TEMPOS DE COVID E AS MEDIDAS JURÍDICAS INSULARES

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Visa-se criticar medidas adotadas pelos governos brasileiros no combate à proliferação do Covid-19, iniciando pela exposição dos fundamentos do Estado com um posterior aprofundamento na relação entre a legalidade e a atividade administrativa sancionatória

Resumo

Este artigo tem como cerne criticar algumas medidas adotadas pelos níveis da federação brasileira para combater a proliferação do Covid-19, iniciando pela exposição dos fundamentos do Estado contemporâneo e um posterior aprofundamento na relação entre um desses sustentáculos, a legalidade, com a atividade administrativa sancionatória adotada, singularmente, por Municípios.

Palavras Chave

Covid-19; Legalidade; Sanções administrativas; Medidas de isolamento.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Como vastamente noticiado, de dezembro de 2019 para os dias atuais, uma espécie de coronavírus, o Covid-19, repercutiu em escala progressiva a sociedade, a economia, as relações entre soberanias, rumando-se a uma solidarização insular: o amparo que um dá ao outro ocorre mediante isolamento social. O mundo passa por um processo de ‘’refeudalização raiz’’ em razão das medidas que combatem a expansão virológica.

Com isso, notório que os mercados congelaram e, por conseguinte, os efeitos imediatos dizem respeito ao bolso de empregadores e empregados, fornecedores e consumidores, locadores e inquilinos: em suma, como ensinam Enzo Roppo (2009, p. 36-40) e Darcy Bessone (1997, p. 7-17), o contrato é a figura que mais remete à ideia de mercado e de circulação de riquezas e, portanto, ele é a figura mais afetada pelo contexto trazido pelo Covid-19.

No Brasil pairam discussões sobre projetos de textos legais temporários, p. ex., o PL 1179, de 2020, as inúmeras medidas provisórias que tratam da manutenção do emprego em detrimento de um sacrifício remuneratório, ideias que despontam sobre redução de vencimentos no setor público e redirecionamento de verbas relativas a fundos partidários, todas medidas que se baseiam na manutenção da economia brasileira.

No campo social, vê-se como grande referência legislativa a lei n. 13.979/2020, que delineia os rumos das competências legislativas e administrativas do federalismo cooperativo brasileiro em relação à saúde pública. Em tal diploma constam diversas medidas que os entes federativos podem adotar para evitar a proliferação do vírus.

2. OS FUNDAMENTOS DO ESTADO DE DIREITO ATUAL.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1988, p. 23-37) expõe que o Estado de Direito hodierno tem como bases principiológicas a justiciabilidade, a isonomia e a legalidade. Sobre a justiciabilidade, o autor aponta que o texto constitucional defere a órgão, órgãos ou ente dotado de conhecimentos técnicos jurídicos a função de supremo guardião do ordenamento jurídico.

O monopólio da violência estatal atribui ao Estado-Juiz a decisão final sobre as questões jurídicas, as quais, por sua vez, refletem no plano social ao conformar o mundo dos fatos ao mundo jurídico.

Quanto à isonomia, aponta-se o estudo de Humberto Ávila (2015, p. 77-81), para quem há a divisão a partir da noção de lei: igualdade na lei e igualdade diante da lei. A primeira designa a lei como instrumento a ser aplicado a todos, sem qualquer diferenciação, independente do seu conteúdo. Já a igualdade diante da lei é definida como o conteúdo voltado à igualação expresso na lei, isto é, a finalidade legal é tornar todos iguais, inclusive, se necessário, por meio de distinções baseadas em fatores extrajurídicos.

Como último fundamento do Estado está a legalidade, que sofreu diversas diminuições do seu campo de incidência, ainda mais pela existência de normas jurídicas não legisladas e, também, a interação do próprio sistema normativo com outros campos do conhecimento, a fim de desenvolver uma melhor decisão jurídica aos casos (PÁDUA, 2019, p. 124).

Na Constituição do Brasil há duas espécies de legalidade (SILVA, 2013, p. 422-423). A primeira é a legalidade em sentido negativo, voltada em especial aos particulares, constante no art. 5º, II, que enuncia que ‘’ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’’. Aqui, o destinatário só deve fazer ou deixar de fazer algo se houver preceito legal determinando.

A segunda espécie é a legalidade em sentido positivo, que se volta, especialmente, para o Estado, constante no art. 37, caput, CRFB, enunciando que ‘’A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...)’’. Aqui, o destinatário só realizará comportamentos positivos (= condutas comissivas) se amparado em previsão legal.

Como destaca Marcos Bernardes de Mello (2019, p. 222-223), os atos sujeitos ao regime de Direito Público estão pautados na legalidade, tendo os agentes – públicos ou privados que exercem múnus público – que se basear sempre na Lei para o exercício de certos comportamentos.

Sobre esse ponto de legalidade e atos estatais que o próximo item tratará, particularmente no que diz respeito às medidas governamentais voltadas ao combate ao Covid-19.

3. AS MEDIDAS PARA CONTENÇÃO DO COVID: ATÉ ONDE PODEMOS IR COM O ISOLAMENTO.

Muito se tem noticiado sobre medidas infralegais adotadas pelos governos municipais e estaduais para manter as pessoas em isolamento social. Em Cabreúva, SP, a gestão adotou medidas pecuniárias ao estabelecer multa de R$ 200,00 para idosos que transitam pelas vias sem uma finalidade, excetuando aqueles que vão, p.ex., a atendimento médico, comprar alimentos ou outros produtos essenciais (CATRACA LIVRE, 2020).

Sobre o caso acima, o Decreto Municipal de Cabreúva n. 1.120, de 26 de março de 2020, é expresso ao estabelecer que ‘’Incidirão em descumprimento deste Decreto aqueles que notoriamente não estiverem em deslocamento para algumas das atividades essenciais descritas no art. 2º deste Decreto, sujeitando-se à penalidade de multa no valor de R$ 200,00 (duzentos reais)’’ (art. 4º).

Em Minas Gerais, a cidade de Divinópolis editou o Decreto Municipal n. 13.771, de 24 de março de 2020, que retoma a abertura econômica de algumas entidades, enquanto impede a reabertura por parte de outras, as quais, por sua vez, estão sujeitas a sanções administrativas que variam da multa para a cassação do alvará.

A Prefeitura de Crato, Ceará, editou o Decreto Municipal n. 0604002, de 06 de abril de 2020, que intensifica as medidas contra a proliferação do Covid-19 e estabelece multas de diversos níveis: dos R$ 200,00 às pessoas físicas até os R$ 50.000,00 às instituições bancárias (G1, 2020).

Muito se vê nas redes sociais um discurso em prol de tais medidas: no conflito economia e saúde que tanto nutrem, pessoas manifestam interesses de cunho econômico, em prol da retomada da circulação de patrimônio para que as pessoas possam ter renda e, consequentemente, consigam atender outras necessidades (que, aliás, são fundamentais). Do outro lado, interesses em prol da do isolamento, com hashtags e memes, na luta pela preservação do que é base à vitalidade, a saber, a saúde.

Sobre as segundas manifestações se faz necessária uma análise de até onde elas estariam na justificação jurídica, isto é, se elas estariam apenas passando um pano em prol de um interesse coletivo que se apresenta.

Como exposto, a legalidade ainda é um dos pilares do Estado contemporâneo, o que leva ao fato de que determinados atos, especialmente aqueles que afetam esfera jurídica de alguém, devem estar respaldados em lei em sentido formal (= ato primário emanado da autoridade legislativa competente).

Calha a exposição em obra monográfica feita por Marcela Rosa Abrahão (2017, p. 221 e ss.), para quem os atos infralegais emanados do Executivo devem se amparar em ato parlamentar, que ou delimita os atos e o conteúdo da função administrativa ou a esta delegam o poder de determinar as condutas.

Um exemplo da primeira manifestação legislativa é o Código de Trânsito do Brasil, que tem uma lista de sanções administrativas aplicadas a certas hipóteses consideradas infrações de trânsito. Um exemplo de delegação está no Decreto Federal n. 6.514, de 22 de julho de 2008, que estabelece as infrações ambientais e as consequentes penalidades.

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Em síntese, extrai-se da lição de Marcos Bernardes de Mello (2019, p. 222) que as aplicações de multas a quem transita pelas vias sem uma finalidade considerada essencial devem estar, inescapavelmente, sustentadas por previsão legal.

A estabilidade constitucional está no fato de que até as crises mais agudas podem ser enfrentadas com os mecanismos preexistentes, p. ex., um Estado de Sítio, um pacote legislativo que disciplina as diversas relações jurídicas juspublicistas ou jusprivatistas. Tudo conforme o texto da Constituição, nada em desconformidade, mesmo que haja vozes de uma maioria qualificada em prol das medidas.

Como pontua José Afonso da Silva (2013, p. 429-430), até o exercício da competência sancionatória pela Administração Pública deve ser antecedida por delineamentos legais, sob pena dos atos realizados fora da órbita legal serem reputados como ilegais e, regra geral, terem sua nulidade decretada.

O seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça pontua a necessidade de lei que ou determine as condutas e as sanções administrativas ou delegue tal poder ao Executivo:

‘’ADMINISTRATIVO - SANÇÃO PECUNIÁRIA - LEI 4.595/64.

1. Somente a lei pode estabelecer conduta típica ensejadora de sanção.

2. Admite-se que o tipo infracionário esteja em diplomas infralegais

(portarias, resoluções, circulares etc), mas se impõe que a lei faça

a indicação.

3. Recurso especial improvido’’ (grifos feitos).

O que não se pode esquecer, em suma, é que mesmo os anseios de maior nobreza devem estar ligados aos fundamentos jurídicos, e não a discursos inflamados que podem passar o pano, abrindo uma fissura na ordem constitucional que permita, p. ex., o Administrador Público, ao seu bel prazer, determinar comportamentos proibidos e as consequentes penalizações sem que haja autorização ou previsão legal antecedente.

Valendo-se de acepção de Friedrich Nietzsche (2005, p. 191 e ss.) e a partir de uma análise das manifestações em mídias sociais, o cuidado que muitos defensores das medidas de isolamento devem ter é de não desenvolverem um cômodo pensamento de rebanho que tente justificar algo injustificável, fundamentar, no caso, que medidas de isolamento social, por serem nobres e pautadas numa (suposta) maioria, superem eventual invalidade diante da ausência de lei que apoie.

Apesar dos abalos que o mundo sofre, as regras do jogo persistem; sofrem flexibilizações em razão do momento, mas não são obliteradas. Uma coisa é tornar as normas mais fluida por causa do que acomete o mercado, a sociedade, o Direito, outra coisa é destruí-las.

4. REFERÊNCIAS

4.1. LIVROS

ABRAHÃO, Marcela Rosa. As restrições aos direitos fundamentais por ato normativo do Poder Executivo. São Paulo: Almedina, 2017.

ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

BESSONE, Darcy. Do contrato: teoria geral. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1997.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de Direito e Constituição. São Paulo: Saraiva, 1988.

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

PÁDUA, Felipe Bizinoto Soares de. O titular das posições jusfundamentais. Dom Helder Revista de Direito, v. 2, n. 2, p. 113-129, jan.-abr 2019.

ROPPO, Enzo. O contrato. Trad. Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina, 2009.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 36. ed. São Paulo: Malheiros, 2013.

4.2. NOTÍCIAS

Disponível em: https://catracalivre.com.br/saude-bem-estar/coronavirus-prefeitura-no-interior-de-sp-multa-idoso-que-estiver-na-rua/. Acesso em 10 mai. 2020.

Disponível em: https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2020/04/06/municipio-no-interior-do-ceara-decreta-multas-de-r-200-a-r-800-mil-para-quem-desrespeitar-quarentena.ghtml Acesso em 10 mai. 2020.

Sobre o autor
Felipe Bizinoto Soares de Pádua

Mestrando em Direito, Justiça e Desenvolvimento pelo Instituto de Direito Público de São Paulo (IDPSP) (2021-). Pós-graduado em Direito Constitucional e Processo Constitucional pelo Instituto de Direito Público de São Paulo/Escola de Direito do Brasil (IDPSP/EDB) (2019). Pós-graduado em Direito Registral e Notarial pelo Instituto de Direito Público de São Paulo/Escola de Direito do Brasil (IDPSP/EDB) (2019). Pós-graduado em Direito Ambiental, Processo Ambiental e Sustentabilidade pelo Instituto de Direito Público de São Paulo/Escola de Direito do Brasil (IDPSP/EDB) (2019). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (FDSBC) (2017). É monitor voluntário nas disciplinas Direito Constitucional I e Prática Constitucional, ministradas pela Profª. Dra. Denise Auad, na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. É membro do grupo de pesquisa Hermenêutica e Justiça Constitucional: STF, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). É membro do grupo de pesquisa Direito Privado no Século XXI, do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Foi auxiliar de coordenação no Núcleo de Estudos Permanentes em Arbitragem (NEPA), da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (2018). Foi articulista da edição eletrônica do Jornal Estado de Direito (2020-2021). Advogado na Cury, Santana & Kubric Advogados.

Informações sobre o texto

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