ficaria prejudicado, haja vista que o agente não conhece o risco que está gerando e, por isso, não aceita o resultado, nem o assume. Possivelmente, se soubesse do conteúdo, o agente não teria praticado tal conduta. A situação fica mais complexa e nebulosa quanto à aplicação da cegueira deliberada, seja a do modelo americano, seja a proposta por Ragués I Vallès, quando trocamos o exemplo da mala por um cofre com segredo, sendo impossível ao transportador saber, ainda que tentasse descobrir o conteúdo transportado. Ao agente não seria possível obter a informação sobre o conteúdo, salvo se o suposto proprietário lhe dissesse. Vamos além com mais três exemplos: Primeiro, o mesmo problema haveria de se imputar uma conduta criminosa a um indivíduo, se o material ilícito (exemplo da droga) estivesse escondido em localização não suspeita de um veículo, como dentro do assento traseiro, em compartimento secreto e o transportador tiver procedido diante de testemunhas a uma investigação de locais lógicos de se esconder algo, como porta malas, porta luvas, região do motor, debaixo dos assentos, etc., não encontrando nada. Será que a polícia, ao flagrar o material ilícito acreditaria que o transportador não conhecia, não obtinha meios de saber, nem suspeitava da alta ou elevada probabilidade de um resultado delitivo? Segundo: também é problemática a cegueira deliberada numa situação em que o indivíduo transporta uma carta fechada, contendo material ilícito, sendo certo que a sua inviolabilidade é garantida pela Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XII.  Terceiro:  indaga-se como a cegueira deliberada resolveria com toda certeza o caso de um namorado que entrega à sua namorada, prestes a viajar, um pacote com conteúdo ilícito, alegando ser um presente surpresa para um familiar seu ou amigo e que a abertura somente poderá ocorrer no destino? Aqui não há que se falar em violação de dever de cuidado ou alta/elevada probabilidade do ilícito, vez que há uma relação de confiança e de boa-fé (SYDOW, 2017, p.200-201). Não há como o indivíduo ter ciência da elevada probabilidade de que os bens envolvidos tinha origem delituosa ou ter conhecimento da elevada probabilidade de existência de um fato ou circunstância elementar do crime (conforme já mencionamos), nem agiu deliberadamente evita comprovar a existência do fato ou circunstância que configure o crime, bem como, assim agindo, não acredita na sua inexistência, tampouco agiu de forma indiferente quanto à ciência dessa elevada probabilidade, muito menos escolheu deliberadamente manter-se ignorante a respeito dos fatos, em sendo possível a alternativa. Aqui vemos que, se o jovem amante fosse pego com a carta contendo entorpecente, por exemplo, certamente lhe seria imputada  a infração penal de posse ilegal de entorpecente para consumo pessoal ou de tráfico ilícito de entorpecente (artigos 28 ou 33, da Lei n.º 11.343/2006).

Outra questão que nos leva a refletir sobre problemas na conceituação e na aplicação da cegueira deliberada no Brasil é a inexistência de lacunas na lei a serem preenchidas pela analogia. Sabemos que o referido instituto foi trazido para tentar solucionar ou tentar preencher “supostos vazios” de punibilidade deixados pela lei penal pátria. Entretanto, em suas pesquisas, Lucchesi (2018, p.187), ao apresentar um aprofundado estudo de julgados brasileiros, demonstra o mau uso da cegueira deliberada para ampliar espaços de punibilidade que já foram preenchidos pelos contornos legais e doutrinários já definidos e, de certa forma, consolidados no Brasil, como é o caso do dolo eventual. Ademais, o referido autor é taxativo ao dizer que não há vazio de punibilidade que necessitasse ser preenchido pela cegueira deliberada como instituto autônomo de imputação subjetiva. E mais: nos casos em que havia dolo, a cegueira deliberada não era necessária para justificar a imputação dolosa, tratando-se ou de equívoco do julgador ou de adorno argumentativo e retórico da decisão. E, nos casos em que não havia prova do dolo por parte do autor, a cegueira deliberada não poderia ser aplicada como expansão legal do dolo (LUCCHESI, 2018, p.187). Em arremate:

 

Não há nenhum ganho em chamar algumas destas situações onde estão presentes os fundamentos do dolo de “cegueira deliberada” ou de qualquer outro conceito. Muito pelo contrário, dar denominação diversa a um feixe de situações em que se reconhece a existência do dolo obscurece os critérios de imputação, criando insuperável confusão (LUCCHESI, 2018, p. 187).

 

Desse modo, dizemos que, conquanto tenha havido a demonstração de tentativas de conceituação da cegueira deliberada, tal instituto de origem alienígena possui impropriedades em sua aplicação e definição de sua origem, problemas esses que não auxiliam o julgador ao fundamentar sua decisão, causando verdadeira insegurança jurídica ou injustiças ou, ainda, tornando-se um instituto inócuo, quando tratado como mero adorno retórico ao ser equiparado ao dolo eventual.

Na aplicação jurisprudencial da cegueira deliberada, bastaria o reconhecimento do dolo eventual e mais nada. A cegueira deliberada não altera nem amplia o conceito legal de dolo; nem poderia fazê-lo, vez que o magistrado brasileiro está adstrito ao que a lei penal impõe, pelo princípio da estrita legalidade (LUCCHESI, 189).

Pelas reflexões até agora tecidas, a cegueira deliberada é desnecessária para o julgador brasileiro, haja vista que já se possui o instituto do dolo para dar conta dos casos apresentados ao Poder Judiciário.

Outra importante reflexão acerca da cegueira deliberada é o contraponto feito por Edinger (2019) que, ao aproximar a cegueira deliberada como instituto semelhante ou equivalente ao dolo eventual, apresenta argumento no sentido de que a Willful Blindness está amparada pelo princípio da legalidade e que tal instituto norte-americano não é uma aplicação analógica (EDINGER, 2019, p. 134-135). Aplicar a cegueira deliberada, para este autor, significa preencher uma situação fática (e não legal) com o dolo eventual, já positivado em nosso ordenamento jurídico. Assim, não se viola a legalidade ao se incluir a cegueira deliberada nos casos de dolo eventual.  Desse modo, “Efetivamente, não há uma limitação legal à interpretação do dolo eventual, senão a assunção de risco. Cegar-se deliberadamente, como proposto, é assumir um risco. Não há falar, no ponto, em analogia em prejuízo do acusado, pois preencher um conceito não é raciocinar analogicamente”. (EDINGER, 2019, p. 1370)

Contudo, LUCCHESI (2018, p. 196) adverte que dolo eventual e cegueira deliberada, em seu sentido original norte-americano, não são a mesma coisa, apesar de haver pontos em comum, bem como afirma que o elemento cognitivo do dolo não corresponde ao knowledge (do qual partiu a noção de cegueira deliberada) do direito penal americano. Por tais motivos, a cegueira deliberada é uma “teoria”, para Lucchesi (2018), desnecessária para fundamentar a punibilidade. Pior: há diversos casos em que se usou a cegueira deliberada para reconhecer a existência do dolo eventual mesmo ausentes os elementos necessários para a configuração do dolo, o que levou à condenação mesmo diante da ausência de prova que conduzisse à atribuição de conhecimento ao acusado.

 

5.3 Da Decisão Apresentada pelo TRF da 4ª Região em Relação ao Caso do Estelionato Previdenciário com Base na Teoria da Cegueira Deliberada

 

Após, incialmente, apresentarmos o caso, o tipo penal do Estelionato Previdenciário, delinearmos alguns princípios constitucionais penais, refletirmos acerca dos elementos subjetivos do dolo e da culpa, estes últimos fundamentais para a análise de nosso estudo de caso, bem como debatermos acerca da teoria da cegueira deliberada e seus desdobramentos, mister discutirmos sobre qual foi e como foi a fundamentação da decisão apresentada pelo Tribunal Regional da 4ª Região em relação ao nosso caso.

Na fundamentação do decisum, a desembargadora, além de sustentar que houve dolo por parte do réu em não só de obter a vantagem em face da autarquia INSS, mas também de fraudar os documentos a esta apresentados, aplicou a Teoria da Cegueira Deliberada de forma tal que se assemelha ao dolo eventual, argumentando, no acórdão, o seguinte:

 

Ainda, mostra-se aplicável ao caso a Teoria da Cegueira Deliberada, segundo a qual o sujeito assume o risco da prática do delito, não tomando as precauções devidas para evitar o envolvimento com a prática ilícita. No caso, ainda que o apelante alegue ter agido de boa-fé (grifo nosso), as circunstâncias fáticas indicavam-lhe a possibilidade de a aposentadoria estar sendo concedida ilicitamente, porém ele, ao que se vê, optou por não verificar a regularidade de sua concessão. (grifo nosso)

Na hipótese dos autos, o réu entregou seus documentos a terceira pessoa, Everton Ferreira Alves, a quem passou procuração, para requerer sua aposentadoria. Alega no apelo não saber quais as medidas ou meios este teria tomado para a concessão do benefício, aduzindo não poder ser penalizado pela confecção inverídica de documentos por parte do profissional que contratou para a concessão do benefício, pois agiu de boa-fé.

Ocorre que, ao assim agir, o réu, no mínimo, assumiu a prática do resultado delitivo, deixando de certificar-se a forma como o procurador atuaria para solicitar o benefício [...] (grifo nosso). (TRF4, ACR 5029683-04.2017.4.04.7000, SÉTIMA TURMA, Relatora CLÁUDIA CRISTINA CRISTOFANI, juntado aos autos em 25/04/2019).

 

 

A relatora, ainda, acrescenta, em sua fundamentação, baseada na cegueira deliberada, que o réu Tristão agiu com dolo eventual, conforme o seguinte trecho:

 

O dolo, nesse caso, é o dolo eventual: o agente, sabendo ou suspeitando fortemente que estaria envolvido em conduta ilícita, e, portanto, prevendo o resultado lesivo de sua conduta, não toma medidas para se certificar o pleno conhecimento ou a exata natureza da conduta realizada, não se importando com o resultado (grifo nosso). Assim, se o agente arrisca-se a obter um benefício na incerteza sobre sua licitude, assume o risco de estar auferindo vantagem ilícita. (TRF4, ACR 5029683-04.2017.4.04.7000, SÉTIMA TURMA, Relatora CLÁUDIA CRISTINA CRISTOFANI, juntado aos autos em 25/04/2019).

 

E, para justificar seus argumentos fundados na teoria de cegueira deliberada, a desembargadora cita três ementas, que merecem aqui o registro para análise:

 

APELAÇÃO CRIMINAL. (...) DOLO EVENTUAL. CEGUEIRA DELIBERADA. CONDENAÇÃO MANTIDA. (...) Aplicação da teoria da cegueira deliberada, através da qual o agente conscientemente deixa de buscar informações a fim de não confirmar sua suspeita acerca do ilícito no intuito de se furtar a eventual responsabilização. (...) (grifos) (ACR nº 5008139-19.2015.404.7003, 7ª T., Relator Juiz Federal RONY FERREIRA, por unanimidade, j. 13/03/2018)

PENAL E PROCESSUAL. (...) 2. À luz da teoria da cegueira deliberada, não é dado ao agente se eximir da responsabilidade ao se colocar voluntariamente numa posição da alienação diante de situações suspeitas, procurando não se aprofundar no conhecimento das circunstâncias objetivas. (...) (grifos) (ACR nº 5004766-46.2016.404.7002, 7ª T., Relatora Desembargadora Federal SALISE MONTEIRO SANCHOTENE, por unanimidade, j. 03/07/2018)

PENAL. ESTELIONATO PREVIDENCIÁRIO. ARTIGO 171, § 3º, DO CÓDIGO PENAL. (...) TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA. (...) 3. Aplicável ao caso a Teoria da Cegueira Deliberada, segundo a qual o sujeito assume o risco de estar auferindo vantagem ilícita, ao não tomar as precauções devidas. No caso, as circunstâncias fáticas indicavam ao apelante a possibilidade de os valores sacados serem oriundos do INSS, porém ele, diante dos fatos, optou por não verificar a procedência dos saques. 4. Eventual ignorância voluntária quanto à irregularidade dos valores sacados não exime o apelante da responsabilidade pela prática do delito, uma vez que ele assumiu o risco da produção do resultado delitivo. (...) (grifos) (ACR nº 5003685-50.2016.404.7103, 7ª T., Relatora Desembargadora Federal CLÁUDIA CRISTINA CRISTOFANI, por unanimidade, j. 17/10/2018)

 

Por fim a ínclita julgadora afirma que “eventual ignorância voluntária quanto à irregularidade do amparo obtido não exime o apelante da responsabilidade pela prática do delito, uma vez que ele assumiu o risco da produção do resultado delitivo" (grifo nosso). (TRF4, ACR 5029683-04.2017.4.04.7000, SÉTIMA TURMA, Relatora CLÁUDIA CRISTINA CRISTOFANI, juntado aos autos em 25/04/2019).

 

 

 

5.4 Dos Problemas Encontrados na Decisão Proferida pelo TRF da 4ª Região Fundada na Teoria da Cegueira Deliberada

 

Diante do exposto, tocante à fundamentação da Ilustre Desembargadora do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, vemos, ao menos, quatro problemas em seus argumentos. Senão vejamos.

Primeiro, não se vislumbrou, no referido acórdão, qualquer afirmação ou provas contundentes de que o réu teria a intenção de fraudar o INSS ou teria assumido o risco do resultado delitivo em sendo previsível. Deveras, conforme relatado acima, trata-se de pessoa simples, e os cálculos, para a obtenção de benefícios previdenciários, como aposentadoria, demandam certo conhecimento técnico de que o réu não detinha, o que o levou contratar profissional para assim fazê-lo (como é comumente feito no País, já que envolvem fórmulas que só especialistas nas áreas contábil e previdenciária podem dominar), bem como entregou-lhe de boa-fé seus documentos pessoais e passou-lhe uma procuração para intentar o benefício junto à autarquia federal. Assim agiu o réu, confiando na prestação de serviços especializados, como ocorre em diversas áreas, como a contábil, a engenharia e a advocacia. Portanto, é perfeitamente crível ou verossímil que determinado profissional possa ludibriar inúmeras pessoas humildes, de pouco grau de instrução, para que lhe sejam entregues documentos, prometendo aposentá-las, sem que estas saibam de qualquer fraude. Aliás, a nosso sentir, o réu é tão vítima quanto o INSS, pois aquele acreditou no suposto conhecimento especializado do profissional contratado e, não só lhe entregou documentos pessoais para comprovação de eventual direito à aposentadoria, como também lhe passou procuração para requerê-la junto ao INSS. Ademais, se pairam dúvidas se o réu agiu com dolo de fraudar e levar vantagem em face da autarquia federal, fraudando documentos, prevalece o princípio da presunção de inocência estampada no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal, tendo em vista o in dubio pro reo.

Segundo, notamos que a julgadora usa a teoria da cegueira deliberada como sinônimo de dolo eventual. Em outras palavras, a desembargadora emprega a cegueira deliberada como aquela em que o agente prevê o resultado lesivo, não se importando com o resultado, ou seja, assumindo o risco de produzir o resultado. Em outra passagem supracitada, a relatora apresenta três ementas que explicam a cegueira deliberada para dar amparo, credibilidade e autoridade em seu argumento. Nesse ponto, merece destaque a ideia de que o autor se colocar, voluntariamente, em desconhecimento de situações suspeitas, para não saber de suposta atitude ilícita. Esse seria o “ingrediente” supostamente novo na aplicação do dolo eventual que fora equiparado à cegueira deliberada pelo julgador.

Ora, vimos que a cegueira deliberada originária dos EUA exige um ingrediente importantíssimo, qual seja: que autor de um crime tenha a ciência da elevada probabilidade de existência de um fato ou circunstância elementar do crime (conforme já mencionamos). Vimos quão subjetivo é o termo “elevada probabilidade” ou “situações suspeitas” de um crime. Cada indivíduo, com sua formação sociocultural tem em mente um conceito diferente para cada um desses termos, o que torna impossível aferir se, em nosso caso concreto, o réu tinha ciência da elevada probabilidade de circunstâncias ou elementos do tipo penal, vez que a acusação não a demonstrou. Conforme já mencionamos, tal ingrediente carece de elementos mais objetivos para a sua aferição no caso concreto. Assim, em situações como a do réu, não houve comprovação de que tinha conhecimento da elevada probabilidade de suspeita de um crime para que se colocasse na condição de ignorância deliberada. Noutro giro, ainda que se equiparasse a cegueira deliberada ao dolo eventual, como assim o fez a desembargadora, é desnecessário fundamentar sua decisão com elementos inerentes à willful blindness, uma vez que o dolo eventual, além de positivado em seu artigo 18, inciso I, do Código Penal, possui farta doutrina e jurisprudência que o defina.

Terceiro, ainda que se admitisse o dolo eventual como alicerce para a fundamentação do acórdão proferido pelo TRF da 4ª Região, não seria de todo acertado, pois, nota-se que a desembargadora, em sua fundamentação, diz que o réu, ainda que agindo de boa-fé (isto é, com desconhecimento da conduta ilícita ou falta de intenção de produzir o resultado delituoso que é fraudar o INSS e perceber vantagens pecuniárias) não verificou a irregularidade do seu benefício previdenciário. Ora, não verificou porque confiou que o serviço prestado por Everton seria correto e lícito. Não há nos autos provas de que poderia desconfiar ou de que haveria elevada probabilidade de cometimento de um crime. Assim, a nosso sentir, questionamos se seria acertada que a conduta do réu se subsumia ao dolo eventual (se assumiu o risco de produzir um resultado delituoso) ou se houve apenas culpa na modalidade negligência, por não verificar a credibilidade do cidadão contratado, bem como por não averiguar se houve casos de outros indivíduos que foram vítimas de Everton. Desse modo, afastando o dolo eventual (“vestido impropriamente de cegueira deliberada”), já que, em não sabendo ou não tendo intenção de fraudar o INSS para perceber vantagem indevida, não haveria como imputar-lhe o elemento subjetivo do dolo eventual. Estaria a conduta do réu mais próxima da negligência. Assim, se ausente a conduta dolosa e presente a culposa, como o tipo penal não prevê expressamente a punibilidade pela culpa, a absolvição do réu seria medida mais adequada.

Quarto, se a desembargadora do TRF da 4ª Região utiliza como fundamentação do seu voto o dolo eventual sob o manto da cegueira deliberada, podemos dizer que não há lacuna a ser preenchida em nosso ordenamento jurídico, tocante aos casos aplicados a título de dolo ou dolo eventual. Como demonstra Lucchesi (2018, p. 189), “Resta claro da aplicação jurisprudencial da cegueira deliberada que, mesmo nos casos de aplicação adequada do conceito, bastaria o reconhecimento de dolo eventual, diante da comprovação de seus fundamentos.”. Se o autor possui conhecimento “efetivo” (e não da elevada probabilidade) da conduta e do resultado previsto, assumindo o risco da produção deste último, não é necessário afirmar que o autor agiu em cegueira deliberada, mas apenas com dolo eventual. Ademais, devemos ressaltar um importante paralelo, qual seja: já sabemos que a cegueira deliberada transplantada e remendada aqui no Brasil não guarda identidade com a dos EUA, pois há pressupostos e fundamentos distintos.  Pelo caso concreto ora apresentado e pela discussão apresentada nos tópicos anteriores, podemos perceber que a cegueira deliberada não altera nem amplia o conceito legal de dolo. No máximo, fazendo um contorcionismo interpretativo, poderíamos inserir a “cegueira deliberada à brasileira” como um instituto que descreveria uma nova situação já abarcada pelo dolo eventual. Diante disso, podemos elaborar alguns questionamentos, quais sejam: então por que inseri-la como fundamentação jurídica e como argumento de verdade? Qual o propósito de se desenvolver uma “teoria deliberada tupiniquim”, se já se encontra abarcada pelo instituto do dolo eventual? Lucchesi (2018, p. 190) nos traz uma possível resposta:

 

Não se está, evidentemente, a defender que os magistrados brasileiros estejam perversamente perseguindo e punindo inocentes. Não se acredita que a má aplicação da cegueira deliberada possa ser propositada. Entende-se, porém, que a incompreensão a respeito do alcance, dos limites e dos fundamentos do dolo tenha levado a uma desnecessária teorização e ao se uso infundado, por se acreditar que o dolo seria insuficiente para alcançar determinadas situações. (LUCCHESI, 2018, p. 190)

 

Por este motivo, muitos dos julgados nacionais, inclusive o que nós apresentamos, neste trabalho, ao se evocar a cegueira deliberada a fatos que são resolvidos pela teoria do dolo eventual, fazem dela, por vezes, um uso supérfluo, mero adorno retórico da decisão, sem consequência alguma para o resultado do julgamento efetuado (LUCCHESI, 2018, p. 191). Assim, não se vislumbra o instituto da cegueira deliberada como uma interpretação extensiva do dolo eventual, para além do campo legal e doutrinário que o delimita. Contudo, indo além dos argumentos propostos por Lucchesi (2018), não podemos considerar a cegueira deliberada como mero adorno retórico, vazio, inócuo numa decisão judiciária, embora em nosso caso concreto haja indicativo disso. Está ali por algum motivo e acreditamos que seja pelos seguintes motivos: a) para tornar mais robusta a fundamentação jurídica quando a prova do dolo eventual se mostra fraca; b) desconhecimento da diferença entre a cegueira deliberada originária dos EUA e do dolo eventual; e c) para se aplicar o dolo eventual como amparo ou um instituto complementar que é a cegueira deliberada, em situações mui específicas, como a de alegação de desconhecimento ou indiferença deliberada pelo autor sobre fatos e resultados criminosos. Nesse diapasão, podemos dizer que um motivo não exclui o outro. Ora, afirmar que a jurisprudência pátria insere a cegueira deliberada como um embuste retórico seria como dizer que os juízos estão preocupados mais com a retórica e a forma do que o conteúdo/resultado prático de sua sentença.

 

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Diante do todo o exposto, apresentamos um estudo de caso da jurisprudência paranaense acerca da aplicação da teoria da cegueira deliberada, também conhecida como willful blindness na imputação da infração pena de estelionato previdenciário, em que um indivíduo fora condenado por ter fraudado o INSS e ter recebido, indevidamente, por cerca de 10 anos o benefício previdenciário da aposentadoria.

Esmiuçamos o tipo penal do estelionato previdenciário, demonstrando que não se trata de um delito autônomo, mas uma causa de aumento de pena, podendo ser aplicado a título de dolo e dolo eventual.

Trouxemos, neste trabalho, alguns princípios constitucionais penais, como o da reserva legal, presunção de inocência, culpabilidade, intervenção mínima, anterioridade, irretroatividade da lei penal, bem como tecemos considerações acerca da vedação da analogia in malam partem.

No bojo desta obra, refletimos sobre os institutos do dolo e da culpa, elementos subjetivos presentes na conduta do tipo penal, os quais foram de fundamental importância para traçarmos um paralelo com a teoria da cegueira deliberada importada dos EUA.

Em seguida, trouxemos à baila reflexões acerca da willful blindness e seus desdobramentos, como suas possíveis origens, primeiras aplicações na jurisprudência pátria, bem como abrimos o debate para verificarmos os problemas envolvidos ao se aplicar um instituto alienígena no Brasil. Vimos, assim, que, apesar de haver pontos em comum e a tentativa pela jurisprudência brasileira e de alguns doutrinadores em aproximá-los, a teoria da cegueira deliberada não se confunde com o dolo eventual, devido aos diferentes sistemas nos quais ambos os institutos estão inseridos, bem como a existência de conceitos totalmente diferentes.

Com relação ao nosso estudo de caso, pois possível verificar que o acordão condenatório do réu por estelionato previdenciário, proferido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, teve como fundamentação a teoria da cegueira deliberada, porém como equivalente do dolo eventual, o que se vislumbrou ser uma impropriedade ou um equívoco, tendo em vista o que já foi debatido.

No anseio de contribuirmos, com o nosso trabalho, para a melhor compreensão dos fenômenos que a jurisprudência brasileira e a sociedade nos impõem, em matéria penal, sabendo que há muito que ser pesquisado ainda, podemos nos posicionar criticamente acerca da cegueira deliberada. Destarte, cremos que tal instituto norte-americano não pode ser aplicado em solo brasileiro tal qual é aplicado nos EUA, vez que não possuímos, em nossa legislação, tampouco em nossa doutrina e jurisprudência, elementos subjetivos hierarquizados ou escalonados em “graus de culpabilidade”, da qual se originou a willful blindness, em específico, do Knowledge. Possuímos, em nosso ordenamento jurídico, a positivação de dolo, dolo eventual e culpa, no artigo 18 do Código Penal, ficando a cargo da doutrina a exploração de algumas espécies de dolo e de culpa, o que também não guarda relação com a cegueira deliberada. Também, é possível afirmar que os conceitos de cegueira deliberada e dolo eventual são diferentes, não podendo ser confundidos, razão pela qual rechaçamos o uso indiscriminado da teoria da cegueira deliberada pela jurisprudência brasileira. Em que pese tal consideração, acreditamos que, apesar de seu emprego inadequado, no caso estudado e, de modo geral, pela jurisprudência nacional, não há violação do princípio da legalidade e da proibição de interpretação analógica in malam partem, pois, como vimos, não se rata de expansão da definição do elemento subjetivo do dolo, traçada no artigo 18 do Código Penal, pois não há lacunas a serem preenchidas.

Admitimos que, ao analisarmos o caso concreto da jurisprudência paranaense, verificando-se a aplicação da cegueira deliberada como equivalente ao dolo eventual, houve um esvaziamento do sentido original daquela, tornando-se um adorno retórico, vez que, como bem demonstrado, apenas o dolo eventual já seria suficiente para a fundamentação do decisum. Contudo, também afirmamos que a cegueira deliberada não se presta somente como retórica vazia, mas pode ser usada (de forma inapropriada) pelo julgador, para tornar a fundamentação da decisão judicial “supostamente mais robusta”, quando a prova do dolo eventual não esteja de todo demonstrada num caso em julgamento, ou, ainda, pelo desconhecimento aprofundado pelo julgador da diferença entre a cegueira deliberada norte-americana e o dolo eventual brasileiro, ou, também,  para se aplicar o dolo eventual em situações mui específicas, como a de alegação de desconhecimento ou indiferença deliberada pelo autor sobre fatos e resultados criminosos.

Conquanto o julgador, em nosso estudo de caso, tenha aplicado a cegueira deliberada/dolo eventual, para a condenação do réu, não se vislumbrou, no acórdão, que o agente teria a intenção ou teria assumido o risco de produzir um resultado delituoso em face do INSS. Assim, acreditamos que a decisão melhor acertada seria a de afastar o dolo eventual e inserir a conduta do réu no elemento subjetivo da culpa, na forma de negligência, afastando, com isso, a imputação contra o réu, já que o estelionato previdenciário não prevê punição para condutas culposas. Por isso, questionamos e refutamos a confirmação da condenação do réu, em segunda instância, com base no “dolo eventual” travestido de “cegueira deliberada”. Se ausente a conduta do dolo eventual e presente a culpa na forma de negligência, a absolvição do réu seria a medida mais acertada pelo TRF da 4ª Região.

Por fim, sabemos que, dada a (de)limitação deste trabalho, o tema da cegueira deliberada está longe de se esgotar. Mesmo assim, podemos afirmar que, sem o devido amadurecimento doutrinário e debates nos bancos universitários, torna-se insustentável defendermos a importação da teoria da cegueira deliberada pela jurisprudência brasileira.

 

 

REFERÊNCIAS

 

BRASIL. Tribunal Regional Federal (4. Região). Processo – 5029683-04.2017.4.04.7000 PR. Relatora: Des. Federal Claudia Cristina Cristofani. Paraná, 23 abr. 2019. Disponível em: < https://jurisprudencia.trf4.jus.br/pesquisa/inteiro_teor.php?orgao=1&numero_gproc=40000968980&versao_gproc=19&crc_gproc=a41905a8&termosPesquisados=J3Rlb3JpYSBkYSBjZWd1ZWlyYSBkZWxpYmVyYWRhJw==>. Acesso em: 04 jun. 2019.

 

EDINGER, Carlos. A Cegueira Deliberada como Indicador de Dolo Eventual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

 

KOHLBACH, KARLOS. PF aponta 12 suspeitos acusados de fraude na Previdência Social. Gazeta do Povo. Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/pf-aponta-12-suspeitos-acusados-de-fraude-na-previdencia-social-a41vjs4twdf8zeuzt5y03gf2m/>. Acesso em: 04 jun. 2019.

 

LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punido a Culpa como Dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2018.

 

MASSON, Cleber. Direito Penal: parte geral. Vol. 1. 11.ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017.

 

______, Cleber. Direito Penal: parte geral. Vol. 2. 10.ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017.

 

NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. 4. ed.  rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

 

SILVA, Ivan Luiz da. Princípio da Insignificância no Direito Pena.  2 ed. Curitiba: Juruá, 2011.

 

SYDOW, Spencer Toth. A Teoria da Cegueira Deliberada. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017.

 

VALENTE, Victor Augusto Estevam. Aplicação da cegueira deliberada requer cuidados na prática forense. Site Consultor Jurídico. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2017-ago-09/victor-valente-aplicacao-cegueira-deliberada-requer-cuidados>. Acesso em: 04 jun. 2019.

Sobre o autor
Luís Fernando Dodorico

Formado em Letras pela UNESP / São José do Rio Preto (2004). Bacharel em Direito pela UNIP - São José do Rio Preto (2013-217). Pós-graduado em Ciências Criminais pela PUC. Fez estágio profissional no Ministério Público do Estado de São Paulo. Atualmente trabalha no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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